Poente escrita por Desdemonia Lucitor


Capítulo 2
Primavera




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Dias tornaram se semanas e semanas tornaram-se meses, dando lugar à passagem da estação. Renasciam no gelo e no frio os botões e pétalas que tornariam-se frutos em um futuro não tão distante.

A dança das estações, como Sasuke observada.

Junto da primavera, lá estava ela. Sua presença já constante agora carregava mais significados para o vampiro, que a recebia todas as tardes em sua casa. Porém, no calor de sua presença, emergiam junto dela perguntas cada vez mais complexas advindas da relação que se solidificava.

— Por que não sai para me fazer companhia enquanto estou cuidando do jardim? — Sakura questionou certa vez enquanto ele a mentorava nas primeiras notas do piano.

— Não posso ficar sob o sol. — Foi extremamente sincero, embora estivesse longe de qualquer intenção de revelar-lhe a verdade.

— Você tem alguma doença ou algo do tipo? — Meneou o corpo para mais próximo do rapaz. Tal proximidade irradiou uma corrente elétrica por todo o corpo e o levou a se afastar.

— Pode chamar assim se quiser. — A respondeu com suavidade. — Eu vejo como uma maldição.

Era difícil mentir para ela. Inúmeras eram as vezes que se pegava a imaginar qual o tipo de reação que a jovem teria caso lhe revelasse a verdade. O consideraria um louco? Fugiria para longe e ele teria de viver seus incontáveis dias a se alimentar dos poucos momentos em que a teve tão perto de si?

Sakura trazia cor a cada visita. Ouvir seus passos leves sob a tapeçaria do palacete e sentir seu cheiro nos corredores, mesmo depois de ter partido, inebriado o pobre escravo da escuridão. Dia após dia, imaginar tê-la em seus braços tornava-se incontrolável. Um sonho proibido diante de seus olhos.

Como os caules e flores, seus sentimentos cresciam e tornavam-se cada vez mais fortes. Tê-la por perto havia modificado tanto sua obscura existência que até mesmo sua moradia passava a refletir seus efeitos.

— Você deveria contratar alguém para cuidar de sua casa. — Sakura comentou. Diferente de meses atrás, não se constrangia por sugerir tal coisa.

— Como um criado? — A olhou nos olhos, cogitando tal possibilidade.

— Não deveria falar desse jeito. — O censurou. — Auxiliar é mais respeitoso. A casa é grande, então talvez precisará de mais suporte.

— Compreendo.

Naquela mesma noite, sem questionar qualquer fator, providenciou a contratação de três auxiliares, uma governanta e um mordomo. Porém, ter tanta gente por perto custava-lhe um preço alto que dinheiro algum poderia resolver.

Passava a sair pelas ruas para se alimentar com frequência ainda maior. Se não tomasse o devido cuidado faltariam-lhe vítimas e seria ainda mais visado.

— O cheiro de sangue têm se tornado cada mais frequente ao meu olfato nos últimos tempos. Só não imaginava que pudesse ser você. — Ouviu a voz lhe chamar a atenção.

Curvado sob a silhueta desfalecida em seus braços, Sasuke voltou sua atenção para a figura empoleirada na janela aberta da torre da igreja. Suigetsu o olhava sem carregar o costumeiro sorriso descontraído.

— Ter aquela moça por perto não está fazendo bem a você. — O visitante prosseguiu. Um baque surdo acompanhou seus pés ao tocarem o chão. — Não é do seu feitio a gula.

— O que faz aqui? — Sasuke limpou o sangue dos lábios e repousou o corpo adormecido do coroinha no chão de mármore.

— Vim lhe advertir, meu estimado amigo. Não poderei passar as próximas décadas de consciência limpa se não o advertir sobre o problema que está criando à si mesmo.

— Não sei do que está falando, Hozuki. — Sasuke se levantou e juntou-se ao amigo. Sentia o calor do sangue recém consumido aquecer suas veias e abraçar seu coração.

Sem qualquer pressa, Suigetsu recostou-se na parede de pedra da torre e observou os entalhes feitos à mão no sino de cobre da igreja.

— Atribuem aos quietos os dotes da racionalidade — Começou a falar. — , mas qualquer propagador deste arquétipo pensaria duas vezes antes de reproduzi-lo se conhecesse você.

Sasuke o deixou com seu silêncio. Sabia onde o outro queria chegar.

— Você é um homem emocional, Sasuke Uchiha. Atrás dessa cara fechada se escondem vestígios dos sentimentos mortais que agora querem voltar a florescer. — Suigetsu tirou um cantil do bolso interno do paletó e o girou entre os dedos. — Vi você sondar uma moça alguns dias atrás e fiquei curioso ao ponto de acompanhá-lo. A princípio pensei que estivesse caçando, mas tive certeza que não se tratava do caso quando parou na escuridão e ali permaneceu até que a jovem passasse pelos umbrais de sua residência. Demorou-se ali por alguns míseros minutos e depois voltou para as ruas.

Sem negar, Sasuke não tinha e nem queria retrucar. Suigetsu estava certo. Acompanhava a moça de longe todas as noites, resguardando-a pelo trajeto da universidade até de volta ao lar.

