Apocalipse escrita por Natália Alonso, WSU


Capítulo 12
XI




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Palácio do Planalto, império dos Caveiras

 

Os pulsos estendidos e unidos estão presos a largas correntes de prata, dessa vez, os tornozelos estão muito bem acorrentados ao chão. Daniele pende a cabeça com sede, o calor da fogueira improvisada na sala a faz suar, fraca pela desidratação. O suor escorre pelos cabelos negros e cai na pedra do chão, secando em sonoro chiado do calor. Ela olha para o alto e rosna baixo, o som pausado ressoa em sua garganta.

Dois pequenos olhos se abrem na escuridão próximo da janela, o bico de um corvo solta um gralho curto. Ela responde em um ruído surdo. Daniele olha para a porta que abre permitindo a entrada de Lucy, ela caminha devagar até a pitanga. A ave vira a cabeça de lado, então dá dois pulos antes de se alçar voo pela janela.

A vampira caminha no piso quente, o som dos sapatos aos poucos some, pois ela se desloca a poucos centímetros do chão. O rosto exibe uma frieza no olhar e malícia no leve sorriso, ela vai até próximo da naurú e para a observando.

— Finalmente, menina, pudemos nos encontrar.

Daniele remexe um pouco fazendo as correntes tilintarem ecoando no cômodo amplo. A vampira sorri e começa a pairar em torno da garota, a mão passa pela barriga e contorna as costas da mulher entrelaçando os dedos nos cabelos.

— Parece que está como deveria, presa como um animal de estimação que será. — A Drácula puxa delicadamente os cabelos da pitanga para trás, forçando seu pescoço ficar exposto. — Você é mesmo uma espécime incrível, talvez seja uma das mais fortes da tribo, ágil, adoro como você luta. É como um belo cavalo de corrida que deve ser usado com sabedoria.

— Afinal, o que você quer comigo, sua maldita?

— Com você? — Ela solta os cabelos da vermelha e continua o movimento pairando até a frente dela. — Não seja convencida. Apesar disso tudo, ainda é só uma. Eu quero todos, imagine o que naurús vampiros podem fazer, servindo a mim, devorando aliens.

— Eles não vão te obedecer.

— Ah, vão. Depois de eu transformar, sempre obedecem. Mas será ainda mais fácil se eu tiver você, quando você for a minha fiel escrava, os outros não poderão lutar contra meu domínio vampírico.

— Acha que pode beber de todos nós? Isso é impossível.

Lucy sorri, se aproxima até o rosto segurando os lábios da pitanga.

— Minha querida, eu já fiz isso. — diz soltando o hálito quente e férreo que incomoda a pitanga. — Eu precisava saciar minha sede.

— Acha que seu plano é perfeito, fazendo muitos soldados malditos para destruir o pouco que restara de nós.

— Eu quero me alimentar de vocês, alimentar meus filhos, não quero destruí-los totalmente. Eu sei muito bem que vocês também pensavam em nos atacar.

Daniele sorri.

— Minha querida, eu já fiz isso. — fala Daniele imitando o tom de voz da vampira.

Nesse instante, o som de tiros ecoa até o cômodo, os gritos dos homens chamam a atenção da Drácula que se vira por um instante. Daniele aproveita e começa a fazer um som com a garganta, um grito agudo entoado para o alto, nesse instante, dezenas de corvos começam a invadir pela pequena janela. Eles rapidamente gralham e atacam a vampira fazendo-a se afastar de Daniele.

A janela começa a ser despedaçada, mãos femininas arrancam os tijolos com facilidade para invadir o cômodo. Sara entra e rapidamente vai até Daniele, aproveita que a vampira se afastou para libertar a pitanga. Logo a revoada torna-se densa e alguns começam a girar entre si unindo-se no chão, a mão negra de Aradia surge no alto controlando as aves. Seus cabelos trançados com miçangas pairam no ar, a cada passo dado pela bruxa, rebatem os ossos e conchas pendurados em sua cintura.

A vampira fica enfurecida com a surpresa, vocifera e a fogueira se apaga de repente. Tudo fica escuro e em silêncio, exceto pelo eco de tiros e gritos do lado de fora. Aradia pressente, ela pega pistola com inscrições no cano lateral.

— Temos que sair daqui, não é bom ficar no escuro com essa...

