O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 37
Um novo homem


Notas iniciais do capítulo

O fim está próximo ♥

Boa leitura!



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Os meses que se seguiram foram carregados de angústia. Na cidade, Bárbara utilizou todos seus conhecimentos prévios e, dessa forma, entrou em contato com uma antiga amiga: Socorro de Deus. Como esperado, o tópico central de suas conversas era Maria Beatriz e seu paradeiro misterioso. Após tanto tempo sem ver a menina ou mesmo seu marido, Socorro sentiu um aperto no coração. Lembrou-se de ser a primeira pessoa a saber da gravidez de Beatriz, assim como toda a confiança que lhe fora depositada. Toda a trajetória – da fuga da Lagoa da Esperança até a separação final em Água Funda – ficou marcada em sua alma. Agora, ela até mesmo sentia um certo peso na consciência por ter deixado o jovem casal de lado.

— Eu vou te ajudar achar a minina! — Socorro assegurou, ainda que não tivesse nenhuma pista que lhe ajudasse a cumprir tal tarefa. No fim, não precisava. A simples promessa já colocava um sorriso no rosto de Bárbara, que sabia que agora poderia contar com uma aliada de confiança.

Ao mesmo tempo, no luxuoso prédio da prefeitura, Breno Farias vivia um inferno cíclico. Todo dia, logo ao acordar, imaginava que os agentes da lei teriam descoberto o paradeiro dos cangaceiros. Ledo engano! Para piorar, as complicações que envolviam a administração pública só se intensificavam, fazendo com que o homem perdesse os cabelos aos poucos. Por outro lado, o padre parecia ter entrado num estado de torpor: sabia que deveria ajudar a cidade, mas parecia imobilizado, sem escolher um lado para seguir. Nesse meio tempo, recebeu várias cobranças do prefeito, assim como a memória de Antônio e de antigos aliados mortos parecia gritar em seu ouvido para fazer o exato oposto.

E, nesse contexto, os últimos cangaceiros pareciam ter encontrado alguma estabilidade. Com um abrigo bem protegido, eles não eram perturbados por policiais, políticos ou magnatas da água. Bia, que vez ou outra chorava de saudades de José, conseguia ver Alice crescer feliz e saudável. Sendo bem tratada pelos bandidos, a criança era frequentemente agraciada com brinquedinhos, elogios, afagos e comidinhas, ainda que isso não fosse exatamente recomendado pela sua idade. Os cangaceiros não se importavam: ela era fofa demais para não merecer todos esses presentes.

Com tanto carinho direcionado à sua filha, era impossível Bia não sentir um alívio. De fato, a escolha de Diabo fora acertada. O acampamento dos cangaceiros era, no final das contas, um bom lugar para criar uma criança. Assim sendo, a mulher resolveu retribuir aos seus novíssimos aliados. Usando conhecimentos adquiridos no tempo que vivera com Socorro, preparou ótimos pratos e garantiu que cada membro da gangue se sentisse, ao menos uma vez na semana, num restaurante. Todos sorriam e parecia que Maria Beatriz finalmente criaria raízes duradouras.

Entretanto, nem tudo era perfeito. A aridez do sertão também atacava o bando, de maneira que eles tinham que achar maneiras alternativas para conseguir água e comida. Um problema grave era que, em decorrência da pequena quantidade de membros, apenas um ou outro podia sair para caçadas, enquanto os restantes seguiam com os cuidados do acampamento e, principalmente, das pessoas. Além de Alice e Bia, Joana Arcanjo também era querida e, ao mesmo tempo, inspirava preocupação entre os membros do grupo. Com uma idade avançada, a saúde da mulher não era mais a mesma e ela não era capaz de empunhar uma arma ou caçar alimento e água.

— Eu cuido delas — Diabo assegurou, pois havia prometido a si mesmo que não deixaria nada acontecer com Bia e Alice. Quanto a Joana? Ele tinha algum afeto por ela, então os cuidados seriam um bônus.