Os dois vampiros empoleiraram-se nos beirais da janela da torre e dali se jogaram, seguindo um percurso sem qualquer rumo aparente. Ainda tinham algumas horas até a alvorada.

— Eu senti o cheiro daquela mortal, Sasuke. O aroma de sua pureza pode ser sentido a metros de distância e você sabe o que isso significa.

— O filho da noite que ousa manchar imaculada pureza é condenado a atravessar a eternidade acorrentado ao sofrimento da perda. — Sasuke proferiu uma das verdades de sua existência.

— Sonhará por todas as noites com o rosto daquela que deflorou, incapaz de abrir mão das lembranças e capaz de qualquer loucura. — Suigetsu suspirou, resignado. — Não cometa o mesmo erro que eu, Sasuke. Veja o que fiz à mulher que amo, aprisionando-a ao castigo do infinito por não ter sido capaz de abrir mão dela para a morte. Compreende a complexidade desta maldição? Tocar aquela moça só trará ainda mais sofrimento à sua alma atormentada.

Pelo resto daquela noite, Sasuke manteve-se em silêncio. Não porque sentia-se pressionado ou acuado pela veracidade cruel que o amigo havia lhe emergido à consciência. Aquietou-se porque sabia que pela primeira vez em sua vida imortal havia sido presa ao invés do predador.

[...]

Amargurado, despertou em seu caixão após as batidas graves da governanta às portas de seu aposento, o tirando do único momento em que poderia se desligar dos próprios pensamentos.

Sakura o esperava.

Desceu escadarias e cruzou corredores até a sala de música, onde a encontrou sentada em uma das poltronas de couro negro. Estava tão linda, em uma beleza que quase o impeliu a se ajoelhar diante dela. Trazia no corpo um vestido rodado de veludo azul marinho e, no cabelos, pequenos cristais translúcidos uniam seu penteado.  

— Quero que me acompanhe ao baile beneficente da igreja. — Lhe lançou um sorriso travesso, como se já houvesse planejando aquilo há semanas. — Não lhe contei antes porque com certeza iria encontrar alguma desculpa para não sair de casa.

E como iria negar um pedido à ela se, no momento em que se pôs cativo aos olhos dela, qualquer amargura e preocupação se esvaíram como se jamais as tivesse sentido em toda a vida?

A enrolou com o piano até que não houvesse qualquer vestígio de dia do lado de fora. Cedeu seu braço para que a guiasse e caminharam pelas ruas sem pressa, volta e meia parando para que ela pudesse olhar algumas vitrines, outras para responder as perguntas que nunca paravam de nascer dos lábios da jovem.

— Você sabe dançar, Sasuke? — O perguntou quando entravam no salão fino alugado para o evento.

— Sei, embora não o faça a séculos. — Sorriu em resposta às gargalhadas que ela dava ao acreditar ter sido uma piada.

— Você fala umas coisas engraçadas de vez em quando.

— Em todos estes séculos, é a primeira vez que me atribuem tal adjetivo.

Divertiram-se bastante ao decorrer da noite. Sasuke se sentiu agraciado quando estendeu a mão para Sakura e lhe pediu que concedesse à ele uma dança, tendo se dado conta que aquela era a primeira vez que sentia a mão dela sob a sua.

E era tão quente.

No momento em que se tocaram, uma corrente elétrica atravessou-lhe o corpo e ele poderia jurar que tinha retornado à vida naquele instante. A conduziu até o centro do salão de gala e deixou que ela repousasse os braços ao redor de seu pescoço enquanto ele envolvia com respeito a cintura.

— Você está gelado… — A jovem se pôs nas pontas dos pés para sussurrar em seu ouvido.

— Sinto muito por isso. — Respondeu com verdadeira amargura.

— Não, não… É diferente e eu gosto. — A percebeu sorrir. — É você.

Numa fração de segundo escutou o ritmo cardíaco da moça tornar-se frenético e o sangue correr mais rápido por todas as suas veias, desencadeando uma onda de agitação. Além dos aromas típicos de sua condição física de humana, havia algo mais. Percebeu um cheiro emocional adocicado e quente sendo irradiado dela, provocando nele a dilatação das pupilas.

Sentia nela o cheiro da paixão.

Como aquilo poderia ser possível? Só podia estar ficando louco, como havia previsto Suigetsu.

— Sasuke… — Ela ergueu a cabeça e o olhou nos olhos. — Você já quis recortar um momento e guardá-lo para todo o sempre?

— Talvez eu o esteja fazendo agora mesmo. — A respondeu com a mais genuína sinceridade.

— Você poderia me ajudar a fazer o mesmo?

— Como poderia, Sakura?

Sem que fosse verbalizada, teve sua resposta ao sentir o toque macio dos lábios da moça contra os seus. Teve na ponta da língua a constatação do sabor que havia imaginado e em sua mente diversos fios de memória iam se atando uns aos outros.

Esqueceu-se que era um condenado.

Esmaeceram quaisquer lembrança de maldição.

Ignorou qualquer conselho ou aviso bem intencionado.

Ao fechar seus olhos para acolher de bom grado o sentimento que se manifestava em forma de beijo, Sasuke sentiu-se novamente como um mortal.


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