O estalar constante do chicote acompanhado pelos urros e lamúrias da dor esfuziante eram uma constante naquele mundo, mas eram tão incomuns aos ouvidos do menino quanto o tom feminino das lamúrias para o restante do povo.

O choro alto invadiu-lhe os ouvidos como a chuva de raios invade uma casa com o assustador urro dos trovões, atraindo o olhar dourado mais que imediatamente. Nunca antes tinha visto uma moça tão bonita, os cabelos negros como as asas de um corvo eram uma coroa de raridade naquelas terras costeiras, a pele clara de quem nunca trabalhou ao sol também era uma raridade bela e os olhos firmes de uma rainha à aturar os infortúnios do dia com a naturalidade de uma flor era algo para se invejar, mesmo em sofrimento os olhos não perdiam sua firmeza. E quanto mais olhava menos entendia porque ela estava sendo castigada daquela forma tão cruel, com a chibata rasgando a carne e o tronco como único apoio.

Observou com alguma curiosidade que de suas costas vertia um curioso sangue dourado de ferimentos que logo se fechavam para serem abertos novamente, uma característica que também tinha e não entendia, o sangue era tão parecido com o que corria em suas veias que isso o fazia entender cada vez menos. Que saiba, o tronco era para inimigos de guerra, homens desonrados e escravos malcriados, aquela mulher não se encaixava em nenhum dos grupos, ainda mais que tinha sangue dourado, sangue de deuses.

— Mamãe… - puxou o tecido leve da roupa. - Por que estão batendo naquela moça?

A mãe parou de olhar as frutas do mercado, arrumando seu irmão pequeno no colo e olhou para a dita moça. Ela apanhava em praça pública, sendo espancada com chicotes e queimada com ferros quentes, a princípio tentou ignorar e esconder o ocorrido dos filhos, mas certamente os instintos herdados do pai não lhe permitiriam esse descanso. Olhou para o gigante que sempre a acompanhava e viu em seus olhos que o menino merecia saber, afinal, ele não seria uma criança para sempre.

— Aquela é a Mãe de Todas as Mulheres e Portadora das Desgraças Humanas, a Primeira Mulher, Pandora. - explicou com um suspiro, arrumando o bebê em seu colo mais uma vez. - Não encare, meu amor. Ela não merece sua piedade.

— Mas mamãe… - continuou puxando o tecido, agora chegava a apontar para cena. - O que ela fez de tão ruim? Ela é tão bonita, não devia chorar assim. Se eu já fosse do tamanho do papai não deixaria ninguém machucar ela, Cor Tauri disse que machucar moças é feio, muito feio. Como uma moça tão bonita pode ser a causadora das desgraças humanas?

A mãe respirou fundo e lhe encarou com certo pesar, não queria que o filho encarasse o pai de forma diferente, mas não tinha jeito. Conhecia bem o seu menino, sua curiosidade era tão grande quanto o poder que detinha.