Ilusão escrita por Ahelin


Capítulo 1
Faz de conta


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo pertence à Rodada Semifinal, cujo tema é Plot Twist.



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O som do primeiro tiro ecoou pela vila. Mulheres se debruçaram nas janelas de suas casas, lojistas postaram-se de pé à porta de seus estabelecimentos e até mesmo os bêbados saíram do bar para assistir ao duelo que se desenrolaria ali.

Era uma emoção rara de se obter; dada a distância de qualquer outro local habitado, eles dificilmente tinham algo para apreciar por aquelas bandas.

O silêncio, porém, reinava no ambiente. Nenhum deles queria perder uma palavra sequer dos combatentes. De um lado, o justo xerife André, capaz de qualquer coisa para defender a si e a seus conterrâneos. Do outro, o bandido Luís, já de arma em punho, buscando todo o ouro guardado nos cofres do pacato lugar.

O que, diga-se de passagem, não era muito. A adrenalina do crime o interessava mais que o próprio lucro.

— Você trapaceou, meu amigo — apontou André, sacando a própria arma. Atirar sem aviso prévio era jogar sujo.

— Você sempre desvia! Não é justo. — Luís agradeceu a péssima pontaria de seu adversário quando o tiro atingiu o chão a vários metros dele, levantando apenas poeira.

O momento pareceu congelar. Agora, cada um tinha apenas uma chance de ser o vencedor.

— Com medo? — provocou André, a mão esquerda tremulando levemente sobre o coldre em seu cinto.

— Você é o medroso aqui — rebateu Luís, esquivando-se com maestria de um tiro repentino. Para quem reclamava de jogo sujo, o xerife não era um homem muito honesto. — Olha só. Acho que alguém está sem balas!

O outro largou a arma inútil no chão e ergueu uma sobrancelha.

— E você acha que pode me acertar? — questionou. Ainda que fosse derrotado, continuaria as provocações.

— Sempre.

Luís empunhou seu revólver e mirou com calma. Sabia que, apesar da covardia, o orgulho de seu oponente não o deixaria correr em busca de abrigo.

O tiro foi certeiro e atingiu-o no peito. Poderia tê-lo acertado na cabeça, se quisesse, mas sua parte favorita era zombar de André em seus últimos momentos de vida. Aproximou-se, sorrindo vitorioso, e contemplou o corpo estendido à sua frente, cujo sangue manchava as roupas de cowboy.

— Foi sorte — sibilou o xerife abatido. — Se eu estivesse um pouco mais longe, você erraria.

— Você diz isso toda vez — comentou Luís. — E eu te acerto toda vez, também.

— Faroeste é chato.

— Você só acha chato porque sempre perde!

— Não é verdade!

— É, sim!

— Vamos ver se você continua com sorte agora. É minha vez de escolher.

Luís estendeu-lhe a mão e o ajudou a levantar. À volta deles, o cenário girava freneticamente até a areia e o horizonte fundirem-se num borrão alaranjado, que por fim escureceu para dar lugar ao contorno de uma clareira na floresta.

Desta vez, não haviam espectadores humanos. Uma coruja chirriou ali perto, seguida pelo distante uivo de um lobisomem e o discreto chiado de alguns camundongos. Exceto por estas criaturas, e talvez algumas outras que não se faziam ouvir, os dois estavam completamente sozinhos naquele ambiente noturno.

— Dez passos — ditou Luís. Ambos caminharam em direções opostas e por fim viraram-se um para o outro. — Quem cair, perde. Quem desistir, perde. E quem usar feitiços proibidos também perde!

— Eu já pedi desculpas! — André ergueu as mãos, rendido àquela lembrança. — Foi um reflexo. Você me assustou.

Não houve resposta. Com calma, cada um sacou a varinha guardada na manga de sua capa. Cumprimentaram-se com um floreio e puseram-se em posição de duelo.

André foi o primeiro a atacar. Podia não ser o melhor atirador, mas nunca seria derrotado em território mágico. Toda a sua energia corporal vibrava em deleite quando praticava seus feitiços, estava em seu código genético. 

Luís defendeu-se precariamente e esquivou-se de um segundo ataque tão logo o primeiro teve fim. Estava, claramente, em desvantagem, mas não colocaria tudo a perder ficando desesperado.

— Você melhorou! — elogiou André, desviando com facilidade de uma faísca lançada pelo irmão. — Mas não o suficiente!

O show de luzes ali era a mais rara artimanha do mundo. Os ataques e as defesas tinham brilho, ora um ardente vermelho, ora um brando violeta, e todas as cores do espectro entre estas duas. Infelizmente, nenhum olho humano — a não ser os dos dois garotos — poderia um dia testemunhar tal maravilha.

— Como você é tão bom? — Luís rebatia os feitiços como podia, mas o intervalo entre eles era cada vez menor. Podia sentir-se enfraquecendo à medida que o outro se fortalecia.

— Como você atira tão bem? — André devolveu a pergunta com um sorriso. Uma gota de suor escorreu por sua testa e ele descansou apenas pelo tempo suficiente para limpá-la.

