Immortals escrita por Lillac


Capítulo 6
We could be immortals, but not for long


Notas iniciais do capítulo

Quem é vivo sempre aparece.
Espero que gostem!



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We could be immortals

 

Apolo lhe explicara sobre a vida e a morte enquanto revirara as entranhas de um coiote morto. Will tivera doze anos na época, e tinha tremeliques nervosos até os dedos dos pés. Quando o pai o puxara da cama antes de raiar do sol, houvera grunhindo, e passara toda a viagem de carro reclamando igualmente, sentindo as pálpebras pesadas, como se seus cílios fossem feitos de chumbo. Mal percebera quando Apolo cortara na bifurcação errada da estrada, e a enérgica cidade Santa Mônica ficara para trás. Quando o sol começou a dar as suas primeiras pinceladas no horizonte, deitando o céu em uma tapeçaria de tons roxos e laranjas, foi que ele notou que estavam avançando por uma estradinha não de barra, que parecia asfixiada entre as árvores e grandes pedaços de grama que cresciam nas laterais. Em certo momento, Apolo desfizera-se do cinto, descera do carro, e puxara um facão do porta malas.

O joelho de Will trombou no criado-mudo, a dor lancinante na cicatriz o fazendo acordar parcialmente do seu torpor. O quarto todo girava em tons de cinza, e ele teve sorte de cair no colchão, com o rosto enterrado nos lençóis. Tateou às escuras pelo pegador da gaveta, e acabou cortando o dedo no aparador de unhas que havia deixado ali. Finalmente encontrou a caixinha, pescou uma capsula, e a enfiou na boca como a mesma reverência que um devoto aceitaria uma hóstia. Um zumbido penetrou os seus ouvidos e ele moveu-se, espalhando as manchas de sangue na colcha limpa.

De uns tempos para cá, os remédios de tarja preta pouco faziam efeito. Aquilo aborrecia-o, mais do que esperava. Sabia que em determinado momento isso começaria a acontecer – tudo o que ele sempre dera valor na vida humana, desvaecendo-se e, aos poucos, seriam menos do que fragmentos de memórias, perdidas na eternidade. Mas recusava-se com veemência a aceitar aquilo. Penosamente, levou outra pílula à boca e engoliu.

“Temer a morte é tolice” o pai havia dito. Já havia retirado os pelos e a camada de pele do animal, enquanto Will tremia no canto, recostado no pneu do carro. O gume da lâmina desceu, e desceu, cravou-se na carne e então desceu mais. Um brilhante botão de sangue rubro despontou do ferimento, e ele escorreu em uma lágrima espessa e preguiçosa, caraça abaixo. “Alguns humanos descobriram isso, o que os torna um pouco menos tolos do que todo o resto, eu suponho. Mas você compreende o porquê?”.

Virou-se na cama, sentindo o estômago apertar, repuxar, expandir. Apertou a barriga com os dedos lânguidos, trêmulos, e sentiu o gosto de bile na boca. O quarto ficou subitamente frio, uma fina camada de geada invisível deitando por sobre o seu corpo. Eu poderia morrer assim, ele pensou. É calmo, e simples. Will gostaria de uma morte calma e simples, gostaria ainda mais de uma vida menos violenta, mas lhe parecia que não possuía dizer naquela questão. O mais provável era que continuaria seguindo Luke até os confins dos sete infernos, e um dia o rapaz o atravessasse com aquela brilhante espada dupla, metade deus e metade mortal, um lado para cada de Will, do estômago até o coração, e ele terminaria em uma daquelas macas que Annabeth mantinha nos fundos do apartamento.

“Todos nós morremos um dia” ele tentou dizer, mas sua boca o traía, com os dentes batendo de tanto medo.

“Sim, todos morremos”.  Apolo assentiu, cravando o facão mais fundo, e Will ouviu quando algo que não era carne nem pele partiu-se lá dentro. O pai puxou a lâmina, fazendo um corte limpo e reto. “E alguns de nós, mais do que outros”.

