Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 24
A Canção e o Bibliotecário


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Capítulo novo para vocês. Queria saber para onde foram todos os comentários shuahsua esse lugar anda meio vazio ultimamente, seria legal ler nem que seja apenas um oi. Podem aparecer pessoal, juro que não vai aparecer a Inquisição!
Espero que gostem do capítulo, boa leitura! ^-^



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/754466/chapter/24

 

Último pedaço de pão. Loki o tirou da sacola naquela manhã já sabendo de tal triste realidade, mas ainda assim espiou e procurou por qualquer migalha a mais que encontrasse ali dentro, mas pelo jeito nenhum duende havia aparecido para ajudá-los pela noite. Sem milagre algum para salvá-los, a fome fazia com que o estômago se contorcesse e a saliva se tornava abundante somente com aquele pedaço de trigo seco. O druida encarou o alimento que lhe enchia a mão com o fascínio de uma joia rara, tentado a devorar o que restava, mas também temendo se desfazer tão cedo daquele último frasco de vitalidade.

— Divida ao meio, para termos um pouco á noite ao menos. – Friedrich propôs ao receber a parca metade, sendo palpável a preocupação em seu tom de voz.

— Se dividirmos mais do que isso, não conseguiremos andar por essa manhã.

— Andar para onde? – Friedrich não queria ter soado tão apavorado, mas não conseguiu se conter, com o rosto tomado por medo e angústia pelo amanhã incerto que possuíam. Era como o inverno novamente, só que sem haver ao menos a esperança de uma colheita, e para acabar com as esperanças a tão temida estação em breve retornaria. Eles não tinham mais dinheiro, pois uma parte considerável das economias e provisões que possuíam antes havia sido completamente roubada quando Loki foi atacado. Para piorar ainda mais a situação, desde o acontecido eles temiam tentar exercer o próprio ofício para arranjar dinheiro, dado toda a busca por Loki e a violência que se intensificava nos vilarejos.

O druida abriu a boca para tentar dizer alguma coisa, qualquer palavra de esperança para acalentar nem que uma parcela de todo o medo, mas só chegou o silêncio. Olhava a aflição e pavor nos olhos do companheiro e via-se dividindo os mesmos sentimentos de desolação.

Estavam presos naquela floresta, atados com correntes invisíveis e a mercê da natureza que por vezes também mostrava suas garras de crueldade. Seja pelos corpos sedentos e famintos, ou pela floresta a devorá-los lentamente, os lobos uivando ao fundo.  Loki sentia a mesma frustração de anos atrás quando fora embora do lugar que havia sido sua casa, sentindo a injustiça de seus familiares agora o assombrando da mesma forma. Poderia ser o próximo a ser queimado pelo fogo da justiça dos homens, e consequentemente levaria Friedrich junto. Aqueles pensamentos o apavoravam, mas não conseguia deixar de pensar na fogueira que parecia aguardá-lo em silêncio, o observando como uma praga que não conseguia se livrar.

Porém Loki jamais se rendia facilmente, e ter Friedrich próximo de si o tornava ainda mais convicto em resistir àqueles tempos de amargura, mas também ainda mais apavorado que algo acontecesse a eles. Era uma situação difícil, e por mais que lutasse, temia ser empalado pelas costas a qualquer momento.

— Quiçá se eu mudasse minha aparência.  Cortasse a barba e o cabelo, talvez os pintasse... Sei algumas receitas para mudar a cor dos fios. Não me reconheceriam de tal forma. – Sugeriu de forma contemplativa, tentando pensar em soluções para a situação delicada em que se encontravam. Tanto ele quanto Friedrich tiravam pedacinho por pedacinho do pão de maneira lenta, esperando estender pelo máximo de tempo possível a sensação de ter algo para abocanharem e sentirem o gosto na boca, por mais insosso que fosse o alimento que restava.

— A Inquisição não é inocente de tal forma, em verdade é muito astuta. Obviamente sabem que há muitos ruivos pela Grã-Bretanha, a maior parte de olhos claros e até mesmo de olhos verdes. Provavelmente não tão encantadores como os teus, claro. – Friedrich disse soltando um sorriso provocante em direção a Loki que se sentiu corar com o cortejo inesperado, mas rindo-se de toda forma com a forma que o outro encontrou de tornar aquele assunto mais palatável, afinal, adorava ser lisonjeado de toda forma. – Não irão queimar cada homem ruivo com traços hibérnicos somente por tua procura, os inquisidores estão mais atentos quanto aos atos. Sua aparência apenas corrobora para que tenham a certeza de terem pego o homem certo, mas se bem conheço o julgamento do Santo Ofício, estarão a espera para tu colocares em prática tuas ‘’feitiçarias’’ e ‘’blasfêmias’’.