Antes que terminasse, a feiticeira é agarrada por trás pela vampira e carregada para o alto do teto, o som de luta é forte. Sara segura com força e arranca as correntes do piso, libertando as pernas de Daniele. Os gritos e rosnados se intensificam, Daniele fica preocupada.

— Você está vendo alguma coisa?

Sara levanta seus olhos completamente dilatados, a claridade a perturba, a escuridão é uma bênção.

— Sim.

 

Sara segura e sobe pelas correntes do teto desaparecendo no breu. Daniele sente o balançar das correntes com o tilintar, olha para o alto tentando enxergar.

 

Um som oco de um murro é seguido por um corte, Daniele vê partes de uma carne apodrecida cair no chão, é possível reconhecer uma costela.

 

Depois, o som de uma sequência de facadas em algo úmido, gotas de sangue caem.

 

Um tiro. Um murmuro de Aradia.

 

Um segundo tiro. Dessa vez, o brilho rápido permite ver as mãos com garras de Lucy avançando na bruxa.

 

Uma facada e ouve-se um urro dela.

 

As correntes balançam com força e mais um tiro. A luz instantânea mostra que foi certeiro no queixo da vampira. Em uma explosão de pedaços no ar, seu maxilar com presas vai ao chão.

 

Aradia cai, o som de algo rastejando pelo teto se afasta, assim como o sangue que cai criando uma trilha. Sara desce pelas correntes, até cair no chão, atordoada pela falta das costelas da esquerda. Aradia levanta-se e atira nos grilhões da mão de Daniele.

— Vamos!

A pitanga agarra Sara e elas correm para a porta. Enquanto saem, Aradia olha para trás, vendo a vampira de olhos completamente negros urrar com apenas a parte de cima da boca aberta e muito sangue de seu maxilar ausente.

Enquanto correm pelo corredor, uma explosão causa um tremor, deixando cair pequenos fragmentos das paredes, elas vão em direção ao som de tiros. Acabam logo atrás dos traficantes que tentam proteger o local da invasão de dezenas de naurús e corrompidos do outro lado. Daniele se transforma rapidamente e ataca por trás os traficantes. Aradia cria uma fumaça negra que atinge aqueles com fuzis ao lado, Sara escolhe um e literalmente salta dando um murro em seu crânio e cai no chão, devorando seu cérebro.

Enquanto come, as costelas se regeneram devagar, o traficante ao lado, horrorizado com a cena, corre para o outro lado quando é atropelado por um rinoceronte branco. Ele para ao lado de Daniela.

— As balas amaldiçoadas fizeram estrago? — pergunta Henrique, na forma de rinoceronte.

— Funcionaram muito bem, mas precisaremos de mais se quisermos sair vivos daqui!

A lança de Caíque atravessa o dorso de um vampiro que se aproximava de Daniele por trás. Ela pega a lança e corta a garganta do maldito com a ponta, depois volta para o líder da resistência. Os urros de Orobas invade o local, são poucos, mas em seus cascos eles não precisam de armas para causar grande estrago. Uma rajada de fogo os faz recuar, Dimitri se une ao grupo, quando as chamas baixam, Sara salta sobre um deles arrancado sua cabeça. Henrique olha e questiona.

— Por que mesmo você dizia que não era bom trazer a Sara?

— Por que ela faz isso, mas da última vez foi a cabeça de um vermelho.

— Oh! Então é melhor ficar de olho.

A fumaça negra de Aradia levanta um oroba no ar e o atira para o outro lado do salão.

— Precisamos encontrar Jonas e Dominique! — fala Daniele a Henrique. Ele rapidamente se transforma em um elefante e eleva sua tromba ao alto tentando farejar.

— Jonas está perto, ele...

Então a voz do aracnídeo é ouvida em um rosnado animalesco, eles se viram e notam ele rastejando no teto, seus olhos vermelhos e presas mostram que ele fora transformado.

— Não... ele está... — murmura Daniele.

— Acha logo o Domi! — grita Aradia.

Dimitri joga pequenas bolas de fogo tentando afastar Jonas, sua aparência mudara, comandado pela Drácula, agora ele não usa o moletom característico. Suas costas e peito estão inteiramente coberta por pelos escuros, de sua boca se movimentam um par de quelíceras, em uma boca de aranha, literalmente. O novo vampiro desvia das rajadas rolando entre paredes e teto, se movimenta em uma caçada.

