Stellarium escrita por Acquarelle


Capítulo 3
CAP.1, Epi.2: Sob os olhos perolados




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/758618/chapter/3

Enquanto cantarolava, ela passou a arrumar seus pertences rapidamente. Fazia algum tempo que seus suprimentos haviam acabado, o que deixava ainda mais claro que já tinha passado da hora de voltar para casa. Ayase desejava terminar a missão o mais rápido possível para finalmente rever os seus pais e passar bastante tempo com eles (ou no que quer que resolvessem fazer), e só de pensar nisso, uma onda de ansiedade tomava conta de seu corpo.

Desembrulhou um velho mapa nas mãos, passando a estudar o trajeto que fariam enquanto afastava aqueles pensamentos por um tempo. Ainda havia algo a ser feito.

— Nervosa, milady? — perguntou Ryuuki, fazendo os olhos de Ayase se voltarem para ele.

— Um pouquinho. Ainda não acredito que estão incomodando os genories.

Genories eram pequenos peixinhos de tom translúcido que viviam apenas nos arredores de Althum, seu habitat natural. Seus cardumes tinham números incalculáveis de indivíduos, e devido à sua habilidade de se camuflar entre as águas, ninguém tinha paciência para contá-los.

A temperatura de Althum costumava ser mesma durante o ano, o que resultava em um conforto que tornava a migração desnecessária para eles. Genories também tinham acordos cooperativos com animais da região; por serem capazes de purificar a água de qualquer tipo de resíduo (mesmo os que apresentavam níveis de toxina) e gerarem um tipo de substância adocicada e com consistência mole, os indivíduos ofereciam proteção e abrigo em troca das duas coisas.

Por estarem próximos a uma cidade, grandes predadores também não eram problema, já que a população costumava se proteger dos invasores, o que de certa forma era vantajoso para eles. Ao longo dos anos, os pequenos genories foram fixando suas residências ali como se fossem seres racionais, tornando Althum o seu único lar.

Porém, de alguma maneira, algo de errado estava acontecendo com eles.

— Existem vários fatores que podem estar atrapalhando, milady. Temperatura da água, desordem na cadeia alimentar, um novo predador, contrabandistas invadindo o território... qualquer coisa pode ser culpada pela baixa reprodução da espécie. Isso já está ocorrendo a algum tempo, e se continuar dessa forma, em breve os genories podem até entrar em perigo de extinção.

Ryuuki deu uma pausa; aquela situação era mais complicada do que parecia.

— Peço perdão por não ter percebido antes, milady — murmurou enquanto abaixava a cabeça.

— M-mas isso não é culpa sua, Ryuu. Se não fosse por você, talvez iríamos perceber tarde demais!

Ele negou com a cabeça silenciosamente, logo percebendo que as sobrancelhas da garota se arquearam numa expressão preocupada. Naquele momento, provavelmente Ayase estaria formulando argumentos ou desculpas para tentar lhe animar, mas a única coisa que o faria se sentir melhor era a resolução daquele problema. Aquela era sua função como Mediador de Atlansha.

Ayase já parecia pronta para partir, então tudo o que Ryuuki fez foi lhe dar as costas.

— Vamos — sussurrou, fazendo a garota finalmente se mover em direção à porta.

Os dois saíram do quarto, se deparando com uma senhora de cabelos grisalhos. Ela acenou com a cabeça para Ayase enquanto abotoava sua blusa branca e cheia de rendas com arabescos acinzentados, cujas mangas quase ocultavam as nadadeiras fragilizadas com o tempo. Sua cauda de um tom terroso e monocromático parecia puída, prova de que aquela idosa já excedia 1.200 anos de idade e provavelmente não levaria muito tempo para fazer companhia aos corais que decoravam os arredores das cidades.

A senhora sorriu entre dentes desgastados e falou com uma voz mansa:

— Bom dia, senhorita! Você acordou bem cedo, não? Jovens deveriam dormir mais.

— Bom dia, senhora Saki! Eu quero passear um pouco pela cidade antes de voltar para casa, então queria sair o mais cedo possível.

As rugas da senhora Saki ficaram ainda mais evidentes pela expressão triste que seus olhos cor-de-rosa demonstravam.

— Não vai ficar por mais tempo? É uma pena.

— Já passei tempo demais longe de casa, senhora.

Ayase sorriu timidamente, entregando a chave do quarto para ela.

— Espero que volte mais vezes para cá, senhorita.

Antes que a senhora Saki resolvesse puxar ainda mais conversa (no dia anterior, ela havia contado pelo menos oito histórias diferentes a respeito de sua juventude em Althum e cinco de como o seu falecido esposo era uma pessoa maravilhosa), Ayase depositou algumas esferas brilhantes em sua mão e se despediu, arrastando Ryuuki para sua bolsa enquanto se retirava. Tudo aconteceu em um curto período de tempo, então Ayase não ouviu o sussurro ("Até outro dia, princesa!") ou percebeu a reverência que a senhora fez pouco antes dela deixar o local apressadamente.

— Acho que ela te reconheceu, milady.

A pequena cabeça de Ryuuki saiu por uma das aberturas da bolsa de Ayase.

— N-não seja bobo, ninguém aqui me conhece! — resmungou ela, mais uma vez abrindo o mapa para checar o caminho que iriam percorrer até os genories. Aquilo era mais uma tentativa de esconder o seu nervosismo, mas não parecia estar dando certo.

Ayase abaixou o mapa, se permitindo observar um pouco mais da cidade.

