Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 25
O Barbeiro e a Doença Santa


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! O capítulo demorou para sair? Demorou, mas olha só o tamanho dessa coisa, acho que compensa um pouco a demora hehe. Aliás, Ode chegou a mais de 50 acompanhamentos! Fico muito agradecida a todos vocês, seja os que acompanham desde o início ou o pessoal que chegou agora. Agora quero saber onde está todo esse povo?? A sessão de comentários anda meio deserta ultimamente e seria legal trocar um papo com vocês, deixem a autora aqui felizinha ♥
Espero que gostem do capítulo, boa leitura!



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A lógica era simples, apesar de duramente cruel: se parassem e desistissem de continuar, padeceriam. Por isso mesmo sem grandes perspectivas e exaustos pela fome e caminhada sem destino, os dois companheiros lutaram com as poucas armas que possuíam para sobreviver.

Loki poderia ser um bom caçador, e Friedrich ter muita habilidade na pesca, mas estas não deixavam de serem atividades guiadas muito pela própria sorte. Conseguir mais que uma refeição por dia era difícil, mas ao menos era uma sustância que conseguiam manter diariamente para conseguirem seguir em frente.

O plano num primeiro momento era procurar por vilarejos que não parecessem saber dos boatos acerca de Loki, lugares isolados ou até mesmo os ditos burgos que estavam começando a se tornar mais frequentes naqueles tempos. Quiçá conseguissem algum trabalho, nem que fosse algo temporário que por vezes era oferecido mesmo a colheita já tendo passado, onde por mais que temessem ficar presos no sistema feudal ainda não possuíam melhores soluções por ora.

Naquela situação havia um maior desleixo com a própria aparência, em meio às dificuldades de se encontrar o básico da sobrevivência o ambiente não favorecia e as prioridades mudavam por completo. Loki não cuidava mais da barba delineada que agora lhe tomava a maior parte do rosto, tornando-se desgrenhada e começando a cair em direção ao seu peito feito o velho Merlin das histórias, as unhas tornaram-se sujas de terra por tanto procurar por raízes e plantar armadilhas de caça. Enquanto Friedrich sempre de rosto liso e cabelo rente agora se via com a barba fina lhe comichando, a franja cor de palha começando a tocar levemente as sobrancelhas, as roupas manchadas de barro permaneciam no corpo por não haver mais tecido limpo disponível.

 Mesmo que nenhum deles tivesse mais que três décadas de vida, em momentos como aquele acabavam por parecer bem mais velhos do que o eram. As linhas do rosto tornavam-se mais evidentes, os olhos fundos como os de um crânio sem carne, a pele pálida feito seiva e de um toque áspero e sem vida, os corpos que mal tiveram tempo de se recuperar da míngua do último inverno já se viam próximos a magreza da fome mais uma vez. Olhavam-se vez ou outra em silêncio, como se dividissem o olhar miserável que estampavam, se perguntando se a figura da bonança já havia existido alguma vez ou era apenas uma breve miragem de muito tempo atrás.

Pois naqueles tempos os que pouco viviam, quando não faleciam por tragédia, seria pela fadiga a encurtar a vida.

Era final do dia quando os dois resolveram parar um pouco a caminhada e descansarem escondidos pelas árvores. Exausto e com as pernas doloridas, Loki adormeceu com a cabeça apoiada no colo de Friedrich que rezava em silêncio como sempre fazia rotineiramente no tempo livre. Há pouco tempo quiçá esse momento parecesse antagônico para o antigo frade, porém agora apenas queria agradecer a Deus por mais um dia de vida e pedindo que ajudasse não só eles como todo o mundo em desgraça naqueles tempos difíceis. A fé e Loki eram uma das únicas coisas que ainda lhe restava afinal de contas.

Mas a algumas dezenas de passos longes, chegando pela estrada em uma carroça puxada por dois cavalos velhos, Humberth de Edimburgo segurava as rédeas com o rosto encurvado, o cenho franzido enquanto pensava nos filhos espalhados um em cada ponta do mapa. ‘’Ingratos... ’’ Pensava com certo rancor misturado á preocupação latente que sentia a todo o momento, não sabendo como estavam e sentindo falta da presença de todos na estrada em sua companhia. Uma hora todos viraram adultos, criaram suas próprias famílias, e nenhum quis continua acompanhando ele e a mulher pela estrada ou seguir o mesmo ofício que eles. Geralmente os filhos acabavam tendo a mesma profissão que os pais, era assim que funcionava e havia aprendido, por isso para Humberth era tão difícil aceitar a escolha feita por sua prole.

Só queria parar em algum lugar e descansar, o peso de Reese já lhe amortecia o braço e o ombro direito, poderia muito bem acordá-la mas não tinha a coragem de incomodá-la. Se tivessem sorte, chegariam à manhã seguinte ao burgo que outros andarilhos que encontrou no caminho haviam comentado.

