Apocalipse escrita por Natália Alonso, WSU


Capítulo 10
Capítulo 9 – O estrangeiro




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Você vai correr até uma fenda se abrir, a luz vai te guiar... é tão bonita... vai reconhecer ele assim que o ver, Metatron. Você verá tudo quando correr, verá nós e os outros, o que eu vejo... é tão lindo. Acho que ele irá chorar. — O rosto apodrecido deixa uma fenda ressecada exibir parte da arcada dentária da mulher. — Serena vai te ajudar nas flores... o anel... será rápido, sempre é rápido com você, Arthur. “

 

Ele corre. Por um instante, estende a mão e o outro velocista percebe. Os dedos múltiplos de ambos quase chegam a se tocar. A poucos centímetros disso acontecer, a massa negra se expande, tomando o lugar. Tudo fica negro e frio. E depois, um ponto branco aparece no fim do longo corredor. Arthur pode ouvir a própria respiração ofegante, o coração acelerado parece saltar em seu peito. Finalmente, ele corre até o ponto e atravessa o portal, pisa no asfalto quente da Avenida Paulista deixando para trás um rastro de fogo azulado no chão acinzentado.

Arthur para ofegante, exausto ele apoia as mãos nos joelhos e puxa o ar para si. Tenta se acalmar, o coração batia forte ainda e aos poucos vai desacelerando, ele olha para os próprios braços e nota uma fumaça saindo deles. Pequenos estalos elétricos azuis e amarelos saem de sua pele e se dissipam no ar. Em um movimento de inspiração ele endireita o corpo, olha ao redor os carros passando, um apito o assusta e o velocista sai da ciclovia, sendo xingado por dois rapazes de bicicleta.

Percebe que é a São Paulo que um dia ele conheceu, ou, quase ela. Algo está diferente, semelhante, mas mais intensa e viva. Talvez seja só porque só viu isso muito jovem, talvez sejam suas memórias brincando com ele.

Ele nota uma aglomeração de pessoas tirando fotos, então sai da ilha de segurança e vai até a calçada, vai até o vão do MASP. Encontra flores amontoadas em uma construção feita no chão, como se fosse um portal que fora selado. Ao lado, placas do governo agradecendo aos heróis que salvaram o mundo. O som do telão na “Choperia Opção” chama a sua atenção. Ele vai até a parte de trás do museu, vê as imagens de luta com demônios atacando pessoas no sambódromo.

Os ataques no sambódromo ainda são motivo de intensas manifestações, mas a população já faz diversas homenagens para a Frente Unida e a Frente Unida Extraordinária. — fala a jornalista, outro homem engravatado responde no microfone.

— Isso mesmo. Recentemente a família Maximus anunciou que a festa beneficente foi um sucesso e a reconstrução do sambódromo já foi iniciada. Até o momento, muitas celebridades estão auxiliando no processo...

Arthur se choca com as imagens, ele arregala os olhos.

— Não... não pode ser...

Facilmente ele reconhece Metatron, com suas imponentes asas e mãos aos céus. Ele chora em dor e agonia enquanto seu corpo desaparece no ar, se dissipando em inúmeros feixes de luz.

Infelizmente, nada foi explicado a respeito do “anjo” que aparentemente morreu durante a luta no sambódromo. — fala o repórter na televisão. — Mas falando em reconstrução, conseguimos uma fala exclusiva com os principais investidores.

As imagens focam no rosto de Karen, a garota de família rica que é uma heroína no local. Arthur não acredita no que vê, ao seu redor pessoas usam camisetas com “I ♥ K Max”. O lutador de MMA, Marcos Fonseca aparece na tela rindo alto e interrompendo a fala da adolescente.

— O Caveira!

Em sua mente, as imagens do insano traficante metralhando pessoas com sua gangue se misturam as imagens do sorridente e generoso lutador. Como podem ser realidades tão próximas e tão assustadoramente diferentes? A voz da repórter o faz olhar novamente:

Mas a outra investidora é internacional, a enóloga Miryan Winshester também auxilia diretamente nos...

