Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 11
Pedaços de segredos


Notas iniciais do capítulo

Este é curtinho.



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— Já vai ficar sem usar a cueca?!

— Ninguém merece dormir apertado! Amanhã eu visto pra ir na escola!

Talvez ele tivesse razão. Pra dormir é bom mesmo que estejamos muito confortável. Mas poderia tirá-la na hora do dormir! Ainda faltava muito.

 

Pedaços de segredos.

 

Na manhã de terça-feira, enquanto Regis e José Carlos faziam seus deveres escolares na mesa da sala e os maninhos pequenos brincavam no chão ao lado deles, fui lavar a louça para mamãe, que, aproveitando dessa ajuda, começara a preparar o almoço e assim, estando juntos, aproveitou:

— Você disse que vem de um tempo no futuro. É complicado entender isso. Porém, se é isso, você tem família por lá!

— Sim! — concordei. — Mulher e três filhos! Já falei isso!

— E agora? Como eles estão?

— Não sei! Creio que estejam bem!

— Uma família precisa de um esposo, um pai! E agora?

— Não sei, mamãe! O que eu posso fazer?

— Como eles terão dinheiro pra pagar as contas?

— Quanto a isso não nos preocupemos. Está tudo sob controle.

— Não sente falta deles?

— Claro que sinto! Estou morrendo de saudade deles! E estou pensando, eu não queria ir embora nunca mais, pois estou adorando ter voltado pra este corpinho de menino serelepe. E se ir embora, vou ficar com muitas saudades de todos daqui. Mas por outro lado, a senhora tem razão. O que está acontecendo com eles? Será que sabem o que aconteceu comigo? Estão sofrendo!

— Passando necessidades… — emendou ela.

— Não necessidades financeiras! — neguei convicto. — Já disse que está tudo sob controle.

— Como não! Sua mulher… — pensou um pouco e riu. — É engraçado falar sua mulher para meu filho de nove anos de idade. Mas… ela trabalha? Algum filho trabalha?

— A caçulinha está no ginasial, mamãe! O outro estuda na faculdade e mora em outra cidade. O mais velho cuida de sua própria vida. Já é independente. Minha mulher não trabalha fora. Cuida apenas da casa, que é gigante e dá muito trabalho.

— Sua casa do futuro é gigante?

— Digamos que… o dobro dessa.

— Por que tão grande para apenas… cinco pessoas?

— Quando a senhora era criança morou em uma casa de dezessete cômodos, mamãe.

— Só que o número de moradores também era grande, quinze pessoas.

— De fato — ri irônico. — As famílias antigas eram numerosas.

— E quem leva o alpiste pra esta família do futuro?

— Eu diria que sou o arrimo da família — ri convicto. — Mas quanto a isso não se preocupe, estamos estabilizados financeiramente e ela tem meus cartões.

— Ainda bem! — Confortou-se ela, sabendo que se os filhos estão bem, então ela, sendo a mãe, estará bem também. — Só que se você demorar muito, a estabilidade financeira poderá diminuir.

— Mamãe… não vai acontecer. Lá nesse futuro, não somos ricos, mas a grana não vai acabar. Mesmo porque, já estou aposentado e o dinheiro entra automaticamente em minha conta bancária.

— E nesse futuro… você disse que não revelará fatos de lá. Mas… eu estou lá?

— Serão cinquenta anos no futuro. A senhora sabe que todos partiremos desse mundo um dia. Hoje a senhora tem trinta e quatro anos de idade. Conseguirá chegar aos oitenta e quatro?

— Não sei! Quem sabe! — riu ela duvidosa. — Você sabe!

— Verdade! Eu sei! Porém, não me force a contar coisas de lá, mamãe! Pode não ser legal!

— Concordo com você — aceitou ela séria, acreditando que não estaria entre nós. — Embora a gente fique curiosa, não é bom sabermos do futuro, pois mudaria o nosso presente.

— Pensamento inteligente o da senhora. Por exemplo, o Regis sabe agora que terá uma família. Não é difícil imaginar que não será o padre que almejava ser. Com isso não lutará mais para isso. Faltará alguma coisa em seus objetivos. Deixando de lutar para ser padre ele não conhecerá o Rony…

— Quem é Rony? — interrompeu ela.

