Solitude escrita por Lillac


Capítulo 6
Estímulos.


Notas iniciais do capítulo

Eu demorei um pouco, não? Para compensar, um capítulo consideravelmente maior.
Tem algumas referências nesse capítulo à determinadas cenas de O Martelo de Thor (Magnus Chase) e à uma cena em específico de Casa de Hades.
Espero que gostem! Ah, e, se quiserem, leiam as notas finais ;)



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Grover tapeou a própria perna, esforçando-se para não morrer asfixiado com a própria risada.

— Céus, você é horrível.

Um pequeno e frustrado Percy de onze anos de idade grunhiu, e acertou o amigo com um cotovelo magro e ossudo, fazendo Grover perder o equilíbrio de sua posição agachada e cair de bunda no gramado.

— Isso não faz sentido — Rachel comentou, com a voz nasalada de quem havia acabado de pegar um resfriado. — Você é idiota?

— Calem a boca! — Percy bufou, derrubando a meia dúzia de cartas de baralho que ele tinha em uma mão para tirar o cabelo da frente dos olhos. — Vocês vão ver, quando eu conseguir...

Se — Rachel corrigiu.

Ela estava de pé, recostada na enorme árvore que provinha sombra sobre eles. Com uma expressão ao mesmo tempo intrigada e curiosa, ela se abaixou, dobrando os joelhos, de modo a ficar quase da altura de Percy, que estava sentado sobre a grama.

Percy voltou ao seu árduo e importantíssimo trabalho: construir um castelo de cartas.

Não era exatamente sua atividade favorita. Ele preferiria mil vezes estar brincando com as outras crianças no parquinho, mas Nancy Bobofit e suas amigas estúpidas cuspidoras de geleia estavam lá, e Percy sabia que simplesmente não conseguiria passar um intervalo inteiro sem partirem para a agressão. O que não teria sido um problema nos conceitos dele. Mas da última vez que ele puxara o cabelo de Nancy, os pais bobocas dela haviam dedurado ele para a diretora, e de algum modo Rachel havia pegado a culpa, simplesmente por estar com Percy.

Era lógico dizer que pais bobocas dela não haviam gostado.

Dessa forma, para impedir uma tragédia, Percy havia resolvido que ele, Grover e Rachel eram perfeitamente capazes de se divertirem fora do playground. Assim que ele conseguisse montar aquele maldito castelo de... —

Uma lufada de vento mandou todas as cartas que ele havia cuidadosamente empilhado voando.

— Ei, Jackson — uma voz surgiu atrás dele — que droga é essa?

— Thalia — Luke grunhiu — eles são crianças.

— Tenho certeza que o Percy não se importa com algumas palavras ruins — Thalia riu. Ela deu a volta e se agachou entre ele e Grover —, então, que droga é essa?

— É um castelo de cartas — Percy respondeu, ao mesmo tempo em que Grover disse:

— Um completo desastre.

Os dois mais velhos se encararam por um momento e riram.

— Eu não achei que veria um pirralho trocando um parquinho por um castelo de cartas tão cedo assim — ela disse —, quer dizer, exceto a Annabeth.

Percy abriu a boca para perguntar quem diabos era Annabeth, mas no momento seguinte, uma garotinha se esgueirou pela brecha entre ele e Rachel. Percy ficou imediatamente impressionado com o cabelo dela, mas a menina sequer olhou para ele. Ela se inclinou, recolheu as cartas que haviam se espalhado pelo gramado, e em uma fração de segundos montou dois andares de um castelo de cartas.

— É simples — disse, ainda ocupada montando o terceiro —, você só precisa compensar a inclinação do solo com o ângulo das cartas, e depois...

Ela parou de falar quando notou que estavam todos em silêncio. Finalmente, voltou seus olhos cinzas para Percy. Enquanto Thalia e Luke riam — a mais velha estendendo uma mão para afagar o cabelo loiro da garota — Percy tentou pensar em uma sentença que expressasse o quanto estava impressionado pela inteligência da menina.

Ao invés disso, tudo o que saiu foi:

Nerd.

Annabeth fechou o cenho. Antes que Percy pudesse ter tempo de se desculpar, Rachel estava perguntando dela se esse mesmo princípio poderia ser usado em esculturas, e ele perdeu sua chance.

 

No dia seguinte, Percy tentou chegar mais cedo para esclarecer o mal-entendido. Assim que pendurou a mochila no encosto da cadeira, notou um post-it azul grudado na carteira: Cabeça de Alga.

Ah, Annabeth queria guerra?

Então ela teria guerra.  

 

 [...]

— Você lembra o que a Clarisse disse sobre eles não conseguirem ver bem durante a noite?