Ainda era bem cedo, mas alguns moradores já estavam se preparando para o seu dia de vendas. Era ali que os comerciantes, aventureiros, caçadores e até mesmo contrabandistas de vários reinos de Atlansha se encontravam para comprar, vender e trocar as suas mercadorias. Ayase cogitou contar as últimas esferas brilhantes que tinha para comprar algum presente para seus pais, mas uma voz lhe chamou a atenção:

— Princesa Ayase?!

A dona da voz era uma sereia bonita, cujos cabelos eram tão negros quanto as noites sem lua. Seus olhos perolados não conseguiam conter a emoção que sentia em estar tão próxima de alguém importante para ela, a fazendo tremer enquanto tentava se aproximar de Ayase. Suas roupas claras e com laços em diferentes tons de verde pastel trepidavam com o movimento desajeitado, mas ela forçou a sua cauda e nadadeiras para finalmente manter a estabilidade. Os raios deixavam as suas escamas douradas ainda mais brilhantes, e com o sorriso animado que estampava o seu rosto, ela parecia o próprio sol.

— É a senhorita mesmo, princesa Ayase? — Dessa vez, sua pergunta soou ainda mais alta, o que quase chamou a atenção de algumas pessoas.

— SHHHHHH!! — Ayase encostou o dedo indicador nos próprios lábios. — Fale mais baixo, por favor!!!

— Awaaaa!!!! — A garota se curvou de maneira desajeitada. — P-p-perdão, princesa! E-eu não...

— Não se curve, as pessoas vão perceber...!

Era impossível dizer qual das duas estava mais nervosa.

— Espero que ninguém tenha visto isso... — murmurou Ayase enquanto olhava desesperadamente para os lados. Para sorte dela, nenhum vendedor parecia interessado em duas adolescentes gritando no meio do centro comercial. Será que as duas pareciam amigas de longa data se reencontrando?

— O que a senhorita faz aqui, princesa? Veio participar da inauguração da nova loja de Doces Omeshi? Talvez comprar a nova linha de roupas Lápis Lazuli? Tem uma muito bonita que combinaria com o seu corpo, tenho certeza!! Ou talvez... — Ela deu uma pausa e escondeu um sorrisinho malicioso com uma das mãos. — ...visitar o príncipe Ren?

O rosto de Ayase tomou uma cor avermelhada; desde quando as pessoas pensavam isso dela?

— QUÊ?! — gritou, mas logo tentou manter a postura. — Não! Por que eu visitaria o príncipe Ren?!

— E por que não? Os dois combinariam muito, Alteza! — A garota parecia encantada com a própria ideia.

— E-esse não é o caso — murmurou Ayase, tentando disfarçar seu nervosismo enrolando o mapa.

Os olhos perolados da garota a encaravam intensamente, o que fez Ayase ficar ainda mais envergonhada.

Ela não esperava ser reconhecida por alguém daquela cidade; o motivo pelo qual cortou os cabelos em um estilo tão diferente (apesar das mechas crescerem tão rápido em pouquíssimo tempo), passou a utilizar roupas mais simples, se hospedar em lugares pouco frequentados e sair em horários com menos movimento era apenas para passar despercebida. No passado, ela até costumava utilizar capas para esconder o seu rosto, mas isso só a transformava em uma pessoa ainda mais suspeita, atraindo os olhares que tanto queria evitar.

— Ainda não posso acreditar que estou diante de Vossa Alteza! Eu quase não a reconheci com essas roupas mais casuais... O cabelo da senhorita parece mais curto também, mas está lindo como sempre. — Ela deu uma pausa, tentando recobrar o fôlego. — Sempre achei a cor de seu cabelo maravilhosa, princesa!

Ayase não conseguia acompanhar aquela conversa.

— Mas não entendo o porquê da senhorita estar sozinha. Se perdeu de sua comitiva, Alteza?

E aquele assunto mais uma vez se fez presente.

Não era a primeira vez que alguém que a reconhecia lhe perguntava sobre sua comitiva, guardas ou damas de companhia. Ver um nobre por ai não era tão incomum, mas quando se tratava de uma jovem solteira, a história mudava drasticamente, e Ayase era prova viva do quanto isso podia ser perigoso. Não foram poucas as vezes que tentaram roubar os seus pertences, colocá-la em uma trilha perigosa ou sequestrá-la, mas ela conseguia contornar a situação de alguma maneira.

Após alguns segundos de silêncio, Ayase finalmente respondeu:

— Eu estou aqui em uma missão secreta.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Capítulo 1, Parte 2

E quem achou que nossas peixinhos com nomes estranhos e nossa secundária com nome de flor/cor seriam excluídos dos capítulos reescritos, está muito enganado! Pelo contrário, eu preferi trabalhar melhor com esses dois seres, mesmo que, bem... quem já acompanha Stellarium a algum tempo sabe o que vai acontecer.

Sumire é a típica garota que encontra o seu ídolo na rua (ou no Discord, né galera? *piada interna, não entendam*): a gente até esquece que existem formas apropriadas/educadas para se comunicar e age igual um gorila, o que pode deixar a pessoa constrangida.

Ok, ok... Felizmente esse não foi o caso dela.

Sumire é um peixe-palhaço sem listras mesmo.



Curiosidade!

Ayase e Sumire têm a mesma faixa etária: entre 220 a 340 anos. Convertendo esse valor para uma "idade terráquea", elas teriam entre 14 e 16 anos, ou seja: são MUITO novinhas! Mas não levem isso muito ao "pé da letra", já que as fases de desenvolvimento de Atlansha são diferentes da nossa.

Aliás, a Sumire (340 anos) é mais velha que a Ayase (220 anos).



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Stellarium" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.