— Um amigo que eu farei ou faria aos doze anos de idade. Se o Regis não lutar para ser padre não o conhecerá. Talvez seja bom. Não pro Regis, mas pro Rony! Por quê? Ele terá tendências homossexuais…

— O Regis!? — espantou-se mamãe.

— Claro que não, mamãe! O Rony!

— E o que quer dizer isso? — ainda assim se espantou mamãe. — Ele vai querer namorar o Regis?

— No começo da amizade não! Serão apenas duas crianças… adolescentes. Serão bons amigos. Só que aos quinze anos, acho que o Rony começará a sentir por Regis um desejo diferente. Quando ele perceber isso, ver que o amigo quer se tornar o seu dono vai resolver se afastar. Isso não será legal.

— O que você quer dizer… — continuava assustada, mamãe.

— Calma. Não acontecerá nada de mal com Regis, senão eu não estaria aqui.

— O que há então?

— O Rony, ao perceber que está perdendo o amigo, entrará em depressão psicológica e… sabe como é!

— Vai se suicidar?! — tentou adivinhar mamãe.

— Sim! Tentará suicídio com uma corda no pescoço. Porém sobreviverá. Regis nunca mais o verá. Embora trabalhe na mesma fábrica que o pai do garoto…

— Regis trabalhará numa fábrica com quinze anos de idade?!

— Não com quinze! Começará com onze!

— Tão novo! — estranhou ela.

— Não se aflija! — ri. — Com dez começará a trabalhar na olaria com o irmão José.

— É! — espantou-se ela. — E a escola?

— Pra senhora ver! Terminará o quarto ano e abandonará a escola até lá pelos quinze. Depois fará o ginasial em escola particular e o segundo grau muito longe daqui. Só se formará, já adulto.

— E o amigo dele, Rony?

— Pois é! — balancei os ombros. — Acho que minha vinda aqui acaba de alterar este destino.

— Acho que não convém mesmo falarmos sobre estas coisas — concordou ela.

— Mesmo que não tivesse falado nada, Regis sabe que terá família no futuro, portanto sabe que não será padre. Sabendo disso, não lutará para tal, não conhecerá Rony, que não se apaixonará pelo gatinho e não tentará suicídio. Quer dizer… de todo jeito, Regis conhecerá e será amigo do pai de Rony. E se um dia este amigo o convidar pra ir à sua casa?

— O que é que tem? — Não entendeu mamãe.

— Poderá conhecer Rony assim mesmo!

— Eu não quero meu filho tendo caso com gay!

— Ele não terá! Confie em mim! Regis jamais sentirá desejos pelo garoto. Na história real, ele só será amigo.

Mamãe, embora nervosa com tal conversa, suspirou com certo alivio.

— A propósito… em dois mil e dezoito a senhora estará conosco. Só que não me pergunte mais nada de outros.

É®Ê

Além de ajudar mamãe um pouco em suas atividades diárias do lar, à noite, brincar na rua com os outros garotos, se tornaria então minha principal obrigação de criança, pois não iria mesmo à escola.

Já fazia mesmo uma semana que eu teria chegado ali sem avisar, portanto estava na hora de começar a conviver com… crianças.

Quando apareci na rua naquela noite, todos os demais garotos e garotas se espantaram.

— Quem é você?! — admirou-se Regina, bonita menina de cabelos escuros lisos, poucos meses mais jovem do que nós e que morava na casa ao lado.

— Ele é meu primo que mora em outra cidade — tentou explicar o irmão José. — Acho que vai ficar morando conosco!

— Primo! — riu Juan, um paraguainho de nove anos de idade. — Com o mesmo focinho do Regis?!

— Claro! Ele é filho da minha tia!

— Lógico! — ironizou Vera, negra, moradora na esquina abaixo, mesma casa em que Juan, pois este, embora branco, de cabelos negros, como raramente vê os pais, é cuidado pela avó de Vera. — Se é primo só pode ser filho da tia! Não iria ser filho da vó, nem do padrinho!

— Mas eu não expliquei por que eles são iguaizinhos! É que minha tia é irmã gêmea de minha mãe!

— Ãh! — até eu estranhei tal justificativa, já que mamãe não tem nenhuma irmã gêmea. Deveria ter, mas como disse a vovó, a pobrezinha morreu quando era bebê e com certeza antes de gerar este menininho loiro.