Você é como eu — a voz de Luke havia soado tão límpida, tão... digna. Will havia se sentido como se estivesse escutando como a primeira vez. Os olhos claros do garoto haviam rodeado o local, das sacolas de lixo que espirravam um líquido pegajoso e úmido, para a caixa de papelão e para o pão bolorento e mofado que ele tinhas nas mãos, de unhas quebradas e sujas. Will sentia um monstro rugindo em seu estômago, uma úlcera odiosa que ardia, abrindo-se, e abrindo-se, e abrindo-se — isso não é lugar para você.

Meu pai me pôs aqui — disse, esperando que ele compreendesse.

Luke compreendera. O rapaz não o havia decepcionado, não daquela vez, e não em muitas por vir. Ele abriu um sorriso de canto, tão pequeno que poderia ser uma alucinação de Will, e a mão que ele tinha pousada por cima da caixa desceu, estendida.

Venha — ele houvera dito, olhando fundo dos olhos de Will.

“Por que o senhor está fazendo isso?” perguntara, em soluços, enquanto a poça de sangue animal se estendia até onde os pés calçados de pantufas estavam. “Por que estamos aqui?”

Na luz do alvorecer, os olhos de Apolo não eram azuis. Por um único e assustador momento, não eram nada. Apenas um vão, vazio e transparente, e Will vislumbrou o que existia dentro do crânio do pai. A luminosidade o cegou e machucou e queimou seus pobres olhos mortais, mas, quando ele os abriu de novo, o pai havia enfiado uma mão dentro do corte, agarrado uma das tripas, e puxado. E, para o completo horror do garoto, como um brinquedo de corda, o coiote guinchou e moveu as patas, girando sobre si mesmo para ficar de pé.

Luke repetira:

Isso não é lugar para um deus.

Will agarrou os lençóis com as mãos, propulsou-se para a borda da cama e vomitou no chão. O estômago se embrulhara, e ele adormeceu para sonhos de coiotes ensanguentados e os olhos pálidos de Luke.

« »

O dia amanheceu com o chapinhar preguiçoso das gotas de chuva do lado de fora. Percy arrastou seu corpo para fora da cama, até perceber que não estava na cama. No banco do carona, Reyna se moveu também, o que chacoalhou o carro. Certo, ele grunhiu para si mesmo, Bianca.

Era um dia nublado e úmido, e poucos carros se encontravam no estacionamento do hospital. Através da sua visão meio turva, viu uma médica do lado de fora das portas dos fundos, fumando calmamente um cigarro, e um enfermeiro que chegava em sua moto. Reyna tentou se espreguiçar da melhor forma que conseguiu. Dentro do carro, estava abafado e apertado, e o cabelo dela parecia amassado atrás da cabeça. Percy olhou para o próprio colo e encontrou a jaqueta dela. Iria agradecê-la, mas a garota já estava puxando a maçaneta do carro e saindo. Percy chamou por ela, mas Reyna só respondeu:

— Café.

Tomaram alguns copos na barraquinha estacionada na entrada do hospital, com uma senhorinha simpática e outros atrasados que lhe davam olhares esquisitos. Percy segurou o copo de papel com ambas as mãos, deixando o líquido esquentar lhe a pele. Toda vez que piscava, contudo, se lembrava do olhar assustado de Nico, da forma como ele tremera em seus braços, e de como seus olhos escuros não haviam deixado as costas de Will nem por um segundo. Reyna sorvia seu terceiro copo, o que lhe dizia que ela deveria estar muito estressada, porque detestava café, quando Percy disse que precisava voltar para a delegacia. Ela ergueu os olhos para ele, leitosos pela fumaça densa do café:

— Nós deveríamos ao menos falar com o Nico.

— O hospital não abriu ainda, não direito — ele argumentou, sentindo um estranho empuxo no fundo do peito. Precisava de água, concluiu — nós voltamos depois.

Reyna ponderou, mas eles acabaram indo juntos para a delegacia. Brunner os olhou com as sobrancelhas arqueadas e um ar de singela reprovação, mas Percy não estava com ânimo para lhe dar explicações. Escovou os dentes no banheiro e trocou o uniforme por um limpo. Quando saiu, o sargento veio rolando sua cadeira de rodas até ele com um ar complacente.