Percy piscou. Por um momento, parecia que sua mente havia voado para um lugar completamente diferente. Era só que ver Annabeth daquele modo, inclinada sobre um monte de anotações complicadas e ansiosa para explicar alguma coisa... doía um pouco o peito dele, para ser sincero.

Ele só queria que ela um dia tivesse a oportunidade voltar a ser a nerd arrogante e insuportável que ela era apenas alguns dias atrás. 

Se eles, de algum modo, sobrevivessem àquele inferno.

— Hã? É, tá.

— Então — ela continuou, nem dando atenção à resposta pouco entusiasmada dele. — Jason, Piper e Leo ficaram presos no ginásio durante o primeiro dia inteiro, lembra? Eu nunca tinha me perguntado como eles conseguiram atravessar o estacionamento inteiro e subir as escadas antes, mas agora tudo faz sentido!

— Piper disse que, em certo momento, um dos mortos-vivos deu um encontrão na parede externa e simplesmente... ficou lá — Rachel contou. — Leo bateu com a fivela do cinto nas grades de metal, e ele reagiu ao som. Mas parecia estar reagindo somente ao som.

— Então... eles são cegos?

— Não, não cegos — Annabeth balançou a cabeça. — Eles reagem aos estímulos da luz solar. Acho que os sentidos deles perderam parte da potência, então eles precisam de estímulos realmente altos, como luzes muito claras e sons muito altos.

— Como uma fivela batendo no metal — Percy notou.

— Exato. Se estivermos, tipo, muito perto, acredito que eles consigam nos enxergar mesmo no escuro — contou. — Mas se for o caso, podemos usar a noite para nos locomovermos melhor.

— E se formos silenciosos — Rachel abriu um sorriso — é o dobro de chance.

— Isso é ótimo — Percy sentiu a si mesmo sorrindo animadamente. Ele se inclinou: — e, o que mais?

— Essa é a parte ruim.

— Como assim? Vocês não descobriram mais nada? Não tem problema se...

— Não. — Rachel o interrompeu. — Nós descobrimos.

Nenhuma das duas falou nada por um momento, e Percy registrou distraidamente a voz de Jason gritando instruções para os outros sobreviventes, enquanto Leo, da janela, dizia a posição exata de cada morto-vivo visível do lado de fora para Clarisse, pelo rádio.

Annabeth umedeceu os lábios rachados com a ponta língua, respirou fundo, mãos apoiadas nos joelhos, e então disse:

— O que está transformando as pessoas em mortos vivos, é muito provavelmente uma bactéria. A julgar pelo estado de decomposição do lobo frontal do Ethan, ela provavelmente se aloja ali ou no hipotálamo. É difícil dizer porque, bem, porque o cérebro dele...

Está majoritariamente esmagado, Percy completou mentalmente. Ele não sabia o que era pior: isso, ou o fato de que Annabeth provavelmente fora até o cadáver dele checar. Enquanto ele estava ocupado bisbilhotando a vida pessoal de Reyna.

Embora, supostamente, agora privacidade não significasse muita coisa. Se queriam sobreviver, eles precisam estar dispostos a revelar alguns segredos.

— Enfim — ela balançou a cabeça — a bactéria se instala na parte frontal do cérebro, e corrompe as funções cognitivas e reações à estímulos externos. Basicamente, compromete a velocidade e agressividade com a qual esses... infectados reagem.

— E eu suponho que isso não fique nenhum um pouco melhor? — Percy perguntou, apoiando as palmas das mãos no chão.

— Ela é transmitida através de contato com sangue infectado. Eu... eu acho que eles tentam nos morder porque é mais fácil. Abre uma ferida e o sangue automaticamente entra na corrente sanguínea. Mas, hipoteticamente, quer dizer que qualquer ferimento exposto...

Percy olhou para os próprios braços, cobertos de arranhões e cortes, e engoliu em seco. Ele não podia surtar. Ao menos, não ainda.

— E tem outra coisa — Rachel emendou — eu e o Will checamos. Haviam crostas nas feridas no ombro de Ethan, o que em outras palavras significa que ela já estava cicatrizando.

O que significa — Percy completou, tom exasperado — que não era recente.

Rachel abaixou os olhos. Percy não quis soar irritado, mas era como se sentia. Por um momento, parecia melhor que as garotas não houvessem pesquisado. Porque agora era esperado que ele ajudasse a guiar o que poderiam ser os únicos sobreviventes daquela escola até onde Clarisse mantinha posto, sabendo que qualquer um deles poderia estar infectado.

Qualquer um.

Inclusive... —

Ele tentou conter-se, mas foi automático: seu olhar voou para Annabeth. Ela não estava em um estado diferente de nenhum deles. Aliás, parecia quase tão machucada quanto Reyna, se aquilo era possível.