Henrique fareja Domi e depois agarra Dimitri com a tromba o colocando na própria costas, o elefante parte e Aradia vai correndo atrás. Mas no trajeto, Lucy aparece e segura a bruxa pelos cabelos trançados a jogando no chão. Aradia recua fazendo uma fumaça negra em torno da vampira, que sai rapidamente do breu, mas percebe que Aradia está correndo para o outro lado.

Sara encontra uma machete, a usa no crânio de um oroba se alimentando dele, então o som de cascos chama a atenção, mais pesados do que o normal. Vira-se para trás encontrando Baal, o grande e robusto demônio está descontente, ele saca seu machado avançando sobre a morta. Sara salta do oroba anterior, o machado de Baal atinge o que restara de seu guerreiro, ela usa a machete na parte de trás do joelho do líder. Ele não se move, a lâmina se quebra na pele.

Sara puxa o cabo para a frente do rosto, observando a lâmina quebrada. O oroba rufa de suas narinas de bisão, e corre para ela nos pesados cascos, o machado roda no ar duas vezes antes de ela desviar do golpe de cima. Ela corre até um grupo de traficantes mortos.

— Acha que comendo mais dará conta de mim, mulher? — indaga Baal, irritado.

Ele se aproxima até vê-la encaixar uma bazuca na pilha de corpos.

— Quem me dera eu ser forte assim, boi. — murmura ela antes de atirar.

O projétil empurra o demônio pela janela explodindo no ar. O corpo dele cai provocando muito barulho no chão, mas ainda vivo.

Jonas salta sobre Daniele, ela ataca com a lança, mas o aracnídeo gira o corpo no ar desviando do golpe, prende uma teia na perna dela e a puxa contra a parede. Ela cai e precisa rolar no piso para escapar do chute que deixara um buraco no chão, muito mais forte agora, o Aracnídeo dá um soco que a atordoa. Ela segura seu braço para o lançar contra a parede, mas ele pousa com as pernas retornando o impulso em um chute no ventre. Depois joga uma teia no rosto dela, puxando-a de volta para acertar outro soco e uma cotovelada nas costas. Ela desmaia no chão.

Percebendo o perigo, Caíque ataca o Aracnídeo. Daniele abre os olhos devagar, acordada por um tremor de terra, ela estranha, pois é como se uma explosão tivesse acontecido agora pouco. Ela olha Caíque, seu comandante naurú segurar Jonas pelas pernas e o bater forte contra a parede. Boa parte do gesso cai junto de Jonas, expondo os canos e fios junto dos tijolos. Caíque vira-se para Daniele, olha para ela aliviado.

— Você está bem? — pergunta enquanto tira as teias grudadas na pelagem vermelha.

Ela assente com a cabeça e depois grita quando vê Jonas saltar atrás, no pescoço do naurú, mordendo com suas presas. Mas ele solta rapidamente, não bebe o sangue do guerreiro que se afasta buscando a lança. Caíque se coloca em posição de combate com a lança afastando o Aracnídeo que já não se interessa mais por ele e vai em direção a Daniele. Ela levanta quando ele tenta socar, desvia olhando para Caíque que está cambalendo do outro lado. A vermelha defende dos golpes do aracnídeo e dá um soco e um chute o afastando. Ela corre para o guerreiro que deixara a lança cair e cai no chão, de sua boca sai uma espuma branca. Daniele não pode fazer nada além de testemunhar sua morte.

A Drácula se desloca rapidamente, como se sumisse e aparecesse em pontos separados, agarra Aradia pelas costas a jogando na parede. Mas a bruxa na verdade é centenas de corvos empilhados, que se dissipam próximo dela, as bicadas e grasnos atordoam a vampira que ainda sangra pelo queixo. Um dos corvos se afasta, o bico sujo de sangue se transforma nos dedos de Aradia que toma forma ao longe, ainda vendo Lucy rodeada de corvos ela pega a boneca vudu. Abre o ventre de tecido colocando o sangue e usa o cabelo antes furtado para amarrar e fechar o feitiço. O último corvo grita na garra da vampira que olha furiosa para a bruxa.

— Estou cansada dessa brincadeira de gato e rato, bruxa.

— É... eu também. — Ao dizer, Aradia finca uma adaga no ventre da boneca vudu, a Drácula grita com seu abdômen aberto em sangue.