O rosto de Lucy, a vampira, aparece na tela, Arthur fica estarrecido, a mulher elegante sorri lado a lado de Karen e Marcos. Aparentemente, os piores pesadelos de sua terra são os heróis desta. Seu salvador sequer está vivo e sua mão começa a tremer. Ele lembra que ali não tem o sedativo e correr no acelerador de partículas provavelmente fez seu corpo acelerar ainda mais.

— Eu não tenho muito tempo, não posso ficar aqui... — murmura para si mesmo.

Ele para pensativo, seu cérebro acelerado o faz pensar enquanto as pessoas estão se movendo lentamente.

— Pense, Arthur, pense... você tem que ajudar essas pessoas, tem que avisá-los... mas ao mesmo tempo, tem que voltar logo. — fala baixo enquanto corre até uma banca de jornal, ele olha para as prateleiras lotadas de revistas e jornais diversos.

Para as pessoas que olhassem ao redor, veriam apenas um vulto prateado que levantou o jornal, todas as folhas se moviam em poucos segundos, depois outro caderno, e outro, e outra revista. Enquanto os papéis ainda caiam ao seu redor, ele para tentando entender.

— Isso não faz sentido, uma luta de demônios invadindo a terra, tentaram escravizar a humanidade e eles faziam parte de grupos para nos proteger?

Ele olha as imagens dos demônios orobas lutando e protegendo pessoas, e outros demônios agredindo pessoas. Uma foto com um uma imagem distorcida azul e verde chama a sua atenção, o guerreiro estava no Parque Ibirapuera e não pôde ser captado por nenhuma câmera.

— Mefisto... até ele aqui é um... um herói? Essas pessoas, não estão adorando os heróis errados, eles vão destruir tudo... ou... ou é a minha realidade que está errada?

Então finalmente encontra outra foto da Frente Unida lutando no sambódromo, percebe ser ele mesmo na foto, mas muito mais novo.

— Eu também existo aqui! — sua mão treme, muito mais forte dessa vez.

Ele solta o jornal e segura o próprio pulso tentando se controlar, faz força para conter o movimento e acaba subindo por seus braços e ombros. Ele urra em dor com os olhos soltando faíscas amarelas e azuis, aos poucos o movimento para e o deixa exausto. Tudo isso ocorrera antes da primeira revista cair no chão, o jornaleiro finalmente começa a se mover para tentar pegar os papéis que pareceram voar sem qualquer motivo.

Arthur pensa em como ele vivia quando tinha aquela idade, o jeans e camisetas surradas indica que ele não aliou a Aliança, que ainda há tempo para salvar essa outra dimensão.

— Eu preciso me avisar, de alguma forma.

Ele volta para a avenida e nota que o caminho que passou deixara uma estática azul e amarela por toda a ilha de segurança principal, um rastro dimensional.

— Essa é minha passagem de volta, e isso permitiria até que... outro velocista pudesse vir para o meu mundo...

Ele lembra-se do velocista vindo no caminho contrário quando ele estava no túnel, sua imagem e voz distorcida era familiar, mas não podiam ver nitidamente por estarem em rotas opostas. Som e luz se propagam por ondas, em um cilindro de plasma e partículas super energizadas ocorre a deformação dessas ondas. Talvez se ele voltar agora pelo mesmo caminho, se ele usar o caminho oposto ele possa encontrar o velocista, se comunicar com ele para o convencer a ajuda-los em seu mundo.

— Eu tenho que tentar. Qualquer coisa...

Ele pensa no sonho que tinha quando criança, o sonho com olhos em seu armário, o medo que o tomava todas as noites. Muito antes dos Cains dominarem a Europa, muito antes da Aliança.

— É isso. — conclui ele.

 

 

 

Enquanto isso, na dimensão de Apocalipse

 

Lúcifer caminha apressadamente pela superfície da terra, ele observa o refúgio de São Paulo, destruído pelo ataque da gangue do Caveira. O cheiro de decomposição invade suas narinas, para ele, é agradável.

— Ah, normalmente eu adoraria ver essa cena. — fala ele para a fumaça negra que o rodeia e toma forma do Soldado Fantasma.