— De qualquer forma, eu...

Annabeth foi interrompida por um Jason que se juntara a eles, meio ofegante (ele havia torcido o tornozelo há bem pouco tempo, e ficar andando em círculos ajudando os outros a empacotarem as coisas não deveria ser muito confortável. Ou inteligente. Mas ei, era Jason).

— Leo disse que Clarisse quer todo mundo reunido para as últimas instruções. Só falta vocês.

Eles ficaram em silêncio por um longo e desconfortável momento, e o sorriso de Jason vacilou, como se ele houvesse notado que havia interrompido algo. Mas Annabeth meneou a cabeça e pôs-se de pé, ajudando Rachel em seguida. Eles rumaram juntos para a sala de som, onde Leo fazia alguns vários ajustes na frequência do rádio (“eu não tenho certeza se ele vai funcionar lá fora” ele havia dito).

Clarisse, para seu mérito, deu instruções muito boas — é só que Percy não estava ouvindo.

A voz dela passou voando pela cabeça do rapaz. Talvez fosse a falta de sono e a exaustão. Mas a cabeça dele parecia um redemoinho de repente. Ele lembrou-se dos grunhidos de Ethan enquanto Annabeth transformava a massa cerebral dele em geleia batida, e então ele pensou nela remexendo essa mesma geleia batida, procurando por informações. Qualquer informação.

Ele pensou na irmã de Reyna, cujo rosto ele nem conhecia, atirando na própria cabeça e morrendo nobremente — pelo quê? Por um bando de recrutas que também podiam estar infectados?

Como ele deveria saber quem ali estava bem ou não? Como ele poderia ter certeza de que Jason, em uma de suas várias idas para recolher comida, não havia passado despercebido por um respingo de sangue entrando em sua...

Merda.

Ele levou uma mão até a manga esfiapada da própria camiseta. Estava seca, mas ainda era a mesma.

A mesma na qual o sangue de Ethan espirrara.

Ele começou a tremer.

Tudo ao redor virou um borrão, distante. Percy ia morrer.

Ele estava, ele estava—

— Percy?

A pele dos dedos de Annabeth, cuidadosamente pousados no braço dele era quente, macia e tão... viva. Como um naufrago buscando por uma última lufada de ar, Percy agarrou a mão dela. Annabeth pareceu assustada quando olhou para a expressão dele, mas logo levou a outra mão para pousar no rosto dele, de forma sutil.

Foi só quando ele percebeu que os outros já haviam ido embora.

— Annabeth — ele se esforçou a falar, à despeito do nó que havia se formado em sua garganta.

A mão dela subiu um pouco, emaranhando-se nos fios sujos e ásperos do cabelo dele, tão diferentes das mexas com cheiro de maresia que haviam sido. Ela desajeitadamente passou o cabelo de Percy para trás, correndo gentilmente a ponta do polegar na testa suada dele, desfazendo com delicadeza as rugas de preocupação. A mão dele que segurava a dela estava tremendo, e ele sentia a textura da bandagem na própria pele, como havia sentido naquela primeira vez que segurara a mão dela na sala de som.

Mas tudo era tão diferente agora.

— Nós... nós vamos morrer?

— Percy — Annabeth suspirou — ah, Percy. Não.

Ele estava tremendo dos pés à cabeça agora, ombros balançando com soluços, mas nenhuma lágrima caiu de seus olhos. Ele sentia como se estivesse tendo um ataque de pânico. Annabeth largou a mão dele por tempo o suficiente apenas para pousar ambas em cada lado do rosto dele e força-lo a olhar para ela.

— Me escuta, Percy — ela pediu. — Eu não vou deixar você morrer, está bem? Não vou.

— Como você pode...

— Eu não vou — Annabeth foi firme. — E, em troca, você não me deixa morrer, que tal? Parece um acordo bom o suficiente?

Ela abriu um sorriso pequeno e incerto, aguardando por alguma reação.

Percy deu um passo para frente e envolveu o torso dela com ambos os braços. Annabeth era bem mais baixa do que ele, ficando com o rosto quase enterrado em um de seus ombros.

— Mas nós podemos morrer lá fora — ele falou, baixinho.

Ela movimentou um pouco a cabeça, fazendo um carinho improvisado com os cachos do cabelo dela no pescoço dele.

— Mas estamos vivos agora — disse. — É isso o que importa.