Dessa forma, dois cangaceiros costumavam sair para as caçadas – Amanda e Eduardo, geralmente –, enquanto outras duas pessoas ficavam com as rainhas do castelo. No deserto sertanejo, era costumeiro cortar cactos para adquirir água, além de caçar pequenos animais que por ali passavam. Ultimamente, não estavam sendo muitos: a ausência de chuva parecia espantar cada vez mais a vida daquele lugar. Entretanto, o grupo tinha algo pelo o que agradecer: por serem uma pequena gangue, a água que encontravam conseguia suprir a maior parte das necessidades. Evidentemente, luxos estavam dispensados, mas nenhuma daquelas pessoas estava acostumada a viver bem. Pelo contrário, o suficiente bastava e era exatamente isso que tinham.

Em meio à rotina e aos hábitos que eram criados, Bia encontrava um pouco de paz. Entretanto, ela sabia muito bem que existia um vazio bem ao seu lado. Olhando para Alice, era impossível não se lembrar de José de Lima. Ele havia saído em uma missão perigosa meses atrás. Onde estaria agora? Será que ele teria voltado para Água Funda e se deparado com o terrível cenário de carnificina na residência que Água-Santa havia doado à família? Como ele reagiria? Ou será que ele estaria preso... ou pior?

Benzendo-se três vezes, Maria Beatriz sentia calafrios só de pensar nas possibilidades terríveis. Além disso, havia outra preocupação: que fim levara sua mãe? Ela teria escapado das garras do traficante? Teria encontrado liberdade, ou agora sofria em algum lugar misterioso? No fim, as dúvidas inundavam o cérebro da mulher, muitas vezes transbordando pelos olhos. A maioria dos cangaceiros havia percebido isso, mas eles sentiam uma certa timidez para conversar acerca da alma humana. Quanto a Diabo? Ele e Bia já haviam trocado muitas ideias sobre o tema, mas ele já sabia que não podia ajudar mais. Entretanto, havia um membro do cangaço que resolveu se arriscar: Amanda.

— Eu num sou muito boa com as palavra, mas aqui pra dizer que vai ficar tudo bem — disse de maneira quase engessada, pois não estava acostumada a falar palavras daquele tipo.

— Obrigada — Bia respondeu de maneira seca, como se tentasse demonstrar uma força e frieza que não tinha. — Eu só queria poder lidar melhor com tudo isso.

— Bia, é uma mulher decente. É óbvio que você vai sofrer, porque tem um coração! Mas é bom ocê saber que você ajuda demais aqui. Acredita que até a dona Joana falou bem de ti? Joana! — Amanda soltou uma risada meio estúpida. — A véia é braba!

Beatriz sorriu de forma discreta, mas verdadeira. Olhando ao redor, viu um lugarzinho miserável com algumas casinhas de taipa, mas que verdadeiramente parecia bom para ela.

— Eu só queria poder ajudar mais — desabafou. — Vejo vocês caçando, usando armas, se arriscando mesmo. E eu aqui.

— Calma lá, Bia! — A cangaceira não parecia mais tão tranquila. — é uma mãe e isso conta muito! Você me conhece? A minha mãe não me queria e simplesmente me largou pra morrer no meio do mato. Eu fui abençoada por Deus por ter sido pega pelo pai de Lúcio. Mas me entende? Eu daria tudo pra ter tido uma mãe decente, uma mãe como você. Eu sei usar armas, mas você sabe dar amor. Cada um com seus trabalho, né?

— É — Bia respondeu com certa timidez, como se tivesse dificuldades de aceitar os elogios incutidos nas entrelinhas. Porém, precisou de apenas alguns segundos para refletir e enxergar o valor que lhe era intrínseco. — Obrigada por isso, Amanda.

Com um sorriso no rosto, Amanda acenou com a cabeça e se afastou. Observando tudo de longe, Diabo era quase como um espírito vagando pelo acampamento. O cangaceiro com quem ele mais conversava era Lúcio, que parecia carregar um forte sentimento de culpa em decorrência de ter confiado nas palavras mentirosas de Levy por tanto tempo. Agora, para piorar seu estado de espírito, ele se preocupava imensamente com Joana Arcanjo. Sua severa mãe mal aparecia para os outros cangaceiros, passando a maior parte do dia enterrada no quarto. Deitada na cama, ela olhava para o teto e dava intensas tosses, parando apenas quando ficava praticamente sem ar. Com os ossos protuberantes e a pele engelhada, a velhice se fazia presente em todas as dimensões. A fraqueza física, o humor irritadiço e, para piorar, a visão decadente, eram apenas algumas das características que indicavam que Joana estava na reta final da vida.