— Essas pessoas eram os saqueadores, não encontrei ninguém de minha liga dos assassinos entre os mortos.

— Você quer dizer, Aradia. Foi a única que sobrou do seu grupinho. — rebate cruelmente o demônio para a sombra.

— Não está em posição muito melhor do que a minha, filho de Moloch. Conte-me de novo, como ficou aprisionado milhares de anos, e como teve seu reino tomado pelo próprio irmão.

Lúcifer franze as sobrancelhas para a neblina negra, apesar dos contornos inexpressivos do soldado, ele sabe da zombaria dele.

— Pelo menos eu tenho um corpo, e um coração. — fala ele andando.

A sombra acompanha o demônio com o olhar, depois o segue.

— Você disse que tinha um plano, que tinha aliados poderosos para lutar contra os Cains.

— Eu tenho contatos, não são meus aliados, mas tenho certeza que não estão aprovando o que está acontecendo aqui... O problema é que não costumo ser muito bem-vindo lá.

— Lá, onde? Consigo imaginar que não seja bem-vindo em muitos lugares.

— Onde não é permitida a entrada de nenhum demônio... terei que pedir permissão para... — Lúcifer para pensativo e como que conformado se ajoelha. — Pode por favor me dar um minuto sozinho?

O Soldado olha ao redor, e decide procurar algum sinal de onde Aradia possa ter ido junto dos sobreviventes. Lúcifer espera ficar isolado e então fecha os olhos, leva as mãos a frente do rosto com as palmas unidas e faz o que achou que jamais faria. Ele reza.

— Eu, Lúcifer, príncipe dos infernos, filho de Moloch, peço a permissão de entrar no Reino dos Céus, para ter com o Senhor e seu exércit...

Antes que termine a fala, ele sente uma brisa fresca passando em sua face, abre os olhos e vê que já não está na terra, mas pisando em um chão de mármore claro e o piso infinito ao seu redor. Não há portão dourado, nem nuvens ou jardins. Apenas uma pedra clara e não polida infinita para todos os lados e a luz dourada e cálida como que estivesse em nascer do sol.

— Isso foi mais rápido do que pensei. — sorri o demônio de cabelos e túnicas negras.

Ele se levanta e vira-se para encontrar o reino que sempre lhe disseram. Nada, só o infinito piso de pedra e o sol. Então vira completamente e nota que a imagem é a mesma, inclusive o sol. Ele vira para outra lateral, e percebe que outro sol aparece, a mesma paisagem.

— Mas que diabos é isso?

— Não blasfeme aqui. — responde a voz a trás de si.

Lúcifer se vira e nota um anjo em sua belíssima armadura dourada, as asas brancas e peroladas são imponentes e pousam sobre as costas dele. Os cabelos louros e cacheados do anjo contornam seu rosto até o queixo, sua aparência é calma, ao mesmo tempo que rígida.

— Miguel, a quanto tempo que não o vejo.

— Desde a época que seu pai era vivo. Aliás, meus pêsames por isso.

— Oh, sim. — Sorri o demônio. — Isso faz muito tempo, fiquei o suficiente nas masmorras “me consolando”.

— Sim, eu soube.

— Soube, e não fez nada...

— O que queria que eu fizesse? O acordo sempre fora esse, os demônios não interferem no Reino Celestial e nós não interferimos nos vossos.

— E quanto a terra? Os humanos não eram os queridinhos? Nosso alimento está ficando escasso, há muitos demônios e poucos pecadores... os humanos só sofrem e não tem mais força para pecar. A criação divina está sendo profanada a muito tempo, e não fazem nada?

— É só por isso que veio aqui? Para contestar a decisão divina? — responde o anjo de forma séria.

Lúcifer para, olha ao redor e volta.

— Não. Eu vim chamá-los para luta. Mefisto está passando dos limites. Assim como os infernos, se a criação for completamente destruída o céu perecerá, sem adoradores, sem essência divina retornando...

— Nós só interferimos em último caso, quando é preciso começar novamente.

