Ilusão escrita por Ahelin


Capítulo 2
Sonho


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo pertence à Rodada Final, cujo tema é a seguinte frase do Pedro Bandeira: "Mesmo quando terminam, os sonhos não se jogam no lixo."



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Quando o que acontece não pode ser explicado por argumentos lógicos, os ilógicos passam a ser considerados plausíveis. Infelizmente, não havia argumento, lógico ou não, que pudesse explicar o que acontecera com os gêmeos da Rua dos Pinhais.

Por seis meses, André foi questionado, e por seis meses deu a eles sua verdade: nunca quisera ferir Luís. Não sabia como um jogo de imaginação pudesse levar àquilo. Não fazia ideia de como a faca real lhe chegara às mãos.

Mesmo depois desse tempo, ele ainda tinha a sensação de que estava caindo por um abismo, tal qual a experimentada durante um pesadelo. Toda noite, ao deitar-se e sonhar, o alívio tomava conta de seu corpo. A queda, porém, não cessara; ela apenas não se fazia sentir, como se à sua cintura estivesse amarrado um elástico e ele fosse puxado brevemente para cima. O alívio era momentâneo, durando até a manhã seguinte, quando recomeçava sua queda livre.

Sua mãe não conseguia olhar em seus olhos. Ela havia presenciado toda a cena. Seu pai, racional como era, tentara ouvir sua história. Tentara acreditar nela.

Mas André sabia que ninguém acreditaria, uma vez que ele mesmo não acreditava.

O garoto foi encaminhado a diversos psiquiatras. A certo ponto, quando não foi possível solucionar o caso, seus pais concordaram com a proposta de entregá-lo a uma casa de ajuda. Estavam internando-o em um manicômio, ele sabia.

Não os culpava, entretanto. Tinha o mesmo asco de si mesmo que os pais aparentavam ter. A cada vez que olhava no espelho, via o rosto de Luís. A cada vez que falava, era a voz dele que ouvia. Não podia separar-se da lembrança dolorosa nem se tentasse com todas as suas forças.

Na instituição amigável que lhe acolhera, semelhante a uma casa familiar, muitos outros psiquiatras tentaram ajudá-lo. Ele se recusara a responder cada pergunta; limitava-se a olhar para longe, em silêncio. Comia pouco, dormia menos ainda e resistia às tentativas de diálogo de todos. Estava decidido a não ceder.

Não daria margem para que outro desastre acontecesse. Muito além de seu irmão, algo havia morrido em sua alma.

Tal situação perdurou até o dia em que um psiquiatra diferente adentrou seu quarto. Alto, de terno preto sob o jaleco que lhe parecia pequeno demais, os cabelos curtos cuidadosamente penteados para trás e a barba impecavelmente feita. Emanava uma aura calma, porém fria, a qual contrastava com a de falsa empatia mostrada por todos os outros ali.

Parecia-se, a seu modo, com um deus nórdico deslocado.

— Olá, André. — O menino, deitado em sua cama como esperado, não respondeu, fazendo-o sorrir. — Não tomarei muito do seu tempo, mas ao que parece sou o único com intenções de lhe tirar daqui.

Isso pareceu interessá-lo apenas o suficiente para que erguesse o olhar, mas não chegou a esboçar uma reação. Permanecia impassível. Morto.

— Por quê? — Não iria ceder, por isso escolheu com cuidado a pergunta que faria.

— Serei direto. — Com um movimento de sua mão, a porta do quarto, a vários metros de distância, bateu. André duvidou por um momento do que tinha visto, mas lembrou-se de que não estava em posição de duvidar de nada. — Tenho observado você e tenho interesse no que pode fazer.

— E o que exatamente eu posso fazer?

O homem riu. Não era um riso verdadeiro, porém; parecia amargo.

— Você não faz ideia, não é?

Não houve resposta.

Então, ele se aproximou. Bastou que tocasse no braço do garoto para que ele visse.

Estava na sala de sua casa mais uma vez. Recostado à parede junto ao estranho que invadira seu quarto e certamente não era um dos psiquiatras, ele observava os gêmeos lutando no tapete. Batendo espadas de brinquedo, eles riam.

— Sujo! — reclamou um.

— Não há regras! — respondeu o outro.

O ar faltou aos pulmões de André. Sentiu-se tonto e, num impulso, quis correr para abraçar o irmão e protegê-lo da versão de si mesmo que brincava ao lado.

Uma mão segurou seu peito antes que pudesse se mover.

— Não adianta — assegurou o homem. — Apenas olhe.

De repente, algo estranho aconteceu. Luís parou por um momento e permaneceu com seus olhos vidrados à frente. A imagem de André, por sua vez, sorriu. Com calma, caminhou até a cozinha, abriu as gavetas, tateou entre as facas e escolheu uma que lhe agradasse. Ensaiou contra o ar alguns movimentos com ela e retornou ao jogo.

— Vamos mudar? A gente lutou de sabre ontem — sugeriu ao outro. Havia um olhar sinistro em seu rosto, e seus dedos se fecharam com mais força em torno da arma que tinha à mão quando foi atingido no peito pela espada falsa. — Ah. Exibido.