 A dupla de fugitivos a frente não conhecia o homem, e nem Humberth e sua esposa Reese os conhecia, mas como segredo de narrador agora sabemos que esses dois grupos distintos iriam se cruzar de alguma forma, pois não estaríamos lendo os devaneios do estranho sem motivo algum.

Os olhos semicerrados de Friedrich se abriram por completo ao ouvir de longe o trote lento de cavalos puxando uma carroça. Alarmado, sacudiu o corpo de Loki que acordou num sobressalto, com o olhar atônito questionando em silêncio o porquê do despertar tão abrupto.

— Há alguém chegando pela estrada, ouça. – Friedrich alertou sussurrando, ambos permanecendo em silêncio para ouvir os cascos contra a terra e as rodas a rangerem enquanto circulavam.

— Talvez possam nos levar até o vilarejo mais próximo!

— Acha que é seguro?

— Não, mas é melhor correr o risco do que ficarmos mais tempo nessa floresta.  – Loki retrucou e com tal lógica o alquimista não viu o porquê de pestanejar, visto que sentia ser digerido por aquelas árvores lentamente conforme o tempo passava. Levantaram-se em um salto, tirando o amassado das roupas e tentando parecer menos maltrapilhos do que eram. Correndo em direção a estrada onde já se podia ver ao longe a carroça se aproximando.

 Humberth pode vislumbrar mesmo com os olhos velhos e cansados a silhueta embaçada dos dois andarilhos, notou um acenar vindo do ruivo de baixa estatura e franziu mais ainda as sobrancelhas grossas. Poderia simplesmente ignorá-los e fazer os cavalos trotarem mais rápido, contudo tal ato não era do seu feitio, talvez requisitassem seu trabalho ou somente precisavam de ajuda. Não é o que o bom Deus deseja de seus filhos, por isso não era de negar auxílio. Todavia, aqueles eram tempos árduos e perigosos até para um peregrino experiente como ele, o que causava uma desconfiança que antes o velho não tinha presente em seus pensamentos.

— Oh Berth, acho que aqueles dois estão esperando nossa parada. – Reese apontou fazendo-o se questionar a quanto tempo ela estava acordada na verdade. – Não parecem oferecer perigo.

Confiava nos olhos da esposa que ainda enxergavam feitos os de uma águia, por isso parou os cavalos que não hesitaram em descansar um pouco as pernas cansadas. A dupla se aproximou a passos rápidos, visto que esperavam por qualquer aparição humana por tempo mais do que suficiente.

— Saudações compartes de estrada! – Loki cumprimentou com seu sorriso mais simpático e audacioso como era quase se apoiou na carroça sem pedir, se não fosse por Friedrich a lhe puxar o braço discretamente no último segundo para afastá-lo. – Para onde vão, se me for permitida a questão?

— Escócia. Mas como há muito chão a percorrer, o que vier a nossa frente já é o bastante por enquanto. – Disse-lhes o homem com um notável sotaque escocês, de idade já avançada, com os cabelos brancos a tocarem o ombro e o rosto tomado pelas linhas e rugas do tempo, mas ainda parecia ter muita vitalidade assim como a mulher ao seu lado, ambos de traços que denotavam já terem sido um belo casal que chamava a atenção de quem passasse por eles. O senhor usava uma camisa de linho cinzenta simples, mas trajando um kilt de cores vibrantes em verde, azul e preto sustentado por um broche oval de tiras de couro, enquanto a esposa trajava um belo vestido cor de areia com detalhes em verde nas mangas e na bainha, ambos trajando roupas que apesarem de estarem gastas e desbotadas notavam-se a qualidade dos tecidos.

— Fugindo da peste? – Loki indagou recebendo um riso seco do velho.

— Já não há mais para onde fugir, certo? Não, apenas retornando para casa. Até os andarilhos precisam voltar vez ou outra.

— Deve ser bom possuir um lugar para onde voltar. – Comentou Loki com um sorriso melancólico, mas não se deixando divagar por tempo demais. – Pois bem, chamo-me Loki e este é meu companheiro Friedrich. Estávamos pela região de York antes de termos sido abordados por vândalos e ficarmos sem grandes chances de continuarmos a caminhada para muito além. Seríamos gratos se tiverem a bondade de nos guiarem ao primeiro local seguro que aparecer.

— Pouco nos sobrou, mas retribuiremos da forma que nos for possível. Não somos ladrões nem aproveitadores, honramos nossa palavra. – Friedrich complementou, pondo-se ao lado do ruivo.