— Bom, um dilúvio agora não seria má ideia! — responde com sarcasmo, Miguel apenas deixa os olhos semicerrados. — Ou, poderia me auxiliar nessa luta. Alguns anjos que possam lutar seriam...

— Isso está fora que cogitação!

— Ah! Qual é! Isso não seria um grande esforço para vocês, dê-me uma centena e retomo toda a terra em uma semana. Eu prometo que devolvo todos os passarinhos!

— ACHAS QUE PODES BARGANHAR AQUI?! — responde o arcanjo, furioso. — Tu, que és do mesmo sangue que Mefisto, acha que iremos...

— Nossa, eu consegui mesmo te tirar do sério? Nem em Sodoma eu te vi tão... irado?

O anjo fica com os olhos vermelhos, sua face franze completamente e grita.

— Não pode mudar nada! Não pode fazer mais... — A tosse interrompe sua fala.

Lúcifer olha assustado, recua um passo e torna a olhar em torno novamente. Volta-se para Miguel que está curvado em longas tossidas, o demônio tenta segurá-lo, mas suas mãos atravessam o corpo do arcanjo. Então finalmente entende.

— Isso é uma ilusão. Mostre-me, Miguel.

Os olhos azuis do anjo miram o demônio por um instante e, de repente, Lúcifer vê a realidade do céu. Tudo é destruição, os corpos de anjos e partes de almas estão espalhados por todo o local, novamente, a perder de vista. O piso claro é quase todo manchado de sangue e fuligem, Lúcifer escorrega, percebe que estava pisando nos restos mortais de algum ser celestial. Então mira a frente e encontra Miguel, de joelhos no chão e com múltiplas lanças atravessadas em seu peito que o fixam em uma posição inclinada.

Sua armadura está retorcida e o corpo todo queimado, sem uma das mãos. Ele treme com os olhos e tosse um pouco mais de sangue que escorre pela lateral da boca.

— É tarde demais. — murmura o arcanjo.

Lúcifer se aproxima com as mãos de lado, como se pensasse em alguma forma de tirar as lanças do guerreiro.

— Não faça isso. Não importa mais. — avisa Miguel.

— O que aconteceu?

— Ele veio aqui.

— Mas os orobas e vampiros? Como subiram?

— Ele trouxe as Karens. Ele as controlou com a Lança de Longinus. Armas amaldiçoadas ferem as clonadas, mas as benditas... são como palha para elas. — O arcanjo balança o resto da espada azul flamejante na mão restante. A lâmina quebrada exibe o brilho azulado que a constitui como um dos objetos mais poderosos existentes. — Você a queria usar nas Karens, não é mesmo? Sinto dizer que veio à toa.

— Tem que haver outra forma de vencer Mefisto. Onde eu posso encontrar os anjos que sobraram? Eles vão lutar pelo que aconteceu aqui!

— Não está entendendo, Lúcifer. Não sobraram.

— Não... isso...

— Ouça, a Lança de Longinos é maldita, tudo o que foi amaldiçoado pode dominar as aliens. Nós conseguimos tirar a lança dele, ela caiu, mas só depois que fomos destruídos.

— Onde está a Lança?

— Ela tinha sido escondida onde nunca deveria ter saído. Estava no Santo Sepulcro...

— Eu não posso pisar lá, mas posso conseguir alguém que...

— Tolice, ela já está nas mãos humanas. A criatura sempre se esforça em encontrar objetos amaldiçoados, nunca os benditos. Agora, tudo está perdido...

O rosto queimado e olhos com veias estouradas tremem em agonia da dor que está sentido, Miguel sorri para o demônio.

— O inferno irá morrer, Lúcifer, assim como nós.

O demônio olha em choque para o arcanjo morto diante de si, recua devagar tropeçando no braço de outro cadáver e quando cai, está no chão da terra novamente. Estarrecido, ele olha para o lugar destruído e a poeira atômica se levanta quando ele se apoia no cimento para se levantar. A aura negra chega e paira ao seu lado.

— E então?

— Precisamos encontrar os saqueadores, não teremos ajuda externa.

— Mas você disse que...