— Eu sinto muito pela sua prima.

— Bianca não está morta.

Seu superior calou-se por um momento constrangido, antes de dizer:

— Héstia me disse que houve um rapaz. Solace.

— William Solace — Percy sentou-se no seu gabinete e ligou o computador. — Você o conhece?

Brunner pressionou os lábios finos um no outro. Percy o observou com suspeita. Conhecia bem o homem, o suficiente para saber quando estava escondendo algo, mas não o suficiente para dizer o quê. Por fim, ele pousou as mãos nas rodas da cadeira e disse com simplicidade:

— Não pessoalmente. Fui amigo do pai dele, ao que parece uma eternidade atrás.

Eu sei o que vi, a voz de Nico ressoou em seus ouvidos, cansada e ríspida. Eu sei o que ele fez. Mas o que Will havia feito? Socorrido uma vítima de acidente? Como Nico poderia ter ficado aborrecido com o rapaz por aquilo? A noite passada lhe vinha em borrões, pincelados de quadros vívidos. Lembrava-se do pequeno momento, com Annabeth, do lado de fora de uma lojinha, conversando, mas não conseguia lembrar-se do trajeto até o hospital. Suspeitava que precisava falar com Rachel sobre o garoto, mas agora lhe parecia que não havia mais tempo para nada. Brunner voltou para a sua mesa, e seu lugar foi tomado por Héstia, e o calor familiar que vinha com ela.

— Bianca vai ficar bem — ela disse, estendendo um dedo para cutuca-lo entre as sobrancelhas, e Percy só então notou que estava fazendo careta. Os dois riram baixinho daquilo. — Deus vai cuidar de tudo.

Percy não era exatamente religioso, mas era difícil discutir com ela.

Já era mais de meio-dia quando ele viu a familiar cabeleira loira entrando na delegacia. Annabeth vinha agarrando as alças de uma mochila, e por um sólido momento, Percy temeu que ela estivesse de partida da cidade, mas, ao invés disso, ela caminhou direito para a mesa dele e sentou-se no banco adjacente.

— Magnus morreu — ela disse, sem rodeios.

— Magnus?

— Meu primo — explicou — meu pai me ligou hoje de manhã. Estão organizando o enterro para amanhã. Vou pegar o ônibus para Boston de madrugada. Quis falar com você antes.

Ele não sabia exatamente o que pensar daquilo. De nada daquilo, realmente.

— Eu... eu sinto muito — a notícia veio como um golpe para ele também. A menos de vinte e quatro horas, houvera prometido que a ajudaria a procurar o garoto, e agora ele aparecia morto, como um truque do destino. Quis estender uma mão para a dela, confortá-la de algum modo, mas, conteve-se. — Queria poder ajudar de alguma forma.

— Me deixa na rodoviária, hoje — ela disse.

Seus olhos se encontraram. Annabeth tinha olheiras e marcas de cansaço, mas não parecia muito diferente do dia anterior. Percy jamais adivinharia que ela havia acabado de receber a notícia de morte de um familiar próximo.

— Eu não sei porque, Jackson, mas eu quero você lá.

A garganta de Percy secou. Ele também não sabia porque, mas aquele puxãozinho no peito estava de volta, e ele achou que sua voz tremeu um pouco quando disse:

— Então eu estarei lá.

Annabeth foi embora tão rápido quanto havia surgido, e Sr. D o chamou para o gabinete. Relutante, Percy obedeceu. Ao entrar, o delegado lhe empurrou uma pasta que não podia ter mais de cinco folhas dentro.

— Senhor?

— É o seu caso, Jackson — disse. — Problema seu.

Percy não reconhecia aquele caso, mas, assim que abriu a pasta, seu coração afundou até os pés. Estava começando a ficar cansado daquilo.

— Eu não posso ficar com todos os casos de crianças desaparecidas.

— Por que não? Você tem tanto talento para isso — o delegado riu com ironia — Magnus Chase, huh?