— Pobres coitados! – Exclamou a mulher ao lado do marido. – Mas hei de afirmarmos que as estradas não estão como antes, os feudos estão se desmanchando, as colheitas dando pouco, com pessoas fugindo da peste e miséria para cair nas graças do Maligno... Vamos Humberth, ofereça ajuda aos dois! Quem vive da estrada tens de ajudar um ao outro.

— Ouviram Reese, subam. Mas não toquem nos embrulhos! – Humberth fez sinal para que fossem na porção de trás e os dois sorriram de alívio por conta disso, subindo rapidamente e puxando o cão consigo enquanto agradeciam solenemente aos dois salvadores.

— Então, há quanto tempo não retornam para Escócia? – Loki indagou curioso, mas também para mostrar simpatia frente à generosidade do casal. Não eram todos que aceitavam a companhia de dois estranhos, mesmo que naquele momento ele e Friedrich não oferecessem grande perigo ao não possuírem mais arma alguma para suas defesas.

— Quase dez anos! Ficou um filho com os francos e outros dois em Londres, para agora voltar a rever os que ficaram em nossa terra. Teríamos retornado antes, mas por conta das guerras entre os nobres do meu e do teu povo tornou-se difícil nosso retorno. – Humberth relatou com certa revolta no tom.

 – Não os incomodas por oferecer ajuda ao inimigo de batalha? – Loki questionou recebendo em seguida uma cotovelada do parceiro que o encarou com censura nos olhos. ‘’Tem mais boca do que juízo!’’ Friedrich pensava, esperando que o casal não os expulsasse após isso.

— Ah meu filho, vivendo tantos anos dessa forma nos tornamos mais da estrada do que de algum reino. Amo minha terra e suas montanhas, mas viajando para tantos lugares de carroça o que parece é que o mundo não é de ninguém além do nosso Senhor. – Humberth divagou de forma distante e nostálgica, da forma que as pessoas em certa idade passam a pensar do passado de maneira profunda e distante, como se não houvesse mais nada que pudesse o surpreender. – Além do mais, essas batalhas parecem-me distantes, seja dos ingleses com os escoceses, irlandeses e os francos. Os motivos vem lá de cima, dos donos do ouro e das terras, das famílias de nome e suas intrigas pessoais. Não me parece mais tão glamoroso para nós da plebe como contam as histórias sobre o velho Wallace. Mas quem sou eu para dizer algo? Espero poder chegar à Escócia de vez e ver com meus próprios olhos o que se passa. Até lá, nem eu ou você está usando cota de malha e armadura para duelar, certo?

Ambos riram do último comentário enquanto a viagem seguia-se calma. Os cavalos não eram dos mais ágeis, mas já eram de grande ajuda para todos eles, com os embrulhos em pele de carneiro e boi tilintando com o sacolejar da carroça, fazendo Friedrich se perguntar do que se tratavam afinal de contas.

— E o que os leva a essa vida de peregrinos? – O alquimista indagou por fim.

— Sou apenas um barbeiro a procurar por fios pra cortar e dentes a serem arrancados. – Humberth respondeu e no mesmo instante os dois companheiros se encararam, da forma cúmplice que sempre faziam e buscando pelas reações um do outro. As sobrancelhas se sobressaltaram e Loki não conteve um largo sorriso no rosto ao ouvir aquilo, afinal, não era sempre que se encontrava alguém da mesma área de ofício, no qual provavelmente ao conhecer tal área não julgaria suas ervas com mesmo ardor que o resto do povo. Pois aqueles embrulhos eram repletos de lâminas, mas não só para barbear.

— Pois que agradável coincidência! Não somos barbeiros, mas uma dupla de curandeiros ambulantes. Acredito termos muito que compartilhar durante a viagem! – Loki disse animado e Humberth virou o rosto para trás surpreso, mas sorrindo com todos os dentes que apesar de amarelados ainda possuía todos em sua boca.

— Uma surpresa deveras aprazível! Quem sabe não descobrimos a cura da peste durante este tempo? – Retrucou o velho jocoso entregando às rédeas a esposa para que pudesse passar o tempo falando com os dois viajantes com mais atenção.

E o que imaginaram que seria somente uma viagem silenciosa e desconfortável junto á estranhos, tornou-se um verdadeiro conclave entre os praticantes do ofício médico. Não era o palanque de uma universidade, com doutores a recitarem os ensinamentos dos antigos, apenas gente simples com o conhecimento de suas devidas culturas e de tantas outras que tiveram a oportunidade de conhecer. E por incrível que parecesse, nenhum dos dois cenários eram tão distintos no saber, visto que as universidades e mosteiros poderiam possuir menos fantasias e superstições em seus métodos, mas o conhecimento parco sobre o corpo do homem e dos animais não ia muito além dos barbeiros e curandeiros a andarem pelo reino, por vezes era até mais limitado pela Santa Madre Igreja – os saberes cirúrgicos podiam ser mais avançados, por exemplo, mas impedidos pelo clero por se assemelharem a necromancia. –. Por vezes a liberdade do mundo compensava o afastamento dos livros, como as flores e ervas que Loki sabia de cabeça sobre suas curas.