Lúcio tinha consciência disso. Por Deus, os sinais estavam se acumulando há meses, mas ele parecia ter entrado em um estado de negação duradouro. Afinal, qual filho está realmente disposto a admitir que a própria mãe está a alguns passos de se encontrar com a morte? Tal salto psicológico não era uma tarefa fácil, mas o tempo sempre faz o seu papel. Após muito observar, refletir e, principalmente, aceitar, Lúcio conseguiu verbalizar:

— A véia tá ruim.

Ele disse isso numa ocasião bem específica: o jantar com todos os membros do pequeno grupo presentes, com exceção de Joana, que dormia naquele momento. A reação dos membros da gangue não foi lá muito forte, pois todos tinham conhecimento do estado da matriarca. Quem mais se compadeceu do homem foi Maria Beatriz, que lhe disse palavras de fé e carinho. Lúcio as recebeu muito bem, mas já havia passado do estado de negação, de maneira que não se deixaria enganar por gentilezas. Não havia esperanças: Joana Arcanjo iria morrer.

Com isso, tentou dedicar a maior parte do tempo ao lado da mãe. Conversava com ela sobre o passado, a vida e a fé. Já a conhecia bem demais, pois nunca deixou de conviver com ela, mas agora via certos elementos da vida da mulher se aflorarem com mais força. Entre eles, a fé. Agora, ela passava o dia com um Terço e rezava com intensidade papal. Muitas vezes, a língua enrolava e as palavras saíam de forma estranha, mas a fé estava sempre ali. Lúcio até ria ao pensar naquilo: a mãe e esposa de bandidos era a maior defensora da fé cristã, uma fé que contava a história de um homem que foi punido no lugar de um bandido real. “A vida tem suas ironias”, ele pensou em um dos poucos momentos de bom humor.

— Meu filho — Joana falou com fraqueza há algumas noites —, ajude sua véia.

— O que a senhora quiser, minha mãe — ele prontamente respondeu.

— Eu pra morrer. Mim arranje um padre pra eu ter uma benção antes de partir.

Aquele pedido paralisou o líder cangaceiro. “Até ela sabe”, ele pensou com certo pesar. Agora, o que lhe restava? Tinha que cumprir o desejo da mãe. Ficou pensando nisso ao longo da semana até que, finalmente naquele dia, olhou para a velha e prometeu:

— Vou falar com padre hoje.

Lúcio conhecia os riscos. Estava indo para Água Funda, lugar onde cangaceiros eram vistos como demônios. Além disso, tinha a intenção de falar com o padre, que era também vice-prefeito e aliado do homem que agora promovia uma caça ao seu grupo. Arcanjo sabia: todo político podia ser resumido a uma pilha de segredos, traições e sangue. Entretanto, ele tinha esperança de que o padre continuasse sendo padre e, dessa forma, utilizasse o sacerdócio para fazer o trabalho de Deus, não o do Diabo. Indo até seu quarto, o cangaceiro pegou sua melhor roupa e se vestiu como um ilustre cidadão Água-fundense— ou ao menos era assim que ele achava que se dizia. Em seguida, deu ordens claras ao grupo:

— Não deixem que ninguém se aproxime! Vigiem todos os lados!

— Pra onde vai? — Eduardo indagou.

— Ordens superiores — Lúcio apontou na direção do quarto da mãe. Aquilo foi suficiente para que todos do grupo compreendessem.

Estando tudo muito bem explicado, o homem pegou o cavalo mais próximo e partiu rumo à cidade. Com o objetivo extremamente claro na mente, ele ignorou todo o cenário ao seu redor. Não parava mais para admirar o amarelo alaranjado do solo seco, nem a dança das nuvens que brilhavam ao se deparar com o sol. Tudo que ele via era o horizonte partido, sendo marcado por pequenos pontos que indicavam a intervenção humana. Chegando mais perto de tais pontos, eles se convertiam em silhuetas e, por fim, estruturas. A areia deu lugar ao calçamento, assim como horizonte vazio revelou casas, cavalos e pessoas. Havia finalmente chegado em Água Funda.