Ela dá mais dois golpes na boneca, joga no chão pisando em cima, esmagando-a. Lucy urra com as presas aparentes e os olhos completamente negros, agonizante no piso. Aradia pega sua adaga amaldiçoada e decepa a cabeça da boneca, a Drácula se cala, soltando as mãos ao lado. A bruxa sorri aliviada, mas após se virar sente a garra de Lucy retalhar suas costas, que reage fincando a adaga em seu olho. A vampira solta com um sorriso no rosto, tira a lâmina devagar regenerando instantaneamente.

— Seus feitiços são bons, bruxa, mas não o bastante para me matar.

Uma fenda se abre no meio do caos, Mefisto sai por ela e abre ainda mais a passagem.

— Baal pediu que eu tirasse os caveiras e vampiros, estão quase todos mortos.

— Eu ainda tenho que... — contesta a vampira.

— Agora! — rosna Mefisto para a esposa.

Nesse momento, uma imensa bola de fogo sai do corredor.

 

 

 

 

Momentos antes, Henrique atropela um vampiro com suas poderosas patas de elefante, a porta é destruída com a cabeça do animal. Assim que chegam no grande salão, Henrique volta ao seu corpo humano, zonzo ele se escora na parede, ele vê Dominique deitado em uma maca. A cela tem uma grossa barreira transparente, o prisioneiro move a cabeça em direção ao lado de fora, está com uma máscara de oxigênio ligada a uma máquina. Na tela, os sensores mostram seus batimentos cardíacos e movimentos respiratórios, de olhos fechados ele aparenta estar fraco.

Dimitri esmurra a porta que não se abre, coloca as mãos incandescentes na parede transparente, mas ela sequer fica opaca. Ele se desespera vendo o irmão preso murmurando baixo, tentando falar alguma coisa abafado pela máscara.

— Isso é policarbonato, garoto. Não vai queimar, foi feito para aguentar coisas muito mais fortes que vocês também. — fala o Caveira do outro lado da sala. — Essa cela é sem oxigênio, anão ser pela máscara, também não vai queimar nada lá dentro. — completa por entre os dentes. Os lábios seguram uma chave de fenda enquanto a mão usa uma inglesa ajustando a prótese mecânica.

Dimitri olha atentamente o braço de Marcos, então faz bolas de fogo e começa a lançar sobre ele, que recua para o outro lado da sala atrás de uma mesa. Instantes depois ele pega uma pistola e começa a atirar para ambos, Henrique transforma-se em um rato correndo para trás de uma das quinas da cela transparente, Dimitri torna-se fogo por completo. As balas atravessam seu corpo de plasma e param na parede, o líquido brilhante escorre dos furos exibindo o metal derretido do projétil.

— Não fode!

Dimitri corre para ele, os tiros atravessam seu corpo de plasma, o Caveira tenta se esquivar, mas o noman vai direto em seu braço mecânico. Ao segurar, ele derrete o metal do braço, queimando até a carne do Caveira que berra em agonia. Mas para a surpresa dele, o noman leva sua prótese até a porta e usa a chave de identificação no detector eletrônico, permitindo que ele entrasse. Surpreso por Dimitri não o matar, o Caveira provoca.

— Ele matou meu primo, esse filho da puta!

Dimitri se aproxima do irmão e vê que ele está agonizando, os braços e pernas foram amputados, os cortes estão fechados por torniquetes. Seu dorso é cheio de cortes, o peito está sem a pele, exibindo os músculos e parte das costelas. Ele percebe que o irmão tenta falar, então tira a máscara de oxigênio, a sala sem estar selada tem ar agora e Domi respira com dificuldade. O rosto retalhado está de pálpebras fechadas, em uma curva mostrando o vazio no lugar dos globos oculares. Os poucos dentes na boca tentam falar de forma descompassada.

— Di-Dimi...

Dimitri olha chocado para a figura do irmão, e cuidadosamente solta os fios do aparelho. Encaixa os braços para carregá-lo, mas Domi geme de dor, balança a cabeça pedindo que pare. Dimi recua as mãos, nem percebe quando Marcos foge atirando após escapar de Henrique. Os gritos e o caos do lado de fora não chegam a sua mente, apenas fita o rosto de Domi, que respira pausadamente mais algumas vezes e então para inerte.