O pai de Humberth fora um barbeiro, assim como o pai de seu pai, e toda sua genealogia passou pelo ensinamento das mesmas artes, que pouco mudaram em todos aqueles anos. Apesar de a maior parte do trabalho ser o corte de cabelo e barba, os ofícios da cura sempre apareciam vez ou outra para que resolvesse. Loki ficou surpreso por constatar que ele e Reese também sabiam do benefício das plantas, não tanto quanto ele próprio mas era um conhecimento considerável. Humberth ficou entusiasmado em trocar seus ensinamentos, ficando interessado no que Loki e Friedrich tinham a oferecer assim como a dupla se interessava pela experiência que os quase trinta anos na estrada do escocês trazia.

Ele poderia não saber tanto das plantas quanto Loki, ou possuir o conhecimento de técnica anatômica como Friedrich, mas Humberth havia vivido o bastante para presenciar uma variedade de condições e enfermidades que os livros nem sempre catalogavam.  Febres tão fervorosas que mudavam o tom da cútis, estranhas dores no canto do abdômen que levavam a morte em menos de três dias, tosses em sangue que matavam vilarejos inteiros, recém-nascidos a morrerem misteriosamente de barriga inchada, mortes de asfixia sem que houvesse nada a apertar os pescoços, anomalias de nascença de todos os tipos, pústulas enormes a mutilarem o corpo, manchas na pele tão mortais quanto dolorosas, envenenamentos de sintomas cruéis feitos tortura, lágrimas de sangue, fogo regurgitado, danças incontroláveis a matarem os enfermos de fadiga... A variedade de doenças chegava á um nível em que se tornava difícil saber quais poderiam ser reais e quais eram apenas exageros do relator.

A dupla de curandeiros se apavorava com os relatos, por mais que trabalhassem na área e já tivessem visto coisas terríveis no trabalho, mas no fundo também sentiam uma curiosidade impura quanto tudo aquilo, onde por mais enojados que ficassem a sede pelo saber pedia por ainda mais detalhes. Se Friedrich tivesse ainda disponível, pegaria pena e papel e se colocaria a escrever caso por caso para guardar á si e a posteridade se um dia tal saber fosse preciso. Pois a luta por qualquer migalha de conhecimento a mais precisava ser árdua até mesmo quando se trabalhava em meio aos livros como o alquimista um dia fora, pois todos sabiam das perguntas sobre o mundo, mas quase não se haviam suas respostas. Única certeza que possuíam era a de Cristo.

Mas se o encontro com o velho barbeiro já não tivesse sido proveitoso de diversas formas, Loki começou a se indagar se Humberth quiçá pudesse responder as dúvidas quando a estranha doença de Friedrich, nem que fosse um único relato de um caso semelhante, ao menos para que soubessem não se tratar de algo tão desconhecido a ponto de quase o matá-lo por causa da ignorância alheia. Perguntava-se também se o companheiro tinha tais dúvidas, visto que não questionaria a Humberth sem que o outro concordasse ou desejasse saber por si próprio.

 Pela noite, quando todos adormeciam e a cabeça de Loki fervilhava por pensamentos, o druida se aproximou do companheiro que descansava alguns passos longe dele – visto que não queriam causar suspeitas quanto ao verdadeiro relacionamento entre eles – percebendo que Friedrich também se encontrava acordado, visto que ele virou o rosto em sua direção assim que notou a aproximação.

— Boa noite meu caro. – Loki sussurrou de forma amistosa, e apesar de um sorriso solene aparecer em Friedrich, o alquimista ficou em dúvida quanto à aproximação repentina, elevando o corpo e se apoiando pelos cotovelos.

— Boa noite, que o trazes aqui?

— A falta de tua formosa presença. – Disse-lhe o druida com o sorriso sacana de sempre, fazendo Friedrich agradecer pelo breu a lhe ocultar o rosto rubro. Para o alquimista era um fato a ser estudado a forma como Loki o cortejava de forma tão natural e livre, enquanto ele se via submerso em decoros que o fazia até mesmo estranhar aquela forma de demonstrar afeição.

— Tem de ser mais cuidadoso que isso Loki. – Friedrich falou ficando temeroso, esticando o pescoço para se certificar que o casal de barbeiros continuava adormecido na carroça.

— Mas este sou eu sendo cuidadoso, ou me espreitaria pela madrugada para adormecer enlaçado contigo como sempre.