Com isto, cativar todo o grupo, principalmente as garotas foi muito fácil, pois irmãos gêmeos são vistos com certa raridade e se o menino for de outra cidade, como “inventou” o irmão José, se torna assim especial. Foi o que aconteceu com Juan Nogueira quando chegou a nosso bairro, vindo talvez, não só de outra cidade, mas de outro país, o Paraguai e se tornara o garanhãozinho entre os meninos, com seu jeito arrastado de falar nossa difícil Língua Portuguesa, conquistando o coração de todas as meninas.

Agora ele teria dois rivais românticos (mentira, crianças não pensam em garotas. Só em brincar.): eu, por ter acabado de chegar de “outra cidade” e meu irmão Regis, por ser idêntico à mim.

Uma vez resolvido esse impasse de menino novo no grupo, começamos a brincar, a princípio de pic-esconde, a qual, embora eu não participasse até a noite anterior, já sabia que as meninas sempre se escondiam junto com o paraguainho, agora elas se dividiam entre três garotos, que na verdade nem dava muito atenção a elas, pois como se sabe, “meninas gostam de meninos e meninos gostam de… futebol”.

É®Ê

Seis horas da manhã, levantei, seguindo ao banheiro para eventuais necessidades fisiológicas e depois, como todos os dias, aproveitando que já estava no lugar próprio, escovar os dentes.

Ao sair, encontrei mamãe na cozinha, que ajeitava os paus de lenha no fogão para preparar o café.

— Bom dia, mamãe! — cumprimentei-a.

— Deus te abençoe, filho! — ironizou ela. — Não era assim que me cumprimentava antes?

— Sim! Eu quero a sua benção sempre, mamãe!

— Por que levantou tão cedo?

— Adoro levantar cedo!

Segui até o poço, puxando um balde de água muito limpa e de aroma delicioso (embora inodora, que até o maninho Regis com certeza já conhece tal termo) que já saiu em temperatura morna.

Quando o balde chegava na boca do poço, mamãe me ajudou a arrastá-lo para fora, dizendo:

— Tenho medo que você faça isso sozinho. Se deixar o sarilho escapar das mãos, pode machuca-lo.

— Não vou deixar o sarilho escapar, mamãe!

Voltei para a cozinha, levando um balde de água, do qual, mamãe encheu a chaleira, levando ao fogão e adicionando açúcar, para preparar o café.

Tirei minha camiseta, permanecendo apenas de cueca, seguindo para a pia improvisada, onde comecei a lavar a louça do jantar anterior.

— Você tá parecendo um homenzinho, vestido assim! — ironizou ela.

— Sou um homenzinho! — franzi a cara. — A senhora não acha que fico melhor assim, do que com aquela cueca de saco de farinha?

— Não é de farinha! É de açúcar!

— Jura! Por isso que as garotas se apaixonam por mim!

— Como assim? – estranhou ela.

— Sou um menino doce!

— Tá certo — riu ela. — Meu docinho de açúcar! Mas fale pras garotas que não vou deixar roubarem você, não!

— Estou brincando! Não gosto de garotas! Vim aqui pra ser criança e criança não namora, brinca!

— Também acho — concordou ela. — Esse negócio de adultos acharem uma gracinha dizer que as crianças estão namorando, não é bom.

— Não se deve incentivar o erotismo em crianças antes da hora certa. É tirar a pureza e inocência delas. Depois acham o fim do mundo que meninas de doze anos, talvez até menos, virem mãe.

— Isso não acontece!

— Aqui ainda não! Mas lá no meu mundo está se tornando rotina.

— Crianças virando mãe? — estranhou ela.

— Sim! E não vai longe! Tem uma menininha que a senhora conhece muito. Quando ela tiver onze anos, vai paquerar… namorar o Regis. Preste atenção, porque ela será uma das que vai ter bebê com menos de doze.

— Acha! — espantou-se mamãe. — Quem é ela? Me fale, porque eu não vou deixar!

— Não se preocupe tanto, mamãe! Não será filho do Regis! Eles vão namorar sim, depois irão separar. Pra fazer ciuminho tolo, ela ficará grávida do primeiro cara que aparecer na frente dela. Depois os dois voltarão ao namoro, mas antes do bebê nascer, Regis perceberá que ainda não é sua hora de ser pai de um filho que não é o seu.


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