 

Por longos segundos Dimitri o vigia, como se esperasse o irmão levantar, dizer algo... mas isso não acontece.

 

Os irmãos estão parados, e somente uma chama acesa, velando.

 

Henrique grita ao seu lado e Dimitri o ignora, dá as costas e caminha diretamente para a saída.

 

No corredor, ele preenche todo o estreito local em chamas, os vampiros e traficantes que estavam lá são carbonizados instantaneamente. No salão central uma imensa bola de fogo mostra a explosão do corredor e depois Dimitri saindo por ela.

Jonas tenta morder Daniele, ela o segura pelos braços, de repente ele cospe uma saliva pegajosa no rosto dela, que o chuta o afastando, mas depois tosse com falta de ar. Aradia está tentando escapar das garras de Lucy, Daniele corre tropeçando em um cadáver naurú e acaba caindo nos braços de Henrique ainda em forma de gorila.

Dimitri vê Marcos e outros caveiras passarem pela fenda de Mefisto ele se vira para Henrique e avisa.

— Saiam daqui.

Henrique se assusta ao ouvir a voz de Dimitri pela primeira vez, então foge carregando Daniele nos ombros enquanto o rapaz faz seu corpo em chamas e. Mefisto e Lucy olham para o garoto sendo cercado pelos vampiros restantes, mas uma parede de fogo se forma ao redor dele que se expande de uma vez. Quando percebe, Lucy clama por Mefisto, o demônio olha para a esposa e forma uma esfera verde de proteção, em torno de si mesmo. As chamas ocupam todo o salão em uma explosão e escapa pelas janelas do lado de fora provocando ressoando o tremor. O teto rapidamente começa a ruir e o rosnado das chamas é cortado por gritos desesperados de Aradia.

— DIMI!!! — Ela grita de dentro de sua esfera negra de energia, que aos poucos é consumida pelo fogo.

Dimitri parece acordar de um transe, percebe a presença dela e forma uma fenda nas chamas, circundando a feiticeira, que pode se transformar em um corvo para fugir. A esfera verde surge no meio das chamas, Mefisto tudo observa sem nada dizer, Lucy, a vampira está carbonizada, rastejando no chão. O teto se despedaça, o metal da estrutura interna está retorcido e derretido começa a cair sobre ela que urra ao ver o líquido brilhante e incandescente. O entulho cai de uma vez soterrando-a, levantando poeira ao seu redor. Dimitri olha para Mefisto, que lhe dá as costas indo embora pela fenda.

 

 

 

*********

 

Após todos os caveiras e orobas restantes fugirem, os saqueadores fazem o que os define. Vasculham nos escombros as armas, alimentos e todo material que possa ser usado pelo grupo na sobrevivência. O fogo consumiu grande parte da construção, mas muito ainda pode ser encontrado e usado. Os vermelhos e saqueadores estão se auxiliando mutuamente, é como se sempre tivessem sido um único grupo, os feridos são tratados com ervas medicinais, e outros carregam metralhadoras.

Daniele observa tudo do alto de uma pilha de escombros quando um dos naurús se aproxima com um embrulho em mãos e se ajoelha diante dela.

— O que foi, Moacir?

— Senhora, infelizmente, não encontramos o corpo de Caíque, ele estava muito próximo do salão onde o incêndio começou. Acredito que não poderemos fazer o rito fúnebre a ele.

Daniele franze o rosto em lamento.

— Pegue as cinzas então, não pode ficar sem nada para representar sua passagem.

O guerreiro permanece ajoelhado.

— Tem mais alguma coisa a me dizer?

O homem levanta o embrulho de tecido, ainda com a cabeça baixa.

— Meu grupo de busca, encontrou o quarto do vosso tio.

Daniele olha enfurecida.

— Do Marcos... o Caveira. — corrige o guerreiro. — Nós encontramos o que restara do rei. Eu cobri para que a senhora decidisse como é melhor mostrar aos vermelhos.

Daniele hesita, mas então segura o embrulho. Aos poucos, tira o tecido que cobria o jarro de vidro e encontra o rosto de olhos abertos do próprio pai, sua cabeça está imersa em um líquido transparente. A imagem pavorosa lhe provoca náuseas, seus olhos estatelados franzem, as lembranças das semanas que ficou em cativeiro com ele vem à tona. As torturas, os choques, as mãos e o sorriso cínico de seu comparsa Liu, que constantemente lhe forçava em encontros noturnos. Os banhos em salmoura dados por Marcos e sua risada asquerosa, gritando para que ela dissesse onde estavam os vermelhos e os filhos dele, seus primos. A mistura de memórias a assombram por longos minutos até que a voz de Sara interrompe seus pensamentos.