— Não és o que está fazendo? – Friedrich inqueriu erguendo as sobrancelhas.

— Não. Em verdade trata-se de uma conversa séria. – Loki endireitou a postura, tornando o sorriso pândego de seu rosto uma mera linha reta. – Estive pensando se talvez Humberth e Reese saibam algo sobre sua condição.

Mesmo no escuro, Loki notou que o companheiro se sobressaltou com o início do colóquio, visto que sua doença era um tema complicado para ele. Ficou calado por um instante, se emaranhou e disse após respirar fundo:

— Isso também estava passando por minha cabeça, por isso ainda me encontro desperto. Porém... – Friedrich hesitou mais uma vez, visto que as lembranças de tudo que se sucedeu no mosteiro o devoravam por dentro sempre que pensava sobre o assunto. – não sei se é uma boa ideia os questionar.

— Não desejas saber mais sobre este teu fardo? – Loki questionou preocupado.

— Claro que sim! A questão é que... Sinto medo, sabes disso. – Friedrich respondeu desviando o olhar e juntando as mãos por nervosismo, sabendo que sua angústia tornara-se quase irracional aquele ponto, temendo até que a própria sombra descobrisse seu segredo.

— São barbeiros, viram coisas ainda mais terríveis. Sinto que não fariam nada contigo. – O druida tentou acalmá-lo, mas não recebendo sequer o olhar do outro de resposta, estando ansioso demais para pensar em dizer qualquer outra coisa. – Mas claro, cabe a você saber o que deseja fazer.

Friedrich o olhou com o canto dos olhos, assustado feito uma lebre, hesitando um pouco mais antes de formular uma frase.

— Eu gostaria de saber... Realmente queria, mas tenho este temor que não me abandona em momento algum, tão persistente que me engole feito a sombra de uma montanha fria que me perseguirá durante toda a vida. – Friedrich engoliu em seco, virando seu olhar novamente para Loki e tentando encontrar forças de algum lugar profundo de seu âmago para conseguir se expressar. – Porém, também temo uma resposta se a tiverem. Caso for uma moléstia conhecida, significa que minha pessoa fora tão insignificante para Inquisição que pouco fizeram para compreender o que se passava, tornando meu sofrimento em algo vão. E se for tão inexplicável como havia sido, significa que estavam certos... E isto também é algo difícil de lidar para mim.

Loki segurou o ombro do companheiro com firmeza, olhando-o com os olhos de gato em tamanho ardor que parecia faiscar fora de suas íris.

— Não importa qual seja a resposta Friedrich, o que fizeram contigo foi errado de todas as formas. Sei o quão difícil é se esquecer de algo assim, na realidade creio que nunca esqueça. Mas se há um conselho que talvez valha de alguma coisa, é que eles não merecem uma única lasca de seus pensamentos Freddie.

Friedrich ficou atônito com o discurso do companheiro, mas compreendendo cada palavra advinda de sua força. Refletiu sobre o que Loki dissera, sentindo-se melhor mesmo com o resto de medo ainda lhe incomodar o fundo da garganta.

— Queria ter o tanto de sua coragem Loki, mas sou grato por ao menos poder sentir parte de sua bravura. Se ainda acreditas em mim, creio que posso mesmo que com meus medos falar com Humberth sobre minhas dúvidas. – Disse por fim, ambos sorrindo de maneira cúmplice enquanto sentiam a ânsia de darem-se ao menos um abraço de conforto, mas temendo que até mero gesto pudesse levantar suspeitas aos anfitriões desacordados.

— Se te fazer sentir melhor, podemos pedir como se fosse um caso visto por nós, não precisa dizer que ocorres com tu.

— És uma boa ideia, pensarei melhor sobre o caso. Contudo, creio que infelizmente seja melhor voltar ao teu lugar, já estamos tramando no escuro há tempo demais. – Friedrich disse com cuidado e ambos fecharam o cenho, chateados por temerem dormir próximos como se acostumaram desde que se revelaram um ao outro. Contudo, mesmo naquele clima repleto de receio, Loki ainda teve a audácia de pegar a mão de Friedrich e depositar um beijo, afastando-se em seguida tão silencioso e ligeiro como uma serpente. O alquimista apenas permaneceu estupefato, o coração galopando dentro do peito, mas acabando por sorrir como enamorado mesmo frente aos riscos tomados.

Na manhã seguinte, indagaram a Humberth e Reese se já haviam presenciado algum caso parecido, sem deixarem claro que se tratava de Friedrich. Loki inicialmente foi quem mais descreveu e relatou, mas ao ouvir o companheiro falar sem receber qualquer reação exasperada do casal idoso, Friedrich começou a tomar a voz ao poucos, complementando algumas partes, até chegar ao ponto de ser o único a descrever em detalhes minuciosos cada aflição de sua moléstia, deixando de temer por um instante o que poderiam dizer. Humberth chegou a se perguntar se os dois tinham alguém tão próximo com tal doença para contar em tamanhos detalhes, enquanto Reese mais intuitiva já se atentava se algum deles quiçá não sofresse de tal enfermidade.