À medida que a cena se desenrolava, o pânico se apoderava dos sentidos do real André. Eram piratas agora, lutando por seu navio. Duas crianças brincando, apenas, exceto que uma delas logo se tornaria um assassino.

— Faça isso parar! — implorou, atirando-se para frente. Precisava detê-los a todo custo.

Outra vez, foi segurado.

— Você precisa ver, André. Olhe para o seu próprio rosto.

— Não! — gritou o garoto quando Luís foi atingido pela primeira vez no tornozelo e seu sangue manchou o tapete. Tentava se desvencilhar a todo custo.

— Olhe!

Ele olhou. Perante o susto do irmão, o rosto do André da cena contorcia-se em um estranho sorriso de contentamento.

— Como eles não estão vendo que é de verdade? — sussurrou o menino, tentando ignorar o medo que tomava gradativamente cada parte de seu corpo.

— Você parece bem feliz fazendo isso. Olhe para si mesmo!

Por mais dolorosa que fosse, era a verdade. Começava ali a sequência final de seu último duelo, e Luís era arranhado no rosto, nos braços, nas pernas. Seu sangue escorria, sua pele era retalhada. André não parava, e parecia mais satisfeito a cada corte, ao passo que seu gêmeo apenas prosseguia no jogo sendo mutilado. Mesmo assim, ria, como se estivesse em transe.

— Isso é mentira — resmungou o garoto, observando. — Isso é mentira! — gritou, desviando o rosto.

— Olhe! — O homem segurou seu queixo, obrigando-o a ver, e inclinou-se para falar baixo em seu ouvido. — Aceite a verdade, André. Por que mentir para si mesmo? Pense com cuidado naquela noite. Você soube projetar para o Luís exatamente a imagem que queria, de que tudo era apenas uma brincadeira. Você o iludiu com uma facilidade tão grande que mal percebeu, está vendo?

As lágrimas embaçavam a visão do garoto.

— Pare. É mentira. — Sua voz era um murmúrio.

— Mas eu sei que você se lembra. Sei que lembra de ter gostado de cortar cada pedacinho da pele dele, que apreciou cada segundo do olhar aterrorizado enquanto ele morria. — Houve uma pausa. Era o exato momento em que Luís era esfaqueado. — Pare de iludir a si mesmo e veja.

— Não! — Mesmo se usasse toda a sua força, ele sabia que não conseguiria escapar. Por algum motivo, entretanto, ele havia parado de se debater. — Não... — Sua voz morreu.

Depois, silêncio.

O estranho o soltou e ele caiu de joelhos no chão. Estava de volta ao quarto, mas ainda não estava sozinho. As lágrimas trilhavam livres o caminho sobre seu rosto, mas sem que ele chorasse de verdade.

Às memórias estavam apenas começando a brotar.

— Você tem um ótimo talento, André. Posso ensiná-lo a usar. Não somos tão diferentes, você e eu.

— Eram só sonhos. — O garoto se arrastou para trás, numa vã tentativa de tomar distância. Queria bloquear os sentimentos que lhe invadiram, mas não conseguia. Eram tão fortes que pareciam sempre ter estado ali.

— Nunca é só um sonho. — O estranho se aproximou lentamente. — Você e eu estamos aqui.

— Mas agora acabou. — Dúvida e súplica se misturavam nas palavras. Agarrar-se a elas era sua última chance.

— Não. — Sorriu o homem, abaixando-se até estar da mesma altura que o garoto. — Mesmo se tivesse acabado, criança, o que você fez está feito. Após tantos anos te observando, posso afirmar que nenhum dos seus "sonhos" foi um total desperdício.

— O quê? — André estava atordoado. Sentia-se tonto e prestes a vomitar.

— Você ficou mais forte a cada dia, não é? Suas brincadeiras, como você as chama, foram um treinamento melhor do que o que muitos mestres podem oferecer.

— Eu não entendo.

— Eu sei que entende. — Havia um sorriso em seu rosto quando prosseguiu. — E eu também sei que você quer sentir de novo o que sentiu naquela noite, mais e mais, até que tenha se intoxicado e feito disso seu vício. — Quando o garoto não respondeu, ele soube que tinha acertado. Levantou-se e, devagar, estendeu a mão. Recebeu um olhar significativo e uma pausa de longos instantes silenciosos antes de ter seu cumprimento aceito. — Sim, muito bem. Fez a escolha certa.

Com um aceno de sua outra mão, todas as janelas do prédio explodiram em estilhaços, e os dois caminharam calmamente para fora em meio ao caos.

André nunca mais foi visto. Curiosamente, nesta mesma época, nasceu o vilão que viria a se tornar o mais temido de seu tempo.


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Notas finais do capítulo

Eu tô muito feliz por ter chegado até aqui. Quero agradecer ao SBLAN pela oportunidade e parabenizar a galera que participou comigo do concurso, inclusive o Gustavo, que tá competindo comigo nessa final. Parabéns, vocês todos são incríveis ♡



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