— Daniele! — Sara grita ao seu lado.

Ela pisca, olha para a morta ao lado e que cobre novamente o jarro de vidro.

— O que? — questiona ainda atordoada.

— Você está bem?

A líder pitanga balança a cabeça confirmando, então entrega o embrulho de volta ao guerreiro a frente, já preocupado com a reação da líder.

— Leve para minha tenda.

Dito isso, o guerreiro respeitosamente carrega o jarro para longe dali, Sara tenta auxiliar a jovem líder.

— Eu sinto muito.

— Ele tinha me dito, quando fiquei pela primeira vez com o Caveira. Ele tinha falado que ficou com ela. — Sara não responde, apenas olha em silêncio. — Acho que eu torcia para que tivesse sido apenas uma mentira para me fazer falar de nossos esconderijos.

— Ele sabia que os vermelhos eram um perigo a ele, a vampira também sabe. Aliás, parece que os saqueadores são mais fortes do que seu pai dizia. Essa união trará bons frutos.

— Isso é mais uma profecia sua?

— Não preciso ouvir os mortos para saber disso. Olhe a sua frente, foi o melhor avanço que tivemos em meses. Apesar dos mortos, temos armas e os caveiras estão com os dias contados nas mãos dos Cains. Parece que seu plano acabou dando certo.

— Sim. Mas não da forma que eu pensei. Dominique foi...

— Eu tentei avisar... Como está o irmão dele?

Daniele olha, virando-se ao redor.

— Não faço ideia.

— Se não se importar, vou descansar um pouco agora.

— Não, eu também vou deitar.

A mulher de trajes indígenas se despede da zumbi e vai em direção a sua tenda. Abre o tecido e encontra o embrulho no chão, frente a ele um pardal vira-se para ela. A líder fecha a tenda, espiando do lado de fora para conferir se ninguém está perto.

— É melhor ir embora, Henrique.

O pássaro pende a cabeça para ela, que revira os olhos e deita-se de lado na esteira. Instantes depois, o braço de Henrique a abraça por trás e aninha o rosto no meio dos cabelos dela. Não falam nada, ela não dorme, permanecem parados a noite toda assim.

 

 

 

 

 

*********

 

Eu estava em minha cama, sentada na posição de lótus. Meus olhos com íris completamente dilatadas olham para o nada do porão, então pisco. Uma lágrima escorre quando lembro da profecia que fizera dias antes. A visão cheia de fogo, o líquido incandescente caindo sobre Lucy, a dor e a fúria. Fico atordoada com essa e tantas outras visões. Pego a caneta e escrevo nas folhas do caderno com espiral.

 

Quando me concentro e passo a fome, fico mais morta. Isso me permite ouvir vozes que aos poucos percebi serem vozes de outros mortos. A maioria deles vem do inferno, é claro. Mas para isso, preciso da fome, me deixa fraca, sinto uma movimentação estranha em meu abdome e sei que não é meu sistema digestivo. Estou alimentando outros seres em mim, os vermes e insetos que me devoram me fazem companhia, afinal, mortos fedem.

Hoje foi diferente, me alimentei, lutei. É bom poder regenerar, eu já quase tenho costelas novamente, a vantagem de ser uma morta, é que a vampira não se interessa por você. Porém assim de nada sirvo nas previsões, levarei dias para que consiga ouvir as vozes novamente, e precisam de mim para isso. É bom ficar sem correntes, mas são as correntes que garantem mais possibilidades futuras.

Por isso estou escrevendo tudo isso para vocês, para que saibam como foi, como está sendo essa grande guerra. Não sei se irão encontrar todos esses papéis, e pensar que a poucos anos atrás as pessoas raramente escreviam. Ficávamos grudados em nossos celulares e computadores, intensamente conectados e tão pouco ligados realmente. Não notamos quando foi que a humanidade se tornou tão monstruosa, ver atrocidades não nos chocava mais, pelo contrário, compartilhávamos tais imagens, carentes por curtidas. Espero que quando encontrem isso, vocês sejam melhores do que nós fomos.