— Como o senhor sabe disso?

Sr. D lhe ergueu um olhar inflado e odioso, mas não havia nada do bobalhão bêbado ali. Seus olhos ostentavam uma cor púrpura, vibrante, e ele batucou com a caneta na mesa.

— O que você acha que consegue esconder de mim?

Percy colocou a pasta debaixo do braço. Fazia tempos que não sentia-se assim. Desafiado, encurralado. O delegado o lembrava demais de Gabe, e, antes que pudesse se conter, disse:

— O suficiente.

Sr. D sustentou seu olhar por um longo, longo momento. Por fim, apenas disse:

— Esforce-se para esconder melhor da próxima vez, então. E eu vou considerar não te demitir.

« »

— Srta. Dare? Há uma policial aqui para lhe ver.

A música que soava dos altos falantes parou. Reyna não sabia qual o nome do artista, mas parecia uma confusão de baterias e guitarras elétricas, mais cacofonia do que música, mas ela não comentou sobre o assunto. O segurança e guarda-costas parado ao lado dela tinha quase o dobro do seu tamanho, mas encolheu os ombros quando Rachel girou no banco de madeira polida para vê-los.

A garota usava um macacão jeans azul-claro salpicado de tinha e uma blusa branca com listras vermelhas por baixo. As barras das calças estavam enroladas, revelando canelas de pele sardenta, e o cabelo precariamente preso em um conjunto de caracóis cor de fogo no topo da cabeça. Reyna viu o momento exato no qual as esmeraldas verdes que Rachel Dare tinha no lugar dos olhos passaram de aborrecidas para afáveis. Suas sobrancelhas ruivas se ergueram quando ela deu um sorriso com os olhos em formato de meia-lua.

— Reyna. Eu posso te chamar de Reyna, certo? Richard, deixe-a entrar. É uma conhecida.

— Como quiser — ele abaixou a cabeça e deu um passo para trás.

— Eu disse para o seu segurança que eu não estou aqui a serviço, mas ele não quis ouvir. Acho que você está muito bem protegida — Reyna gesticulou para as suas roupas comuns.

— E isso te surpreende?

— Nem de longe. Você deveria ter tido seguranças melhores naquele recital.

Os olhos de Rachel brilharam de divertimento. Reyna não mudou a expressão em seu rosto, e a garota voltou a sorrir um segundo depois.

— É difícil saber quanta proteção é o suficiente, você deve concordar. Me parece que nenhum de nós nunca está realmente seguro. E, ainda assim, vocês estavam lá, para impedir que o pior acontecesse, então eu suponho que o universo tem o seu jeito de fazer as coisas funcionarem — Rachel terminou de girar no banco, de forma a ficar inteiramente de frente para ela, e perguntou: — me perdoe, oficial, mas eu devo perguntar: o que exatamente você veio fazer aqui?

Reyna tirou as mãos dos bolsos da jaqueta. Estava tentando ficar concentrada na herdeira, mas o cômodo era muito distrativo. Quadros e mais quadros se apinhavam por espaço nas paredes, e mais ainda apoiados como fileiras caídas de dominós, pelos rodapés e por cima de mesas. O lugar inteiro ardia à tinta e poeira.

— É o Percy? — ela apontou para o quadro que a garota estivera ainda pintando.

— Ah? Sim. Peguei esse retratado com a Sra. Jackson da última vez que visitei Nova Iorque. É do festival cultural da escola — ela olhou de relance para o quadro, e Reyna viu afeto em sua expressão — tínhamos nove anos.

— Você e o Percy são amigos.

Ela riu.

— Eu gosto de pensar que sim?

— Então você vai gostar de saber que ele está preocupado. Como os seus pais não entraram com queixa eu só consigo imaginar que eles estão cuidando das coisas por trás das cortinas? — quando a expressão de Rachel não vacilou para negar, Reyna continuou: — ele tem medo que aconteça de novo.

— É para isso que você está aqui? — um dos cantos da boca de Rachel subiu, entretida. Ela ficava vermelha quando sorria, e bonita também. Um tipo de beleza que nunca terminava bem. — Me proteger?