— Hm... Já vi muitos casos convulsivos durante a vida, por causa da febre, pancada na cabeça... Mas da forma que estão falando, de alguém que sofre desse mal de maneira esporádica. – Humberth unia as sobrancelhas grisalhas e grossas, o bigode bem aparado franzindo ao ponto de esconder o lábio superior. Sabia que já tinha ouvido falar de algo semelhante antes, mas quando? Caçava por suas memórias centenas de situações que havia passado, tentando se lembrar de onde aquela familiaridade tinha origem.

— Se lembra de quando estávamos em Constantinopla Berth? Como era o nome daquilo que aquele médico sarraceno havia lhe contado durante a viagem? – Reese indagou fazendo com que a memória do homem se iluminasse, visto que os olhos pareceram quase pular da face pelo sobressalto.

— Mas é claro! Os gregos pagãos haviam descrito este fenômeno, o chamavam de ‘’Doença Santa’’.

— Doença... Santa? – Friedrich indagou incrédulo, como se as palavras não fizessem sentido em sua boca. E se fosse parar para analisar, para ele ao menos não fazia, pois de todas as formas que poderia descrever seu infortúnio, santa jamais esteve entre elas.

— Não sei por que raios chamaram de tal forma, mas pelo jeito era algo sabido há bastante tempo. Dizem que é causado pelo cérebro, provavelmente acúmulo de humores, e sendo o cérebro a controlar tudo, leva a fleuma ao restante do corpo, ocorrendo o desequilíbrio dos humores e consequentemente as convulsões. – Ambos ouviam atentamente o que o velho barbeiro explicava, atônitos com a explicação lógica e longe de todos os ditos de maldições que haviam sido ditados para Friedrich.

— Interessante saber disso, pois minhas hipóteses não eram tão distintas de tais ideias. – Friedrich comentou impressionado. Se já lhe causava grande alívio saber que Humberth e Reese não ficavam terrificados com a descrição de sua doença, saber o quão sensatos eram para lidar com enfermidades lhe causava um sentimento de esperança adormecido quanto ao progresso da medicina.

— Vejo que é um rapaz astuto ao deduzir isso. Pois ao contrário do que fala a maior parte das crenças sobre possessões e dons divinos, trata-se de uma doença como qualquer outra e de caráter totalmente humano. Este médico infiel que conheci disse ter lido sobre em textos de Hipócrates, onde ele afirma que o uso do divino para explicar a enfermidade trata-se da incapacidade de encontrar outras explicações, sendo apenas desculpas pífias para satisfazerem a si mesmos ao invés de auxiliar o enfermo. – Humberth explicou, fazendo ambos os ouvintes ficarem estupefatos com o paralelo que tais ditos possuíam com a história de Friedrich. Ele realmente havia sido rechaçado por parecer aos outros que era a melhor solução, vendo seu infortúnio como uma maldição e pecado ao invés de olharem racionalmente para seu corpo enfermo. Era revoltante pensar na permanência de tamanha ignorância entre as pessoas, mas também era impressionante pensar que em todos aqueles séculos pouco avanço havia ocorrido para impedir tais sofrimentos vãos. Era como uma venda atada a cabeça do povo os impedindo de enxergar a verdade, onde os que ousavam tirá-la tornavam-se os novos condenados.

— E quanto à cura? Poderiam os antigos a ter desde o princípio? – Loki questionou afoito, fazendo o coração do companheiro se acelerar somente com a possibilidade de uma recuperação. Há muito tempo que Friedrich desistira de se imaginar longe dos temores de suas crises, mas por um mínimo instante sentiu tal esperança pueril retornar como no princípio de seu tormento.

— Dizem que se tens a doença durante a infância, quiçá melhore durante a maturidade. Mas se a possuis quando adulto, muitos a consideram até mesmo incurável. – Humberth respondeu. E apesar de Friedrich manter a compostura, Loki pode notar o vazio tomado pelos seus olhos ao ouvir aquilo, sentindo o coração apertar-se diante da infelicidade do companheiro. – Porém, não sou pessimista a este ponto, creio que se deve haver uma cura para tudo e que só nos resta descobrir, mas quanto a Doença Sagrada ainda é um verdadeiro mistério.

— Quem sabe um dia a humanidade seja capaz de ter a resposta para todas as moléstias, até as incuráveis. – Loki disse da forma mais otimista que pode, mas sem perceber qualquer mudança na expressão de Friedrich.

