Children escrita por Lillac


Capítulo 2
. of war


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem :)



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.of war

 

Annabeth havia observado, corpo e mente rígidos, quando Jason se inclinara para cumprimentar Percy pelo trabalho bem-feito em Nova Roma.

Talvez não houvesse uma estática no ar, ou eletricidade, ou o cheiro de maresia — os dois com certeza teriam notado aquilo — mas ela se perguntou se haviam outros tipos de presságios para desastres naturais. Abaixando os olhos para o próprio prato, ela se perguntou se havia algum modo de saber quando a guerra estava chegando. Reyna havia girado a maça na mão, afundando as unhas na pele viscosa, o sulco escorrendo pelos dedos lânguidos. Seu olhar era obsidiana dura e impassível, a forma como ela os observava por sob os cílios espessos.

Ninguém mais parecia ter ouvido o comentário. Isso, ou os romanos eram muito bons em fingir ignorância. Mas Annabeth notou. Ela olhou de novo para o rosto de Reyna. Haviam pequenas linhas pálidas distribuídas pela sua pele, como haviam nas de todos os eles. Mas ela conseguia ver a forma estranha, quase periódica, com a qual ela franzia a sobrancelha esquerda. Como se inclinava um pouco mais quando Leo falava daquele lado.

Ela é parte surda, ela pensou. Ou bem perto disso.

Listou na sua mente que tipo de coisa podia causar surdez em alguém que parecia tão saudável. Doenças degenerativas, com certeza, mas Reyna parecia o tipo de semideusa que estava frequentemente em batalha, deveria ter comido muito ambrósia em seus anos de guerreira, e a comida dos deuses tinha o interessante efeito colateral de se livrar de pequenas mazelas mortais, como resfriados ou doenças, sem que eles percebessem. Ela levantou o olhar para o céu, para Argo II, em todo o seu esplendor. E sua atenção parou nas balizas.

Juntando os fatos, era simples de ver. Reyna reagia aos menores sons, mesmo que quase imperceptivelmente. Um levantar de sobrancelhas, um repuxo nos lábios, um batucar com um dedo na mesa. Tudo para esconder um evidente desconforto. E a surdez parcial confirmava suas hipóteses. Ela havia sobrevivido à alguma grande explosão. Os efeitos ainda perseguiam a jovem pretora.

Jason e Percy continuaram conversando sobre as suas aventuras, quase ignorando-a, e Annabeth teve vontade manda-los parar. Quem era estúpido o suficiente para pisar em solo romano e desmerecer a hospedagem? Talvez Jason se sentisse seguro o suficiente porque Reyna era sua amiga, mas a julgar pela forma curiosa como ela o observava, talvez a garota não tivesse mais tanta certeza assim. Annabeth achava um perigo desnecessário brincar com a hospitalidade daqueles haviam sido seus inimigos durante tanto tempo.

Mas o que ela diria? Prestem atenção na garota, caramba? Não. Havia entendido assim que vira Reyna franzir o cenho para a magia na voz de Piper que elas estavam jogando um perigo jogo de suposição. Ela estava lendo seus movimentos tanto quanto a pretora lia os dela. Se jogasse suas cartas na mesa, era impossível prever o que ela poderia fazer. E, mesmo assim, um monstro de angústia lhe apertava a garganta, enquanto as vozes de Percy e Jason se misturavam no fundo.

Os dois amigos romanos de Percy pareciam cruelmente deslocados, o que lhe deu um pouco de pena. Era nítido que não eram inteiramente romanos, mas não se encaixavam com os gregos também. Talvez só se encaixassem com Percy, mas o namorado dela estava ocupado. Queria perguntar sobre eles. Sobre os olhares aterrorizados do garoto para Leo, e sobre a forma tímida com a qual a menina desviava o olhar.

Mas não podia. Não quando Reyna estava bem ali.

Eventualmente, ela ficou à sós com a pretora. Queria não ter ficado, porque agora sabia exatamente qual explosão a machucara pelo resto da vida, embora Reyna não tenha insinuado nada. Podia ver que eram parecidas, e, de repente, começou a sentir-se esperançosa.

E então Leo atirara com as balizas, e o mundo de Annabeth se tornou um inferno resfolegante. Sentiu o cheiro de sangue fervido, de carne queimada, os sons da morte na colina abaixo. E viu o fogo refletido nas írises escuras de Reyna.