Estavam ofegantes e encaravam-se, a rivalidade misturada à admiração que um nutria pelo outro.

— É que eu não sou míope! — Luís aproveitou a deixa e conjurou, um a um, todos feitiços ofensivos que conhecia.

E todos eles foram minimizados, sucessivamente, sem que surtissem qualquer efeito em seu oponente.

— Bom, senhor Eu Não Sou Míope... — caçoou André. — Parece que sua ótima visão não significa nada aqui!

Voltaram à batalha, sem sombra de misericórdia. Naquele universo, o laço de sangue nada significava além de um pretexto para lutarem. Conforme o conflito se desenrolava, tornava-se simples distinguir qual, dentre os dois, sairia vitorioso.

A cada vez que Luís recuava um passo, André avançava dois. Seguiram assim até que os limites da clareira os impediram de prosseguir. Estavam próximos outra vez, mas longe de estarem na mesma posição; a ponta da varinha de André brilhando contra a garganta de seu adversário evidenciava qual era o superior ali.

— Desiste?

— Nunca!

Sem outra saída, Luís murmurou para si a única coisa que lhe veio a cabeça. Então, um relâmpago rasgou os céus, e o som do trovão logo depois foi a distração que precisava para se livrar do aperto.

— Um feitiço de chuva — debochou André, rindo, enquanto as primeiras gotas molhavam seu cabelo. — Sério?

— Foi o truque mais ridículo da minha vida, mas funcionou.

Logo estavam de volta ao centro do ringue. Um temporal tivera início e o chão ali começava a virar lama. Luís, num olhar rápido, mediu seus próximos movimentos para garantir que seu plano funcionasse.

Correu, então, para a grande pedra à sua direita. Pretendia pular sobre ela e usar o impulso para jogar-se sobre o outro, seu último ato desesperado para sobreviver. O plano teria funcionado se seus pés não tivessem escorregado na lama criada por seu próprio feitiço, levando-o ao chão.

— Não! — André ajoelhou-se no chão, rindo tanto que sua barriga doía. — Meu Deus, eu vou lembrar disso pra sempre.

— Droga! — praguejou ele, mas estava rindo também, ainda estendido de costas sobre o barro.

Seu riso foi interrompido por um raio que o atingiu na barriga.

— Não olha pra mim. — O irmão ergueu as mãos. — Esse raio aí foi seu. Acho que você tá morto.

— Não vamos falar sobre essa luta — comandou Luís. — Nunca.

— Eu ia ganhar de qualquer jeito — gabou-se André, pouco antes de vir e ajudá-lo a levantar. — Sua vez de escolher. Tenta não se matar nessa, tá?

Mais uma vez, os contornos do cenário ficaram turvos conforme este começava a girar. Não perdeu, porém, seu tom de azul escuro; quando os gêmeos se deram conta, estavam sobre uma sequência de plataformas flutuantes no espaço, dentro de uma bolha atmosférica artificial, trajando seus uniformes jedi. À mão, os sabres de luz ainda desativados.

— Duvido você me derrotar aqui! — Luís ergueu o queixo.

Nerd. — André revirou os olhos.

Afastaram-se e assumiram a posição. O ruído característico dos sabres sendo ligados ecoou no ambiente.

— Por que o meu é sempre o azul? — resmungou Luís.

Um clique metálico surgiu, então um segundo e um terceiro. Luzes se acenderam sobre um par de arquibancadas externas à bolha, onde dezenas de robôs prateados aplaudiam os competidores.

— Eu gosto de ser visto — explicou-se André, ante o olhar irônico lançado em sua direção.

— Vai ser visto apanhando, então.

Sem mais avisos, partiram um ao encontro do outro. As plataformas, porém, não facilitavam o movimento, uma vez que balançavam precariamente a cada passo. Luís superou rapidamente o obstáculo e em segundos estava sobre André.

Os sabres se chocaram no ar, espalhando uma chuva de faíscas. Neste momento, eram colocadas à prova as horas de treino imaginário dos dois. Armas brancas não são como as de fogo, as quais basta mirar e atirar; existe toda a maestria e ginga de um verdadeiro espadachim.

Luís girou e golpeou forte, ferindo o pulso do oponente, que viu-se obrigado a duelar utilizando a mão esquerda.

— Sujo! — reclamou ele.

— Não há regras!

André, mesmo machucado, desviou-se muito bem das próximas investidas e contra-atacou com a experiência de um mestre. A cada nova batida, entretanto, eles se cansavam mais. A energia se esvaía aos poucos. Logo, estavam brigando como dois velhos com dores nas articulações.

— Tempo — pediram em uníssono. Os ruídos advindos da plateia silenciaram. Todos os olhos estavam fixos na dupla incansável de garotos, que, ao que aparentava, não era tão incansável assim.

Quando suas respirações se acalmaram, eles assumiram mais uma vez a posição de duelo.

— Vamos mudar? A gente lutou de sabre ontem — sugeriu André, mas Luís já estava saltando pelas plataformas laterais e, em seu último pulo, atravessou o corpo do irmão com a arma. — Ah. Exibido.

— Você diz isso porque a sua única vitória foi por burrada minha.