— Eu gosto de pensar que estou protegendo o Percy, também. Os amigos dele são como a sua própria vida — Reyna apoiou-se na parede atrás de si. — Mas para isso, eu preciso te conhecer primeiro. E suponho que para esse tipo de coisa, eu preciso de uma permissão assinada dos seus pais?

Rachel virou-se de volta no banco, e pincelou uma quantidade generosa de tinta preta nos cabelos de Percy.

— Não, oficial — ela riu — tudo o que você precisa é que eu queira. E isso faz com que eu me pergunte: por que eu deveria? Você é um colírio para os olhos, certamente, e já provou que sabe usar uma arma. Mas isso aqui é uma fortaleza impenetrável e os meus pais não vão me deixar entrar em qualquer tipo de perigo pela próxima geração. Então, por favor, qual a sua necessidade?

— Pra começo de conversa — Reyna abriu um sorriso. — Você deixou isso aqui cair quando saiu da moto.

O olhar de Rachel arregalou-se imperceptivelmente. Na mão direita, Reyna segurava um documento falso, mas cuja foto era muito obviamente Rachel Dare, apenas menos maquiada e glamorosa.

— Eu sei que você vai para uma exposição de arte hoje à noite, que você usa um pseudônimo para que os seus pais não saibam, e que nenhum dos seus dez seguranças pessoais assalariados com uma pequena fortuna por mês sabem disso — ela enfiou o documento de volta no bolso. — O que me diz?

— Pois bem, oficial. Eu suponho que nós somos amigas agora — ela bufou, contrariada. — Pelo menos Percy vai dormir tranquilo. Se você puder fazer o favor de ligar a música quando sair.

Sim, amigas, pensou. Até o momento em que eu arrancar essa sua pelezinha de cordeiro e mostrar quem você é por baixo. Reyna não acreditara em Rachel, nos seus sorrisos afetados, coincidências e falta de memória seletiva. Ainda não conseguia tracejar exatamente a ligação entre ela e a garota loira da loja de conveniências, mas mão demoraria muito.

— Eu te busco às nove, Srta. Dare.

E Percy dormiria muito mais tranquilo quando não tivesse mais as presas daquela víbora cavadas fundas em si.

« »

A pista dava para um túnel inutilizado há duas décadas, soterrado em blocos de argila que haviam caído durante uma obra que não havia sido finalizada. Musgo havia coberto a maior parte dos destroços, transformando em uma tapeçaria verde o bloqueio da entrada, e o mato pinicava-o onde a perna da calça deixava sua pele exposta. Percy apontou para a fenda com a lanterna e pistola em punhos, mas era impossível de ver algo dentro.

Travis Stoll, seu filho da mãe, pensou consigo mesmo, não havia um lugar melhor para desaparecer?

Ele avançou. Havia, de fato, uma fenda entra a parede circular do túnel e os restos de pedra, tão estreita que Percy ficou com medo de ficar emperrado. Por outro lado, não queria arriscar empurrar o calcário e acabar fazendo tudo desabar. Se a natureza havia transformado aquele desastre em um Arco de Roma salpicado de capim e crostas de cogumelos, que assim fosse. Arrastou-se pela fenda, prendendo a respiração, e quase rasgou a manga da uniforme, mas finalmente conseguiu passar. A área havia sido isolada e revirada pela perícia, mas nada havia sido encontrado — nem corpo, ou roupas, ou algo que indicasse uma fuga de última hora. Percy era um cara inteligente, um ótimo detetive também, mas não fazia milagres.

O lugar era abafado e úmido, exatamente o que ele esperava de uma porcaria de túnel abandonado, e os logo respingava quando ele andava, sentindo as solas do sapato grudando. Não se atrevia a colocar as mãos na paredes. Teve ânsia de cobrir o nariz com a camisa quando o fedor de podridão ficou mais intenso, mas resistiu.