— Você me traiu, Annabeth — ela disse, em um tom simples que não revelava surpresa — e dizem que Roma é a terra dos traidores.

« »

Minha culpa? — Jason gritou à plenos pulmões. — Não fui eu quem—!

— Parem! — Annabeth interveio, afastando os dois. Não sabia de onde Leo tinha tirado aquela coragem, mas não era um atributo que ele deveria ter contra o filho de Júpiter, principalmente quando já havia uma tempestade lá fora esperando para engoli-los. — Não importa de quem é a culpa!

Mas importa, uma voz miúda disse em sua cabeça. Nós desrespeitamos Roma, bem na casa deles. Cuspimos nos esforços da pretora, e pedimos por uma aliança depois.

O Argo II ribombou com um trovão e Leo, o mais leve deles, escorregou e quase despencou da amurada. Piper o segurou a tempo. Jason saiu pisando firme, e Annabeth deixou-se suspirar.

— Alguma notícia deles...?

Percy pareceu desolado.

— Nada — ele comprimiu os lábios, que estavam pálidos. — Eu deixei que...

Ela colocou uma mão no peito dele, tentando afagar.

— Não foi sua culpa.

Mas foi, a mesma voz voltou a ressoar. Se tivessem feito algo, Frank não estaria entre a vida e a morte com uma pedra enfiada na cabeça.

Mas não havia nada que eles pudessem fazer agora. Precisavam de afastar com o navio o máximo que podiam. Se havia interpretado Reyna corretamente, ela primeiro se certificaria que nenhum dos seus estavam morrendo dentro dos limites de Nova Roma antes de partir contra eles. Se houvessem dois pretores, um estaria cuidando dos feridos e outro investindo, mas era só ela.

Graças aos deuses, era só ela. Os outros dois pretores estavam naquele mesmo barco, se esforçando para não piorarem o vendaval lá fora. E, mesmo assim, o pensamento não lhe trouxe grande conforto. Reyna podia ser só uma, mas havia estado a bordo de um navio pirata por tempo demais para não saber como as rotas deles funcionavam. A pretora não era uma filha de Poseidon, mas não era preciso uma pesquisa muito profunda em livros da história para ler sobre os grandes capitães das frotas inglesas que haviam sido mortos por meros corsários com sabres e mentes afiadas. Para o bem ou para o mal, às vezes a inteligência era muito mais perigosa do que o talento intrínseco.

— Ela não vai nos alcançar — Percy havia prometido — ninguém sabe guiar um navio como eu.

Annabeth havia concordado.

Barba Negra velejou os mares por décadas antes de ser preso por Circe, ela remoeu. E ele não era o mais gentil dos piratas.

— Eu me pergunto quantas pessoas ela jogou da prancha — murmurou, baixinho.

Percy piscou.

— O que?

Ela o beijou com sutileza. Queria conseguir acalmá-lo, mas sua própria cabeça a traía.

— Nada. Vá dormir.

« »

Pousar era uma péssima ideia, mas ela já sabia disso.

Primeiro vieram as águias. Annabeth nunca havia realmente apreciado águias tão bem quanto no momento em que as viu, cortando o céu nublado como lâminas afiadas e caindo sobre eles, enfiando suas garras em sua pele, puxando e bicando. Jason moveu os ventos para afastá-las, mas então vieram os lobos. A primeira alcateia apareceu uivando no limite da montanha, e os outros seguiram. Era difícil manter as águias sob controle quando havia um lupino agarrado ao seu braço. Leo atacou com fogo, e Piper com charme, e Annabeth deu o melhor de si para desviar dos animais. Mas os romanos nem estavam atacando ainda.

Do cais, veio a voz de Octavian.

— Eu pararia com o fogo, se fosse vocês.

Ele vinha seguido por uma legião. Os cavalos avançam lentos, com cautela, e Annabeth não precisou olhar muito para saber o porquê. Nas selas vinham fracos tampados de fogo grego, brilhando verdes, famintos. Ela sentiu a pele formigar. Haviam muitos. Bastava que um quebrasse para que Octavian mandasse todos — inclusive ele mesmo — para o inferno. Era um plano extremamente perigoso. Mas os romanos consideravam o sacrifico em batalha digno de honra, e talvez Annabeth o tivesse julgado errado, e o pequeno oráculo fosse um pouco mais romano do que pensava.