Rapidamente, foi para a praça central e encontrou a igreja. Rezava para que o padre estivesse ali, pois seria muito difícil adentrar a prefeitura sem ser notado. Parando o obediente cavalo nas proximidades, desmontou e se aproximou respeitosamente do templo de Deus. Seguindo o exemplo da mãe, fez o sinal da cruz e, com delicadeza, abriu as pesadas portas de madeira. A luz adentrou a igreja que, segundos atrás, jazia na quase completa escuridão, sendo apenas evitada por pequenas velas trêmulas que se localizavam nas laterais. Com uma iluminação mais ampla, Lúcio Arcanjo encontrou um templo empoeirado e com um aspecto de abandono, algo que se assemelhava a sua própria alma.

— Padre? — chamou pelo religioso enquanto caminhava com insegurança.

Não obtendo resposta, foi até o banco mais próximo do altar e se sentou. Encarando o Cristo crucificado, Lúcio se perguntava quantos mais sacrifícios seriam necessários para que algum tipo de paz fosse encontrada. Para ele, o homem era um bicho em eterno estado de guerra e, até agora, nada parecia ter sido muito útil para tirá-lo de tal situação. “Será que minha mãe já encontrou alguma paz?”, ele perguntou no silêncio da alma, torcendo para que a resposta fosse positiva.

Obviamente, a resposta veio em forma de silêncio. Sentindo que o tempo não queria passar, o cangaceiro líder resolveu seguir o exemplo da mãe e, sem muita fé, fechou os olhos e começou a dizer:

— Pai Nosso que estais nos Céus...

Em meio a oração, não ouviu a porta do templo ser aberta. No entanto, ele não era o único ignorante. Caminhando entre os bancos, Miguel estava absorto demais nos próprios pensamentos para perceber a presença do cangaceiro. Cabisbaixo, levantou a cabeça para olhar para o Cristo e então, com o canto do olho, percebeu a presença do suposto fiel. Vendo aquelas roupas bem cuidadas, o religioso acreditou se tratar de algum cristão de grande fé, daqueles que sabiam que deveriam se arrumar para ir de encontro a Cristo. Sentando-se ao lado dele, teve um susto.

Lúcio virou o rosto e olhou para o padre, que finalmente havia o reconhecido. O religioso congelou, pois não imaginava o que poderia se suceder daquele encontro. Ele sabia, no entanto, que o líder cangaceiro tinha motivos de sobra para uma retaliação contra o prefeito. Isso, talvez, respingasse sobre o próprio vice.

— Se acalme, padre — a voz de Lúcio era grave, mas em baixa intensidade. — Ocê ainda não me deu motivos pra te matar.

Engolindo em seco, Miguel manteve-se sentado. Sabia que, caso o cangaceiro realmente quisesse matá-lo, já o teria feito. Agora, só lhe restava ouvir.

— Diga — o religioso falou com falsa serenidade.

— Eu sei que o prefeito deu pra trás. Eu sei que ele tá nos caçando. E sei também que você, como vice, deve contar tudo pra ele. Mas eu pergunto: a que senhor você serve, padre? — a pergunta de Lúcio foi como uma flecha que perfurou a alma de Miguel.

— Eu sirvo a apenas um senhor e ele é Deus — o padre respondeu de forma quase automática. — Não divido o meu serviço com mais ninguém.

— É bom ouvir isso — o cangaceiro fez uma pausa enquanto refletia sobre o que estava a ponto de fazer. Ele conhecia os riscos, mas sabia que tinha uma obrigação como filho. Não deixaria que sua mãe partisse desse mundo sem os confortos que a fé e a religião podiam trazer. — Eu tenho um pedido pro senhor, mas espero que quem me escute seja o Miguel padre, não o político.

— O padre está aqui.

— Ótimo! — Mais uma vez, Lúcio precisou de tempo para prosseguir. Cada palavra saía de sua boca como um peso que deixava a alma. Era necessário ter coragem, mas isso ele tinha de sobra. Apenas precisava que o tempo lhe desse a força necessária, o que de fato aconteceu. — A minha mãe está morrendo. Dona Joana está doente já tem um tempo, mas agora eu acho que ela não escapa. A mulher veio até me pedir pra te chamar, padre. Ela...

— Ela quer a Unção dos enfermos — o religioso completou.

— Isso mesmo.