Passou com a luz da lanterna pelas paredes, vendo nada além de musgo, e restos de ratos e insetos. Uma goteira que não parecia ser de água pingava no seu ombro quando a luz passou de relance por um objeto retangular que refletiu-a. Percy abaixou-se para ver o que era.

Quando tomou a carta de baralho na mão, sentiu-a quente. Não havia muitas formas de esquentar plástico sem que ele derretesse.

Alguém esfregou-a entre as mãos, deduziu. Alguém esteve aqui.

Virou-a. Esperava algo simbólico, como um Rei ou Rainha. Mas a carte era um 3 de Espadas. Com marcador azul, alguém houvera escrito, na parte branca da carta:

Perseu, Travis e os outros estão te esperando em um lugar especial.

Tic-toc. Eles não vão esperar para sempre.

 

 

Suas mãos ainda suavam frias quando encontrou com Annabeth na rodoviária. Já era fundo na madrugada, quase quatro da manhã, mas ele não sentia sono. Sua mente continuava levando-a para o túnel e para a carta.

— Você o que? — Nico soara cansado do outro lado do telefone.

— Uma carta. De baralho. Com o meu nome e o de Travis.

— Quem diabo é Travis?

Precisara explicar tudo. Quando terminara, ouviu Nico audivelmente engolir em seco do outro lado da linha.

— O que você vai fazer com ela?

— Com quem?

— A carta!

— Entregar para o departamento? É uma evidência.

Quando o primo ficara em silêncio, Percy soube que havia algo errado.

— Você acha que eu não deveria?

— Eu acho que você precisa pensar muito nisso — ele admitiu. — As consequências não vão ser brandas.

E não seriam, ele sabia. Mas por ora, ele estava esperando por uma bela garota em uma rodoviária quase vazia, enquanto ouvia o jazz antigo que tocava do aparelhinho de rádio do homem na cabine de tickets. Annabeth surgiu pelo portão lateral, usando o moletom engraçado no qual ele a encontrara pela primeira vez, com os cachos enfiados em uma touca de lã, e um olhar nervoso. Sem saber bem o porquê, Percy pegou a mão dela quando ela se aproximou.

— Me manda mensagem quando chegar. E durante a viagem.

Aquilo a fez rir.

— São bem poucas chances do ônibus bater no caminho, detetive.

— Você nunca sabe.

Percy pensou ver os olhos dela brilharem.

— Ah, mas eu sei — ela apertou seus dedos com leveza. O motorista anunciou o embarque. — Eu volto em breve.

— Se cuida.

Houve um momento de hesitação. E então Percy a puxou, enlaçando os braços em seus ombros, só então notando o quão mais alto era. Annabeth pareceu surpresa, enrijecendo no abraço, mas então o retribuindo, circundando o dorso de Percy com seus braços vestidos de moletom macio e quente.

— Você também.

Percy a beijou no meio da testa antes de deixa-la partir. Annabeth subiu os degraus do ônibus sem olhar para trás, e o detetive ficou plantado onde estava, com mais questões do que respostas.

— Nunca achei que fosse pensar isso — ele disse baixinho para si mesmo — mas eu sinto falta de quando o único problema na minha vida era minha queda pela Rachel.

Seria uma noite curta e gélida, e Percy tinha muito no que pensar.

« »

Ela o encontrou tremendo no banco designado. Seu rosto estava pálido e encovado, e seus olheiras pareciam haver triplicado. O cabelo desgrenhado. Suas mãos agarravam, trêmulas, a caixinha com a cartela de remédios. Annabeth sentou-se ao lado dele.

— Por que o nervosismo, Will? — sussurrou, baixinho, quase no pé do seu ouvido.

— Annabeth, eu—

— Não se preocupa — ela deitou a cabeça no banco acolchoado — tenho certeza que você consegue ressuscitar o Magnus. É por isso que o Luke te salvou, afinal. Deus da vida, não é?

Estava errada, mas Will não tinha coragem de lhe contrariar 

 

But not for long


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado, comentários são sempre apreciados!
(Vocês estão interessados nos pontos de vista de outros personagens, fora dos casais? Não era o plano inicial, mas eu estou considerando)
Até a próxima!



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