— EU SEI O QUE EU DISSE! — responde irritado. — Mas eles não podem mais nos ajudar.

— E então?

— Precisamos encontrar os saqueadores, a resistência que sobrou. Se conseguirmos a Lança de Longinus, podemos ainda vencer essa luta.

— E onde ela está?

— Acho muito provável que esteja com aqueles que conseguem controlar as Karens.

— A Aliança? É possível... apesar que achei que eles usassem os controles mentais por meio dos chips de controle. — fala o soldado em sua voz ecoante.

— Mas uma ajuda amaldiçoada sempre é bem-vinda... — Lúcifer para pensativo. — E quanto aos saqueadores?

— Acho que sei o que houve aqui. Há sinais de pelos vermelhos por toda a parte, marcas de garras e encontrei alguns caveiras mordidos.

— Pitangas? A tribo veio para a cidade?

— Henrique disse que a líder poderia estar viva, se ela veio para cá, provavelmente os levou consigo. Há muitos esconderijos no meio da floresta, mas poucos onde podem levar a zumbi.

— Estão com a zumbi? Porque não disse logo, posso rastreá-los facilmente então.

— Pode?

— Os naurús são amaldiçoados por outros deuses, não posso rastreá-los, mas a zumbi foi amaldiçoada pelo mesmo criador dos céus e infernos. Ela é “da família”.

 

 

Brasília, residência do Caveira

 

A drácula está nos aposentos, no escuro a mulher tem os olhos abertos e os globos completamente negros, inerte e parada em transe. Sentada na poltrona ela não percebe Marcos entrar no quarto, ele se aproxima ao notar seu estado. Apenas a lua ilumina parcialmente o quarto e ele para de frente a ela, faz um movimento com a mão mecânica a frente de seu rosto verificando sua apatia.

O sorriso em seu rosto deformado mostra a satisfação pela oportunidade perfeita, ele leva a mão nas costas, mas antes de puxar de volta sente o arfar quente de Baal ao seu lado. Ao virar o rosto, encontra na mesma linha o queixo proeminente do cabeça de touro. O aro dourado em sua narina e olhos vermelhos completam o visual do demônio.

— Procura por alguma coisa aqui, primata?

O barba loura ri torto.

— Engraçado você me chamar de primata, sendo você um meio quadrúpede.

O som do casco pesado de Baal mostra uma aproximação.

— Não respondeu à pergunta.

— Vim apenas saber se estavam bem. — fala tirando a mão de baixo do casaco de pelo de urso e mostrando um mapa dobrado tirado do bolso. — Temos dados de esconderijos dos vermelhos, só precisamos saber em qual deles devemos atacar.

— E como conseguiram isso?

— Digamos que encontrei um lobo mau andando por aí. Ele não era como minha sobrinha, o fizemos falar até cantar. — fala em um sorriso mórbido. — Mas ele não sabe realmente em qual dos esconderijos os pitangas levaram os saqueadores.

— E quanto a líder? A prisioneira que você deixou escapar?

— Eu a pegarei novamente. — fala tirando o sorriso do rosto. — Ela tem um caso com um saqueador, eles estão juntos. Vamos resolver dois problemas de uma só vez.

— Então nesse caso deve ir para o Mato Grosso, Cáceres. — responde a vampira, recém saída do transe.

Eles se viram encontrando os olhos verdes dela atravessando o breu.

— Como sabe disso? — questiona o traficante.

— Meus vampiros rastrearam o cheiro da pitanga. Acabei de me comunicar com eles. Leve seus homens e tragam a cabeça da garota. E também os corrompidos, nomans... traga todos. Não falhe dessa vez.

— Trago todos os corpos que a “Dona rainha quiser”. — provoca.

— Quero eles vivos.

— Mas o que? É muito mais fácil simplesmente os matar!

— Sim, mas imagine o que posso conseguir com vampiros com poderes de corrompidos... seriam guerreiros ilimitados, controlados por mim, é claro.

O Caveira baixa os braços, ajeita o casaco se afastando do demônio ao lado.

— Como quiser.