Um triste vazio dominou a igreja por alguns minutos. Lúcio, em sua dor, rezava para que a decisão fosse acertada. Quando ao padre, ele sentia a cabeça explodir. Por um lado, era seu dever sacerdotal fazer a Unção e respeitar os desejos justificáveis de uma cristã moribunda. Por outro, era impossível não enxergar aquela oportunidade como uma forma de descobrir o abrigo dos cangaceiros. Mais do que isso, essa informação poderia, finalmente, trazer um pouco de paz e verba estadual a Água Funda. Mas a que preço? Antes que Miguel pudesse ponderar, o silêncio foi rompido.

— O senhor pode fazer isso pela minha mãe, padre? — Lúcio Arcanjo suplicou.

— Sim — o padre aceitou sem ter uma escolha definida. Então, aguçou os ouvidos para escutar as próximas palavras do líder cangaceiro. O religioso estava a ponto de descobrir onde os bandidos se escondiam. Não haveria mais trevas pela frente, com exceção daquelas que pertenciam a seu coração.

Apesar de tudo, Miguel não era o único homem envolto de escuridão. Há muitos quilômetros dali, um certo pai de família havia perdido a noção do tempo. Deitado sobre um colchão extremamente desconfortável, as dores nas costas haviam se tornado costumeiras. Além disso, José não sabia mais o que era o nascer do Sol. Estando numa cela na parcela a Oeste da prisão, o rapaz só via a estrela quando ela estava se pondo. Dessa forma, passava a maior parte do tempo iluminado por lâmpadas de baixa intensidade, muitas vezes o deixando numa mórbida penumbra.

A falta de iluminação decente só fazia acentuar o cinza morto que preenchia todo o espaço. O chão era cinza, as paredes eram cinza e até as grades eram cinza. Vez ou outra, quando um guarda passava ali, José podia confortar os olhos com a visão de uma nova cor: o bege sem graça dos uniformes. Para o preso, aquilo já era o auge da saturação e do contraste. Entretanto, apesar do alívio visual, vez ou outra os guardas paravam de caminhar e olhavam para o rapaz solitário. Com cacetetes nas mãos, os homens do estado tinham o costume de descontar as frustrações da vida nos presidiários. José de Lima foi vítima dos algozes três ou quatro vezes, ficando com algumas cicatrizes no rosto e no corpo.

Porém, essa não era a pior parte. O preso já estava acostumado a sofrer com as dores do corpo, mas o que doía mesmo era sua alma. Como estaria Bia? Como estaria Alice? Bárbara teria conseguido reencontrar a filha? Essas questões enlouqueciam José. Sem ter um relógio ou calendário, a única marca visível do tempo era sua barba que crescera, formando assim uma camada quase respeitável de pelos negros embaralhados. Com aparência mais velha, triste e carrancuda, o rapaz do interior imaginava se continuaria se reconhecendo quando saísse dali.

“Quando?”, pensou com desesperança. Zé não entendia muito de leis, mas achava estranhas todas as circunstâncias que envolveram sua prisão. Não teve acesso a advogado e nem mesmo chegou a ser julgado. Foi levado por homens da lei e simplesmente trancafiado naquela maldita cela. Por algum motivo, apesar de sua ignorância, o rapaz sentia que havia algo de errado ali e que uma enorme injustiça seguia sendo feita diariamente. “Esse é o reino da civilidade?”, era uma questão que ele repetia diariamente.

Infelizmente para ele, não havia muito o que fazer. O lugar era bem vigiado e ele só saía da cela para apanhar. Na primeira vez até que tentou correr, mas logo foi pego por outros guardas e a surra acabou sendo muito pior do que o planejado. Desde então, ele aprendera a esperar, mas esperar pelo quê? Deveria aguardar o tempo de prisão passar para então ser libertado? Ou esperaria por um milagre? As duas coisas pareciam improváveis, além de que ele tinha a impressão de que aquilo estava mais para um abatedouro do que uma prisão. Não duvidaria se lhe contassem que aquele fosse um refeitório para canibais.

Então, por breves dias, aceitou que não voltaria para casa, que não veria sua mulher, que não teria a chance de conhecer melhor a sua sogra e pior, que não poderia acompanhar o crescimento de sua filhinha. Era como a morte: inexorável e brutal, só que mais lenta. Ajoelhado, só restava ao homem rezar diariamente. Ele tinha fé que Deus lhe ouviria e mandaria um anjo, assim como fez no dia em que Diabo apareceu. E Ele mandou mesmo.

Olhando para o chão, José nem viu a aproximação do homem.

— Ei — ele chamou o rapaz, que rapidamente levantou a cabeça. — Foi você que matou o Francês?