— Ah, é? Vamos ver o que você faz com espadas de verdade.

Pela última vez, a cena girou. O céu estrelado deu lugar a uma manhã ensolarada no mar, enquanto o burburinho metálico dos seres alienígenas era substituído por uma animada tripulação.

— Quem é exibido agora? — zombou Luís.

— Vou mostrar o que acontece com os cães que tentam organizar motins no meu navio! — exclamou André, sendo aclamado pelo restante dos piratas.

— Ah, lógico. Você é o capitão.

— Para de reclamar!

Sacaram as espadas. Luís, de novo em desvantagem, recebia uma chuva de pedras e outros objetos pessoais atirados pelos homens enfurecidos. Xingou alto um deles depois que este lhe lançou um papagaio, e finalmente a plateia se acalmou.

André partiu ao ataque e eles cruzaram as espadas no ar uma, duas, três vezes. Era possível perceber que todos prendiam a respiração, ansiosos pelo resultado do confronto. Luís girou e acertou um chute no joelho do irmão. Tentou, depois, acertar a lâmina em seu ombro, mas foi bloqueado no último instante.

— Parece que eu sei fazer muita coisa com uma espada de verdade — provocou.

— Só nos seus sonhos!

O capitão rolou e conseguiu fazer um corte no tornozelo do amotinado.

— Ei, isso doeu de verdade. — Luís mancou um pouco, com uma expressão atônita.

— Quer desistir? — André baixou a guarda, preocupado.

— Não, não. Acho que eu imagino demais.

Os dois olharam em volta, para a impressionante cena ao redor, e começaram a rir.

— Acho que nós dois imaginamos demais.

— É, pode ser. Vamos continuar.

O choque de aço contra aço reverberou por todo o barco. Além daquele pequeno arranhão, nenhum deles conseguia machucar o outro. A disputa estava acirrada, movimentando-se pelo convés.

O capitão, numa manobra, derrubou longe a espada do oponente. O bandido correu, rolou pela proa e a pegou bem na hora para se defender de mais uma afronta.

— Você é rápido, mas não o suficiente.

A cada vez que cruzavam as espadas, Luís se via mais encurralado. Caminhava para trás, esquivava e desviava-se, mas não era o bastante. Logo, tinha pequenos arranhões nos braços e nas pernas, mas nada podia fazê-lo desistir.

Aos poucos, ele percebeu que André começava a fraquejar. Demorava mais nas defesas, desistia fácil dos ataques. Ele estava deixando o irmão ganhar.

— Luta direito! — protestou o garoto. — Assim não vale!

E, para reforçar sua indignação, começou a golpear com toda a força que tinha. Um sorriso divertido brotou nos lábios do outro, que voltou a duelar com sua técnica de mestre.

Bastou um movimento errado para que a espada de Luís estivesse no chão novamente. E, desta vez, André não teve piedade; cravou a sua até o punho na barriga do irmão.

— Ah, toma essa! — riu, comemorando. — Foi a luta pirata mais legal do mundo! Você acha que pode ganhar de mim depois disso?

Mas Luís não respondeu. A roupa, como sempre, começava a ficar manchada de sangue, contrastando com a palidez de sua pele. O garoto caiu de joelhos.

Preocupado, André ajoelhou-se à sua frente. Achava que o gêmeo pudesse estar passando mal.

— O que... — murmurou o ferido.

O faz de conta dos dois já não tinha mais sentido. Tremulando, tudo desapareceu. O céu, o mar e o convés tomaram as formas da sala de estar na bagunça usual após uma sessão como aquela: almofadas caídas, poltronas arrastadas. Os brilhantes trajes de pirata tornaram-se outra vez as roupas surradas dos dois meninos.

O sangue, que agora manchava a camisa branca do garoto, não desapareceu, tampouco o cabo plástico da faca enfiada em sua barriga.

Eles se entreolharam, o mesmo medo os atingindo. Luís fechou os dedos sobre o cabo e o puxou, como se duvidasse que era real. Porém, o sangue que escorria pelo corte não era imaginário.

— Mãe! — gritou André, desesperado. Para a sua surpresa, a mulher já estava na porta, observando em silêncio. Tinha os olhos arregalados e a mão segurando o batente como se, sem esse apoio, fosse desmaiar. — Mãe, me ajuda! Ajuda ele!

Luís tombou no chão, inerte.

André, tomado por um misto de adrenalina e terror, apenas observou. Simplesmente não entendia. Piscou com força para afastar o pesadelo, mas nada aconteceu. Seu irmão ainda jazia ensanguentado à sua frente toda vez que abria os olhos.

Quis gritar, chorar e buscar socorro, mas sua voz não saiu, as lágrimas não vieram e seus músculos não obedeceram ao comando. Continuou ali, olhando o gêmeo que morria devagar.

Por sua culpa.

Quando os paramédicos chegaram e o tumulto começou, ninguém se deu conta do homem encostado à parede que, sorrindo, contemplava a cena.

Os vizinhos comentariam por semanas o estranho caso de assassinato. Naquela noite, sirenes de polícia soaram na tranquila Rua dos Pinhais.


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