Digo no passado agora, pois não sei se iremos sobreviver. Não acho que a humanidade possa sobreviver de si mesma, do que fizemos, do que ainda faremos. Tememos os demônios de Mefisto, mas nós mesmos somos demônios, vampiros e tantos amaldiçoados.

Eu só queria tê-la salvo, queria ter cuidado melhor de Karen, se eu tivesse cuidado melhor, ainda teríamos esperança... Quando ela morreu, eu decidi ser morta também, foi minha escolha de tentar ouvir sua voz.

Eu nunca ouvi a voz de Karen. É como se ela nunca tivesse morrido. Ou talvez, seja uma punição para mim, ela esteja no céu, e por isso eu não possa ouvir. Se é que existe ainda um céu, ou se um dia tenha existido...

 

A mão de Sara treme, a caneta pende ao lado e ela fecha rapidamente o caderno. Com cuidado, coloca o caderno em um saco de tecido branco colocando a Bíblia em cima. O livro sagrado exibe inúmeros papéis coloridos com as marcações, não que ela seja religiosa, mas busca explicações para os demônios dessa forma. Ela para, ainda agachada sente uma presença muito distinta, ela segura a caneta novamente para usar como possível arma.

— Não vai querer me matar, Sara. Ou então, suas profecias de nada irão ajudar os saqueadores.

Ela levanta-se e senta novamente na cama, olhando para o demônio a frente.

— Quem é você?

— Apenas uma voz que muito te acompanhou. Sou Lúcifer, príncipe e herdeiro dos infernos.

Ao lado dele, a sombra negra paira sem forma, os olhos vermelhos no meio da fumaça miram a mulher que o identifica imediatamente.

— Tales?

— Achei que não fosse me reconhecer, Sara.

Ela exibe um horrendo sorriso.

— Eu avisei que você iria morrer se lutasse daquela forma.

— Você também me disse que eu poderia matá-la. — rebate ele.

— Sim. E ainda é verdade, afinal aqui está você.

A sombra acena com a forma da cabeça, e retoma em sua voz cavernosa e vibracional.

— Então, por que decidiu aparecer pra mim?

— Eu tenho interesse em retomar o meu reino, para isso, preciso da ajuda de vocês. Eu sei onde estão as armas que podem matar meu irmão e a vadia que ele chama de esposa.

— A liga dos assassinos procurou por tanto tempo as espadas...

— Não são as únicas coisas que podem mata-los. Precisamos unir todos. A Aliança está com a lança de Longinos, isso explicaria como eles conseguem controlar tão bem as aliens. Se a pegarmos, teremos chances de matar Mefisto.

— E a vampira?

Lúcifer sorri para ela e o Soldado Fantasma.

— Essa iremos precisar da Sedenta, uma adaga muito antiga. É amaldiçoada e estava no surgimento da vampira, a arma que ajudou a criá-la, será a arma que pode matá-la.

— Como sabe disso afinal? — questiona o Soldado.

— Como eu disse, fiquei muito tempo preso, eu ouvi e conversei com muitos demônios que me visitaram... se eles soubessem o quanto pequenos detalhes que cada um deixa escapar, saberiam que jamais deviam sequer falar comigo.

— Então, o que sugere? — indaga Sara, convencida.

— Primeiro, onde estão os outros? Vamos nos unir. — finaliza Lúcifer.

 

 

 

*********

 

Em um ponto afastado, um vampiro observa ao redor com seus olhos vermelhos. O cenário de cidade destruída e abandonada é ótimo para corrompidos e nomans se esconderem. Ele sabe que sua rainha ficará feliz em transformar mais um com habilidades superiores, então ele fareja o que pode ser alguém especial.

Ele caminha tentando não fazer barulho, deixa pegadas no asfalto frio com fuligem atômica, até notar o choro de alguém. Ele faz seus olhos ficarem normais, castanhos e se aproxima do som, uma garota encolhida no canto de um prédio caindo aos pedaços o atrai. Se ela não tiver habilidades, ainda será uma ótima refeição a ele e os Cains. Muitas vezes fazem prisioneiros, se alimentando aos poucos deles, afinal, não se deve desperdiçar nada.

A garota parece não notar sua aproximação, seu choro ecoa pelas paredes da construção destruída.

— Você precisa de ajuda, menina?