— Alto! Segurar — outra voz ribombou, dessa vez mais grossa.

Os romanos montados seguraram os arcos flexionados, apontados, mas não atiraram. No centro da formação, uma figura maior e mais corpulenta cortou a passagem. Vinha em um garanhão de pelagem escura, com uma armadura completa e parecia bloquear quase toda a luz do sol. Em um lado da face, tinha uma cicatriz tão grande e espessa que o cabelo não mais crescia. Annabeth engoliu uma exclamação. Percy não conseguiu:

Frank?

Ele esporeou o cavalo. As águias e os lobos haviam parado de avançar. Annabeth sentiu-se minúscula quando ele se aproximou.

— Suas balizas detonaram as proteções de Nova Roma — ele contou, em um tom grave. — No dia seguinte, hordas de monstros invadiram a cidade. A cidade, Percy. Faz ideia de quantas crianças e idosos eu vi morrer, preso no quarto da enfermaria sem poder me mover, ou lutar?

— Eu... — Annabeth tentou.

— Foi um plano e tanto — Frank concedeu, acenando com a cabeça. — Perder a memória, se tornar um de nós. Quando vocês chegaram no acampamento, eu quis que Reyna confiasse em vocês, mesmo sabendo que não era provável. E quando ela o fez...

Ele franziu o rosto, evidenciando a marca.

— Jamais deveria ter confiado em uma filha de Minerva — disse. — Você dobrou suas palavras e convenceu nossa pretora. É inteligente, Annabeth, mas agora é uma traidora de Roma.

Annabeth não tinha nenhuma afeição por romanos, mas não desejava ser traidora nenhuma. Ela notou o quanto Frank havia crescido, o quanto ele lhe superava em tamanho e austeridade.

— Quantos filhos da guerra você conhece, Annabeth? — ele questionou.

A pergunta lhe pegou de surpresa. Ela pensou em Clarisse. Em Silena também, de certa forma. Mas sabia que a guerra deles era diferente. Não respondeu.

— Deixe-me lhe contar algo sobre a guerra — ele desmontou do cavalo. — Um dos truques mais antigos, consiste em distrair o inimigo com uma ameaça mais óbvia, entende?

Alguma coisa clicou na mente dela, como engrenagens girando. Mas foi rápido demais. Uma sombra passou pelo rosto de Frank, um relincho, e então ela ouviu um grito de dor tão absurdo que sentiu seu próprio coração quebrando, em cacos. Olhou por cima do ombro, horrorizada, apenas para ver o cavalo de Hazel, batendo satisfeito com os cascos no gramado, relinchando baixinho. O elmo de ouro da menina não lhe permitia ver sua satisfação, mas Leo era um garoto leve.

Leve o suficiente para ser carregado da ponta de uma lança de cavalaria, com a lâmina atravessando seu coração.

Sangue espumou de sua boca, e ele ainda moveu as mãos, tentando alcançar o peito. Hazel segurou a arma com as duas mãos até os movimentos cessarem, e então jogou-a no solo, como se não fosse mais que uma lança quebrada. Annabeth quis correr, mas Frank a segurou pelo queixo. De perto, o rosto dele lhe causava calafrios.

— Existe outra também — ele contou — no qual você reúne o contingente inimigo em um aglomerado, e ataca pelos flancos. É bom para quebrar barreiras e dispersar. A Roma original usou muito essa estratégia. Dividir e conquistar.

Mas, à essa altura, Jason e Percy já estavam fazendo as montanhas tremerem, lençóis freáticos irrompendo até a superfície, chicotes de água girando ao redor deles, e vento arrancando as árvores mais próximas. A cabeça de Annabeth mergulhou na cacofonia. Os romanos surgiram das duas pontas, gritando e batendo com as lanças nos peitorais. As águias voltaram a atacar, os lobos pularam. Um conseguiu acertar Jason na garganta com a mandíbula, e ela ouviu quando Piper teve os olhos arrancados por uma ave.

— Pare... — ela pediu... — pare...

— Mas a mais eficiente continua sendo uma boa e velha armadilha — ele contou, unindo as mãos na frente do peito.