Percy afrouxou um pouco o aperto, permitindo-a espaço o suficiente para levantar o rosto. Os olhos dele estudaram cada mínimo detalhe dela, como nunca havia feito antes: as cicatrizes de espinha daquela fase na sétima série, a marca de catapora que ela tinha (logo abaixo de um arranhão que já estava fazendo casquinha) acima da maçã esquerda do rosto. O modo como as sobrancelhas dela não eram do mesmo tamanho — a da direita começava um pouco depois. E como ela tinha uma cicatriz minúscula na jugular.

O coração dele começou a bater tão forte, que as palavras dela começaram a ressoar na cabeça dela. Estamos vivos agora, ele respirou fundo, é isso que importa.

Ela arriscou um sorriso. Percy fez um gesto afirmativo com a cabeça, subitamente distraído pela boca dela.

Espera, o que?

Percy estava olhando para a boca dela? De Annabeth? A mesma sabe-tudo prepotente que Percy, na nona série, havia grudado na própria cadeira com uma quantidade estratégica de cola? Annabeth, que substituíra sua garrafinha de achocolatado azul na sexta série por xarope para gripe e fizera Percy cuspir tudo encima do próprio lanche?

Certo, como se fosse possí... —

Annabeth se inclinou. E o bom senso de Percy o chutou no traseiro, empurrando-o para frente.

Oh, céus. Oh, céus. Estava acontecendo. Percy abaixou a cabeça.

A respiração dela estava quente (quase febril, na verdade), mas Percy não se importou. Sua boca roçou na dela por um milésimo de segundo, e ele sentiu como se tudo no mundo estivesse prestes a dar certo.

Ele beijaria Annabeth Chase, e eles ficariam bem.

Ele — é claro — estava errado.

Um grito estridente foi ouvido do lado de fora, e eles se desvencilharam — não por vergonha de serem pegos no flagra, mas por preocupação. Ambos correram para fora da sala de som, e avistaram um pequeno tumulto que se formava em torno de um garoto que ainda berrava a plenos pulmões.

Lá fora, as luzes laranjas do entardecer eram completamente substituídas pela escuridão da noite. Lá dentro, o menino gritava, rolando no chão e agarrando a própria mão, aparentemente machucada.

— O que houve? — Annabeth perguntou para Piper.

Antes que a garota pudesse responder, algo caiu, do outro lado da porta.

Percy pareceu ser o único a notar. As pessoas continuaram falando e o menino parou de gritar para começar a choramingar.

De novo. Dessa vez mais alto.

Percy pensou ouvir metal.

De súbito, alguém agarrou seu braço e o puxou. Enquanto se afastavam da multidão, Percy reconheceu uma trança de cabelos escuros e um corpo magro e baixo caminhando ao lado dele. Reyna. Nico.

Eles caminharam como se estivessem escondendo algo. Percy não contrariou. Enquanto as pessoas se amontavam no círculo em torno do rapaz ferido, Reyna agachou-se do lado da porta e olhou fixamente para Percy, erguendo as sobrancelhas.

De novo.

A primeira voz a surgir em sua cabeça foi a da Jason. A briga com Reyna — o motivo pelo qual ela e Jason estavam lá fora, em primeiro lugar.

Então eles precisam de estímulos realmente altos...

O garoto soltou um gemido agudo quando alguém tentou ajuda-lo a levantar.

... Como luzes muito claras e sons muito altos.

Nico transformou seus pensamentos aterrorizados em palavras:

— Estão derrubando a barricada.

— E não são os soldados — Reyna completou.

O rádio de Leo apitou como um alarme. Ele, que estava na borda do círculo de pessoas, deu alguns passos para trás e levou o aparelho até o ouvido. Percy, Nico e Reyna se concentraram, mas Clarisse estava falando tão alto que nem era preciso:

Leo, onde estão esses merdas?! Eu acabei de estacionar do lado de fora e não estou vendo nenhu... — ela parou por um longo momento. E, em um tom quase aterrorizado: — Leo... Leo, por que eles estão caminhando de volta para dentro? O que está acontecendo? Onde estão eles?

Leo não respondeu.

Algo fez pressão no ombro de Percy. As dobradiças da porta fizeram um barulho. Do lado de fora, um som ensurdecedor — o de várias cadeiras e mesas de metal caindo umas sobre as outras, repetidas vezes — fez com que todos esquecessem do rapaz ferido e prendessem suas respirações.

A barricada terminou de cair.

Pelo rádio, Clarisse perguntou:

Leo? Onde estão eles?

Mas Percy achou que ela sabia a resposta.

Do outro lado dessa porta.


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Notas finais do capítulo

(Insira aqui um meme do Capitão América). Paciência.
Ah, e eu gostaria de ressaltar, antes do próximo capítulo: O "Death Fic" ali nas tags... está chegando.
Espero que tenham gostado, comentários são sempre apreciados, e até a próxima!



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