— Se Deus permitir. – Reese complementou com Humberth persignando o sinal da cruz.

— A tudo Ele provém. – Disse Friedrich quase de forma instintiva, sem grande emoção em sua voz. Ás vezes as expectativas só serviam para serem quebradas, e o alquimista sempre havia sido familiarizado com tal sentimento de derrota.

 

 

 

Durante os dias em que conviveram com Humberth e Reese, descobriram que não apenas eram detentores de grande sabedoria, mas também como o casal de barbeiros também era muito amistoso, de uma forma que Loki e Friedrich já haviam se desacostumado e ficado impressionados com tanta gentileza direcionada a eles.  A fome desapareceu no período que dividiram estrada por conta das boas provisões que possuíam, e Humberth até ofereceu dar um jeito na barba de Loki como agradecimento pela troca de receitas de remédios. Só deixaram que eles partissem quando tiveram a certeza que se tratava de um lugar seguro, e deixaram claro para que os procurasse caso algum dia a dupla fosse parar em Edimburgo.

Quando partiram, um sentimento de júbilo os preencheu ao se verem sortudos de conheceram pessoas tão incríveis, junto a um vazio no peito pela separação que somente evidenciava o quão prazerosa havia sido tal amizade.

Mesmo que no fundo eles se perguntassem de forma soturna, o que o simpático casal pensaria se os visse andando de mãos dadas pela estrada quando ninguém mais estava olhando.

                                              ***

Loki acordou atônito com uma pancada em seu rosto, quase pegando a faca presa ao seu novo cinto, imaginando que estivesse sendo atacado de alguma forma. Mas por sorte, ou terrível azar, era somente Friedrich a debater-se em uma de suas convulsões.

O sono se desfez no momento em que percebeu o que ocorria. Notando a urgência dos grunhidos sôfregos do companheiro Loki esforçou-se para virá-lo de lado enquanto se contorcia, para que ele não se engasgasse com o próprio vômito. Não era capaz de impedi-lo de se debater, mas tentava auxiliar com o pouco que acreditava valer como ajuda durante os ataques.

Não devia ter durado mais que vinte segundos, mas para Loki sempre parecia uma eternidade ter de olhar a agonia de Friedrich. Tinha dúvidas se o parceiro ficava totalmente inconsciente naqueles momentos, ou se possuía a lástima de vivenciar por inteiro as crises. Friedrich não parecia se lembrar de nada quando despertava, mas mesmo assim a dúvida tomava a cabeça de Loki quando via seus olhos se revirarem de aflição naqueles instantes.

Teve de trocar a manta em que se deitavam por conta do vômito no tecido, além da túnica de Friedrich e suas roupas debaixo que ficaram molhadas. A túnica não havia como substituir no momento, mas ao menos pode trocar o calção, enquanto a camisa de linho ainda estava limpa. Não era um momento que se levava o pudor em conta, visto que Loki só almejava deixa-lo confortável quando acordasse. Seu lado de curandeiro praticamente despertava naqueles instantes, trabalhando de maneira metódica para deixar o parceiro da melhor forma possível.

Ao final de tudo, deu um suspiro misto de exaustão e alívio, pondo-se a deitar ao lado do companheiro mais uma vez, acariciando seus cabelos claros por um instante, atento para se Friedrich ficasse hipotermo como acontecia ás vezes, permanecendo vigilante por parte da madrugada sem tirar o olhar cuidadoso de sua face, até que por fim seus olhos pesaram mais que seu corpo, adormecendo num sono leve e prestes a despertar a qualquer sinal de perigo.

Quando recém amanheceu e Friedrich recobrou a consciência, antes mesmo de abrir os olhos ele sentiu o corpo dolorido a ponto de se encolher pela sensação ruim, além de possuir um gosto ácido em sua boca proveniente do fundo de seu esôfago. Já tinha a certeza sobre o que havia se passado, mas ao se encontrar sem a túnica e com as peças de roupa reserva teve a confirmação que havia sido uma convulsão daquelas. Esfregou a palma de uma das mãos contra seu rosto, se sentindo resignado, constrangido e deprimido. Odiava sofrer com aquilo, a maior parte por culpa do estigma que sua doença tanto causava, mas a sensação de impotência que tinha em controlar o próprio corpo era algo difícil de lidar por si só. Ainda mais pela certeza que possuía de nunca se ver livre de tal doença.

— Freddie? – As esmeraldas de Loki despertaram assim que perceberam o mínimo movimento feito por ele, ambos tão próximos que os narizes quase se tocavam. Friedrich nunca contestara tal proximidade desde que decidiram permanecer juntos, mas naquele momento pela primeira vez sentira a ânsia de se afastar não só de Loki como do próprio mundo.  – Está tudo bem?