Annabeth ouviu as asas resfolegando acima da cabeça dela. Sentiu o couro caindo sem seus ombros, coroando seu pescoço, e sentiu-o quando foi puxado. Caiu para trás, a cabeça em uma pedra, e o ar deixou os seus pulmões. Tossiu e enfiou as mãos no solo, tentando desesperadamente se prender à algo. A terra entrou em suas unhas, sua cabeça girou, sentia o sangue empapando o queixo, correndo nos ouvidos...

O Pégaso pousou. Do topo da sua sela, Reyna puxou o chicote com mais força e arrastou Annabeth até ela. O mundo tinha virado uma confusão de cores e sons, e ela não sabia dizer mais o próprio nome.

Se fossem dois pretores, um ainda estaria em nova Roma....

Mas entendeu quando a pretora disse:

— Pela autoridade em mim investida, eu lhe declaro prisioneira da Legião.

Eram dois. Eram dois, e estavam ambos ali.

« »

 

A garganta estava seca e ardia, haviam-se formado crostas em seus joelhos onde o sangue secara, e a fuligem misturara-se ao suor e as lágrimas no rosto. Quase não havia luz ali. Annabeth não sabia quanto tempo se passara. Às vezes, alguém lhe dava uma castanha e um copo de água, mas não era mais do que isso.

Estava inconsciente quando lhe tiraram de lá. Abriu os olhos no meio do percurso por onde estava sendo arrastada. As unhas dos pés haviam crescido, e quebrado, e crescido de novo. Eram uma visão grotesca de sangue coagulado e sujeita. As roupas eram de um tecido que pinicava, mas pareciam mais limpas do que as que estava usando que perdera a consciência. Lá embaixo, no vale, os romanos lhe gritavam baixarias e insultos, atiravam comida e dejetos.

No topo, Reyna e Frank a aguardavam.

Ela passou por um interrogatório. Quando pensou em mentir — quando disse que era uma verdadeira amiga de Roma, que jamais lhe desejara mal — um dos cachorros de Reyna arrancara metade da falange de seu dedo, e ela só contou a verdade a partir de então. Os romanos pediam sangue. Mas os dois pretores permanecerem frígidos.

Subitamente, Annabeth percebeu que não queria morrer.

Achava que uma vida tão próxima da morte lhe teria acostumado. Havia crescido com Quíron lhe dizendo que semideuses não viviam muito. Pensava que já teria aceitado. Mas não havia.

Não queria morrer, não queria morrer, não queria...

Ela foi arrastada até outra colina. Mas afastada e com menos plateia. Havia um palanque e uma forca. Ela sentiu os joelhos tremendo. Uma sombra se projetava sobre eles.

— Mantenha o rosto virado para o oeste — Reyna lhe sussurrou, em uma voz sutil.

Soava como misericórdia. Mas Annabeth não achava que ela era capaz daquilo. Subiu no banco e esperou, mas Frank ergueu uma mão para a multidão que ainda os seguia.

— Não haverá enforcamento — disse, o que foi recebido com muita rejeição — a filha de Minerva será decapitada. Essa é nossa palavra final.

Ela foi forçada a se ajoelhar. Quando deitou a cabeça no cepo, porém, esqueceu-se das palavras de Reyna, e viu. E viu.

Bile se misturou ao sangue em sua boca e ela vomitou, chorando. Não haviam usado pregos, mas as cordas em torno de seus pulsos eram tão apertadas que haviam deixando tudo em volta roxo. Estava magro, com o rosto fundo, e uma centena de ferimentos de bicos de rapina haviam sido abertos em seu rosto e torso. Ela chorou mais, sem forças para dizer nada que não:

— Percy...

— Ele nos traiu quando era pretor — Frank disse, enquanto tirava o cabelo dela da frente da nuca. Annabeth tremia. — Não podia esperar misericórdia por ele.

Não, não podia, ela pensou. E mesmo assim, aquilo não a fez deixar de vomitar uma segunda vez.

— Eu avisei para não olhar — Reyna a lembrou.

E então o machado desceu, mordeu a carne com um fio faminto, e Annabeth fechou os olhos, concluindo que aquilo era a misericórdia de Reyna, na sua própria forma.

 


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado, comentários são sempre apreciados!



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