Com os olhos tristes, Zé de Lima simplesmente acenou de forma positiva. A sua frente, do outro lado das grades, havia um homem alto e de voz confortável. As pessoas de Água Funda o conheciam como Augusto Nunes, mas José simplesmente o enxergou como mais um guarda pronto para espancá-lo.

— As pessoas falam de você — Augusto continuou. — Por acaso seu nome é José de Lima, esposo de Beatriz, lá de Água Funda?

“Beatriz?!”, a mente do preso entrou em estado de alerta.

— O que tem ela?! — Levantando-se, José não escondia a aflição. — Ela tá bem?

— Então a resposta é “sim” — o ex-delegado falou com calma. Antes de prosseguir, no entanto, olhou para os lados. Vendo que não havia nenhum bisbilhoteiro, continuou. — Eu serei breve: sua esposa virou minha vida de cabeça pra baixo. Eu sei que foi ela que pegou aquele diário. Por causa disso, tive que fugir com minha família. Mas quer saber? Eu tenho que agradecê-la.

“Oi?”, a mente de José não estava exatamente apta a ouvir todas aquelas histórias. No entanto, mantendo uma postura impávida, ele prestou atenção a cada uma das palavras de Augusto.

— Se não fosse por ela, eu ainda estaria sendo fantoche de político — prosseguiu. — Enfim, quando ouvi que prenderam o homem que matou o Francês, eu fiz de tudo pra que me transferissem pra cá. Levou um tempo, mas aqui estou e quem diria: até nisso Beatriz tem influência. Eu devia ter sido homem que nem você, José.

— Obrigado — Zé nem conseguia entender o porquê de ter agradecido.

— Então é por isso que estou aqui: para poder retribuir — Augusto olhou para os lados mais uma vez. Retirando um molho de chaves do bolso, ele parecia nervoso, mas decidido. — É o seguinte: vou te levar para dar uma surra. Comporte-se e os outros guardas vão acreditar nisso.

— Eu não entendendo nada!

— Só confie em mim.

O pai de Alice confiou. Vendo a porta gradeada ser aberta, ele foi arrastado com certa brutalidade por Augusto, que agora claramente havia assumido o papel de “guarda mau”. Caminhando pelos corredores sujos da prisão, a dupla passou por um conjunto de celas, pelo refeitório e por um anexo onde se encontravam as salas da administração. No caminho, receberam olhares de presos, guardas e outros funcionários, mas nenhum comentário foi feito. Por fim, chegaram ao pátio. Lá, alguns presos privilegiados – em outras palavras, gente rica ou envolvida com política – aproveitavam o banho de sol.

— Tá vendo o guarda próximo do portão? — Augusto falou discretamente. — Hoje ele foi pago para “falhar” na captura de um preso que tentará fugir. Mais uma dessas manobras de políticos. A questão é: ele não sabe qual dos presos irá tentar a fuga. O primeiro que aparecer, ele vai simplesmente abrir as portas.

tem certeza disso? — A insegurança bateu em José. — Como você sabe dessas coisas?

— As paredes têm ouvidos. Agora escute bem: logo após o portão, vai encontrar uma égua. Ela se chama Águia — José ficou confuso ao ouvir o nome do animal, mas o ex-delegado prosseguiu. — Pegue-a e volte para Água Funda. Caso precise, ela conta com uma bolsa de couro. Há um pouco de água, comida e um revólver lá. É a sua chance, José de Lima. Não desperdice.

Augusto soltou Zé, que agora não sabia o que fazer. Por um lado, queria se virar e agradecer a ajuda divina. No entanto, aquele não era o momento: tinha que correr. Colocando um pé atrás do outro, avançou dezenas de metros rapidamente. De frente para o portão, viu o guarda se “distrair” com os prazeres da corrupção. José passou para o lado de fora, mas, antes de deixar para sempre a prisão, olhou para trás. Vendo Augusto, acenou de forma positiva com a cabeça. Talvez nunca mais fosse ver aquele homem, mas o pai de Alice teria eterna gratidão. “Você é um bom homem, Augusto”, pensou antes de bater o pé em direção a Águia e fugir.


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Notas finais do capítulo

Agora as fãs de Augusto podem chorar (sim, estou falando da senhorita Helen).

Muito obrigado pela leitura!



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