— Desculpe-me. – Friedrich bufou descontente, virando-se com o torso para cima e passando a encarar somente a copa das árvores naquele dia de outono.

— Pelo que? Sabes que não possuis culpa alguma quanto a isso. – Loki se pôs sentado, observando Friedrich de cima para baixo ao menos uma vez na vida, antes que o companheiro ficasse na mesma posição que ele, os ombros encolhidos e o olhar tomado por uma névoa de apatia com a típica ruga por cima dos olhos que formava quando pensava demais.

— Sei muito bem, mas é injusto contigo que nada tem haver com isso. Não posso ser um fardo. – Respondeu em afirmação a última frase, pois havia sido criado para segurar todas as pontas que a vida lhe lançava, resolver por si só todos os problemas sem que incomodasse qualquer um ao seu redor. Friedrich sempre havia sido quem pegava todas as adversidades para resolver, cuidado de todos que lhe havia pedido ajuda e se responsabilizado por tudo e todos. Ao ver-se do outro lado agora, não conseguia lidar por inteiro o fato de não ser mais capaz de realizar tudo sozinho, sentindo-se fraco e inútil por precisar de ajuda, pois havia sido ensinado a nunca dar trabalho a outros.

— Deixe de bobagem, depois eu que sou o teimoso! Se franzir tanto o rosto uma hora não vai voltar mais de tanto que se preocupa com nada. – Disse-lhe Loki num tom quase ríspido, mas tocando com delicadeza o queixo do outro para que virasse o rosto em sua direção e prestasse atenção no que dizia. – Não me é trabalho algum ajudá-lo quando mais precisa, não apenas por que sei que farias o mesmo comigo, como já me ajudou tantas vezes antes, mas também por toda a estima que sinto por ti que me faz erguer o céu e a terra se preciso. Estamos juntos Friedrich, não importa as adversidades nós sempre as vencemos, pois é a união que nos torna mais fortes.

Friedrich tocou a mão do outro que repousava em seu rosto, com os ombros tornando-se mais relaxados, enquanto a palma do ruivo lhe acariciava o rosto com ternura. Ambos fitavam um ao outro de forma silenciosa, mas de maneira que parecia comunicar muito mais do que grandes palavras.

— Se algum dia acreditei que eras alguma maldição, nunca estive tão errado em minha vida. Tu és minha maior benção. – Disse Friedrich aninhando-se nos braços de Loki que massageava sutilmente suas costas.

— Somos dois homens de sorte então. – Loki depositou um beijo em sua testa antes de se desvencilhar do companheiro, um singelo sorriso lhe tomando o rosto sardento. – Mas pelos deuses Friedrich, eu não mereço acordar antes do sol! Se não voltar a dormir, eu vou.

E deitou-se novamente assim que terminou a fala, deixando o companheiro boquiaberto e acabando por escapar um curto riso pela imprevisibilidade de Loki. Não era tão cedo assim, o sol estava nascendo e este era o horário que ele próprio costumava acordar. Friedrich dificilmente deixava-se levar pela preguiça, mas naquele momento o convite do outro lhe era tentador, e estava exausto de tanto andar e pelo ataque anterior. Não era de quebrar a rotina, seguindo sempre com seus dogmas não importando as circunstâncias, fazendo-o hesitar em se juntar ao druida. Contudo, naquele instante resistiu ao seu perfeccionismo ao menos uma vez, decidindo ouvir por fim os conselhos do outro que o ensinava a levar a vida de forma mais leve. Deitando-se mais uma vez e deixando que Loki o envolvesse nos braços, afundando o rosto em seu peito e se dando a oportunidade de ser acalentado sem culpa. Loki estava consigo, logo não havia mais o que temer.


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Notas finais do capítulo

Acho que não é preciso dizer que a maior parte que foi comentada no capítulo sobre as causas da epilepsia tá bem errado né? Uma coisa que os gregos (mais especificamente Hipócrates) acertaram foi que a causa estava no cérebro, agora o restante da lógica não bate nada com a realidade. Mas para uma época que jogavam o pessoal na fogueira a torto e a direito, era um pensamento melhor do que acreditar ser possessão demoníaca. ¯_(ツ)_/¯
Quanto as guerras comentadas por Humberth, sim, a Inglaterra no período não se contentava com uma guerra com os franceses, tinha que lutar contra a Escócia (Segunda Guerra de Independência Escocesa) e ainda meter o louco na Irlanda ao mesmo tempo (num monte de intriga política que é difícil explicar em uma só nota). Não era atoa que as coisas andavam tão complicadas pro povo no período além de todo problema com a peste.
Como sempre, comentem o que acharam e nos vemos no próximo capítulo! ^-^



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