Ela vira o rosto em sua direção, os olhos embargados aparecem pelo capuz que cobre os cabelos claros, sua pele clara e rosto delicado exibem a juventude de uma adolescente.

— Você tem um grupo? Está sozinha?

— Meus pais morreram ontem, os orobas mataram eles. Estou sozinha.

O vampiro se aproxima dela, devagar.

— Eu posso levar você até meu grupo se quiser. Ficará segura lá.

— Mesmo? — fala a garota com sua voz fina em soluços.

— Sim. Me diga, qual sua idade, menina?

A menina se levanta em um sorriso discreto, passa a mão no rosto limpando as lágrimas.

— Dezesseis, o meu corpo.

— O que?

O olhar dela muda, sua voz passa a sair duplicada, a feminina e uma cavernosa ao mesmo tempo.

— Mas dentro de mim, milênios. — responde ela em um sorriso maléfico.

O vampiro se assusta, ouve diversas vozes ao seu redor, sons de seres rastejando nas paredes. Ele tenta correr para a saída, mas a porta se fecha rapidamente, olhos vermelhos flamejantes miram para ele na porta. Ele se volta para a garota e percebe que ela está logo ao seu lado.

O vampiro a ataca com as garras, certeiro em sua garganta, mas para a poucos centímetros de sua carne, paralisado. Ele começa a flutuar devagar, ouve os sussurros reptilianos ao redor, vários se aproximam, ele tenta berrar, mas sua boca está lacrada. Sua mão quebra-se para trás, depois o joelho, fazendo a perna voltar-se para frente. Ele geme surdo, suas costelas são quebradas, sua bacia é esmagada sem nada o tocar. A garota observa tudo com seus olhos flamejantes, o capuz cai revelando os cabelos platinados em um moicano.

O vampiro agoniza, sente sua cabeça sendo esmagada pelas têmporas, sangue escorre de seus ouvidos, ele urra em dor. Os olhos lacrimejam sangue até alguns estalos a mais fazerem ele ficar silencioso. Quando mudo, ele ainda é quebrado nos pés, nas pernas, nos braços para então, como um resto de carne, ser jogado na parede e ir ao chão.

Instantes depois, o asfalto começa a rachar, um pequeno tremor de terra cria pequenas fendas entre os possuídos que se afastam como serpentes assustadas. A garota não se move, observa uma fina neblina esverdeada sair das fendas, se unir e tomar a forma do rei dos infernos. Os grandes cornos de Mefistófeles são os primeiros a surgirem na penumbra, ele se forma em seus trajes negros e verdes. Seus pés sentem as camadas macias de fuligem atômica acumulada no chão, ele sente os possuídos à espreita e sorri exibindo sua espada curva. A Cimitarra da Luz cintila, seu reflexo atordoa as criaturas.

— É dessa forma que me recepcionam?

— Perdoe meus irmãos. — fala a voz cavernosa e duplicata da garota. — Eles ainda desconfiam de todos, demônios, vampiros, humanos...

Ele observa o corpo do vampiro recém destruído ao lado sendo arrastado para a escuridão da sala mais próxima, o som da carne sendo vorazmente rasgada e ossos triturados é atordoante.

— Vejo que estão se protegendo.

— Sim, mas ainda estamos com fome. Quando poderemos atacar a vampira finalmente? — questiona a líder.

— Em breve. Eu já avisei Baal, portanto, se orobas aparecerem, não precisa se preocupar com eles. Quero substituir os vampiros o mais rápido possível.

— Eu fiquei sabendo que a rainha levou uma sova, ontem. — Ela fala aos risos.

Mefisto rosna irritado.

— Eu mandarei o oroba a recuperar, mas daqui a alguns dias. Vou deixá-la no vazio um tempo.

Ele para notando a garota, como sua aparência é frágil e delicada.

— Parece que você gosta mesmo dessa ânfora, Zagan. A quanto tempo está no corpo dessa menina?

— Mia nunca mais irá despertar, eu já a dominei a mais de dez anos, é bastante útil, especialmente quando quero devorar um homem.

Mefisto revira os olhos.

— Cuidado para não engravidar sua ânfora, seria um problema no meio de uma guerra. — fala Mefisto, se afastando. — Todos os goetias já têm suas respectivas ânforas?

— Quase todos, não se preocupe com isso, tomar corpos é a nossa especialidade.


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