Ele faz um cumprimento com a ponta do chapéu caubói e sai do quarto. Do lado de fora Matheus o aguarda com uma submetralhadora na mão.

— Por que não atacou? Eu fiquei aguardando, eu disse que podia dar cobertura do cavalão! — sussurra o primo.

— Ele estava muito próximo, quando quer o casco pisa macio. Agora temos que pensar em como trazer todos. Isso não me cheira bem.

— Por que teremos que trazer eles vivos?

— Se eles querem vampiros corrompidos, para que vão precisar de humanos como nós? Essa vaca quer nos substituir.

— Merda... — murmura Matheus.

— Vamos, tenho que pensar em alguma coisa.

Do lado de dentro do quarto, Lucy leva a mão no chão e clama.

Mefistófeles.

Apesar da invocação, nada acontece.

— Ele pediu que eu lhe auxiliasse no que precisar. — responde Baal atrás da rainha dos condenados.

— Ele está ocupado... novamente?

— Provavelmente só está cuidando de assuntos do reino dos infernos.

A vampira se levanta, olha para o oroba gigantesco. Vira-se, balança a cabeça de lado e rosna baixo. Vai até a varanda e sobe no beiral.

— Onde você vai?

— Não se preocupe Baal, não precisa esconder nada de meu esposo. Ele sequer irá perguntar onde eu fui.

Ela salta do beiral para fora.

 

 

Em outra dimensão

 

Arthur espera ansiosamente o crescer da barra de tarefas, o tempo da ampulheta girando lhe parece uma eternidade. O computador grava o CD em poucos minutos, enquanto isso, ele foi até o parque Ibirapuera e vê os furos de flechas no planetário. O mapa astronômico fora substituído por uma versão luminosa pela vampira, algumas pessoas tiram selfies no local. Ele se assusta com um garoto com máscara de Caveira correndo atrás de outro com patas lobo em plástico.

Então ele vai até o Anhangabaú, onde teve outro conflito, observa as marcas de garras nas paredes do prédio Martinelli. No Parque da Cantareira encontra as grades verdes brilhantes que fecharam o portal para o inferno, construção de Mefisto no mundo de lá. Então algo lhe chama a atenção, lá ele pode ver um rastro brilhante azul, como uma eletricidade. Ele nota que as pessoas não enxergam isso, que não aparece nas fotos, mas ele pode ver o rastro do Arthur dessa outra terra.

— Se eu soubesse onde ele está, poderia falar diretamente... Se eu tivesse mais tempo, poderia rastreá-lo, mas se eu posso ver o rastro dele... talvez ele veja o meu...

Então lembra do CD sendo gravado no computador da lan house. Ele corre pela cidade, em um pequeno salto pode passar por cima de ônibus e toca o chão suavemente para não danificar o asfalto. Passa por pessoas causando um vento forte em suas roupas, um milk shake roubado lhe refresca a memória de algo que remete diretamente a infância, quando não havia demônios atacando pessoas. Suga rapidamente a densa mistura de baunilha e caramelo até a loja, pega o disco que acabara de ser gravado e leva sua encomenda até onde ela possa ser achada.

Na corrida os passos suaves desviam das pessoas, ele passa novamente na banca de jornal, onde o lojista está finalmente terminando de recolher as últimas revistas. Ele acelera, não tem tempo para admirar a paisagem. Mesmo que lhe cause tanta saudade. Ele não queria ter que voltar, para o caos, para a guerra... Mas então lembra do rosto cálido e bochechas rosadas de Serena. Seu sorriso com covinhas dizendo que queria que ele escolhesse o nome do filho, ele acelera.

Então na corrida ele olha para as pernas, um rasgo no uniforme prata exibe a perna coberta de crostas em ferimento do câncer e radiação. Um brilho amarelado pulsa do ferimento a cada passo. Ele acelera os passos.

Instantes depois, Arthur retorna até a avenida Paulista novamente. Na ilha de segurança central ele observa o percurso soltando faíscas amarelas e azuis, seu próprio rastro dimensional. Sente seu corpo tento pequenos espasmos, contrações musculares do que serão os tremores em breve, mas ele não pode esperar por isso nessa dimensão. Precisa voltar o quanto antes. Então tenta relaxar por longos dois segundos, e inclina o corpo para frente no primeiro passo, quebrando o asfalto atrás de si com o impulso inicial.

Os braços se movem lateralmente lentamente para a sua visão, onde os carros e pessoas estão completamente paralisadas. O Jornaleiro terminou de recolocar as revistas e impressos no lugar, está se sentando confortavelmente em seu banquinho quando um piscar de luz passa pela parte central da avenida. Vidros dos carros se quebram com o ar sendo cruelmente cortado e Arthur dá o terceiro passo. No quarto não é mais visto, ele corre até o final da Avenida em quase 62 passos e quase na entrada do rebaixado ele pisa no ar e sente o tubo dimensional.

Tudo escuro a sua volta, ele vê um feixe de luz azulado correndo mais a frente, o som da voz finalmente é entendível.

— É o único jeito! Nós temos que fazer isso! — fala o velocista de calças azuis.

Arthur corre no tubo dimensional, agora ele está na mesma direção que o velocista, pode enxergar que ele usa um traje azul com detalhes brancos e prata. Arthur acelera mais o passo e nota que a mulher está sendo carregada no ombro do velocista, sendo levada contra sua vontade. Dando passos mais rápidos ele grita.

— Quem é você? O que está fazendo?

Os gritos se dissipam no extremo ruído do tubo, então ele vê a tela transparente na lateral passando rapidamente. Ele está chegando, muito mais rápido do que quando passou. Será que é o efeito cumulativo de dois corredores no tubo? Seus pensamentos ficam confusos quando nota que do outro lado do laboratório as Karens tentam abrir a porta que os separa. As clonadas dão socos repetidamente em um mesmo ponto, Manson está com uma grande arma nas mãos.

Arthur vê a tela se passar na lateral, ele grita novamente para o corredor a frente que está mais próximo agora. Porque ele parece não ver o que acontece de fora do tubo?

— Ei! Quem é você?

Então o corredor se vira, vê Arthur atrás de si, mas parece se assustar com a visão, ele dispara e corre ainda mais, tornando seu corpo alongado e desaparecendo de uma vez. Arthur olha novamente para a tela do lado de fora do laboratório, Serena está com as mãos apoiadas na mesa de controle. Ela olha para ele e seu rosto mostra o horror do que ela vê.

Arthur então olha para si mesmo, suas mãos estão deformadas, os tremores começaram desde que ele entrara no tubo, mas não percebera. Ele não sente dor, não sente os pés no chão do tubo, não sente absolutamente nada. Seu corpo parece se expandindo cada vez mais, e a cada tremor, é uma camada que se solta dele mesmo. As roupas foram pulverizadas, e atrás de si uma poeira se dissipa junto de raios amarelos e zuis.

Ele sabia que a radiação o consumiria, que quanto mais rápido ele corresse, mais ela iria embora, e agora ela se vai junto de seu corpo cada vez mais instável. A cada passo uma camada de pele e músculos são dissipadas, a cada braçada os ossos ficam mais aparentes. Ele está já vendo a luz do final do tubo, da passagem para a dimensão. Mas essa luz que irá lhe guiar não é a do mundo apocalíptico.

Arthur corre dentro do tubo, ele volta seu olhar para Serena já com as mãos na boca em pavor. Jonas percebe o que acontece e berra pelo herói que se desmancha diante dos olhos de todos e desaparece no ar. Apenas algumas fagulhas amarelas permanecem antes de também apagarem.

Aradia vê que o velocista não vai voltar, ela pega a boneca voodu e esmaga a cabeça dela no chão. As Karens levam as mãos nas têmporas em dor e desmaiam, poucos instantes depois de conseguirem abrir a porta. Quando Manson aponta a arma, Jonas atira bolas de teias cobrindo o cano, o tiro faz a arma explodir na mão do major. Outras bolas de teia o prendem na parede e o grupo escapa deixando para trás as faíscas azuis do tubo do acelerador de partículas.


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