— Ser proibido de praticar meu ofício é ainda mais doloroso á mim do que me livrar da barba e esconder as madeixas. – Loki se lamuriou, apoiando o rosto numa das mãos em desânimo. – O conhecimento dado á mim por minha sábia mãe e herdado de nossa família é o que me faz sentir que possuo algum propósito real para com esse mundo. Se não for druida, o que mais hei de ser além de um vagabundo qualquer a perambular pela terra?

— Oh Loki, sabes que és admirável não só como druida mas como pessoa. Não digas tais coisas, logo tu que tanto se orgulhas de si. – Friedrich sentou-se ao lado de Loki que estava recostado em uma pedra repleta de musgo, com o verde fazendo cócegas contra a palma das mãos que se apoiavam na pedra. – Não obstante, compreendo o que quis dizer, foi o que senti quando me foi proibido de ser copista. Mas se for à vontade de Deus, acredito que encontraremos uma forma de continuarmos nosso trabalho. Já passamos por tanta coisa afinal, deve haver um futuro reservado a nós.

Friedrich acariciou os cabelos cor do fogo, pois lhe era um verdadeiro vício sentir os fios macios, onde havia adquirido desde o momento em que vira Loki a primeira vez, antes mesmo de descobrir amá-lo, as mechas pareciam sempre chamá-lo em silêncio. Loki apenas se deleitava nesses momentos ao sentir os dedos do outro a lhe acariciarem a cabeça, apreciando tais demonstrações simples de afeto vindo do outro. Pois mesmo após serem sinceros sobre seus sentimentos, Friedrich parecia contido com gestos mais intensos. Loki não contestava, compreendia que a relação deles era uma grande novidade ao outro, por isso simplesmente valorizava tais momentos por mais singelos que fossem, pois sabia que aos poucos o companheiro adquiriria confiança como um gato de rua assustado.

— Bem, não tenho tanta certeza. Não parece existir lugar no mundo para nós... – Loki disse num tom desanimado, os olhos fechados tanto pelo cansaço quanto pela sensação aprazível das carícias do amado.

— Ao menos não na Grã-Bretanha.

Friedrich não estava realmente exprimindo mais que um mero devaneio, a ideia pairou no ar por alguns segundos e os fazendo analisá-la sem grandes pretensões a princípio. De repente ambos se encararam de forma atônita, indagando um ao outro com as expressões surpresas se um estava pensando a mesma coisa que o outro, e se aquela poderia ser realmente a resposta dos seus problemas.

— Acreditas que vale a pena arriscarmos outro lugar? – Loki questionou abismado, com as esmeraldas faiscando de possibilidades.

— Não sei dizer, mas certamente dificultaria em muito tua procura. Contudo, temo outras adversidades que um novo território oferece...

— Já esteve em outro país, aposto que deves saber contorná-las.

— Estava sob tutela da Coroa, em meio a um acampamento militar e de um campo de batalha. Não estive em outra nação, apenas no meio do caos. – Friedrich respondeu num tom amargurado com as lembranças que sempre evitava relembrar. Loki suspirou frustrado.

— Má ideia então? – Indagou e Friedrich o observou de soslaio, permanecendo pensativo por alguns segundos.

— Não... Acho que não. – Respondeu com um tanto de incerteza na fala, escolhendo com cuidado as palavras em sua mente. – Acredito que é uma proposta a ser pensada com cautela, mas ainda assim continua sendo uma possibilidade.

— Mesmo que não tenhamos um único tostão no bolso. – Loki disse bufando e rindo-se da própria desgraça, sentindo o estômago ainda reclamar mesmo após a última refeição que tiveram.

— Ou uma forma de nos comunicar com estrangeiros.

— Tu falas latim e francês, já és algo de útil.

— E quanto a ti? – Friedrich indagou de forma retórica, não esperando ter como resposta o típico sorriso sacana de Loki, aquele que lhe fazia arrepiar-se a pele ao saber que o outro aprontava ou escondia algo de intrigante. Mesmo quase um ano juntos ainda era pego de surpresa pelo jeito exótico e místico do outro que por vezes era visto como loucura e bruxaria, mas para Friedrich tratava-se de sua porção mais marcante.

Ai vist lo lop, lo rainard, la lèbre— Loki cantarolou de maneira petulante, aproximando-se lentamente de Friedrich como um felino a encurralar sua presa, mostrando todos os dentes e os olhos a brilharem de forma mítica feito chamas esverdeadas. – Ai vist lo lop, lo rainard dançar

— Que linguagem é esta? – Friedrich indagou estupefato com a nova surpresa do outro, sendo capaz de pescar o significado de algumas palavras por conta da semelhança com o francês que já lhe era conhecido.

‘’ Eu vi o lobo, a raposa, e a lebre

E vi o lobo e a raposa dançar ‘’ Ele decifrou encantado pelos versos e curioso com tamanha surpresa vinda do druida.

— Bem, te lembras quando falei sobre já ter andado com menestréis francos? Foi uma parceria deveras produtiva eu diria. Eles precisavam aprender melhor o inglês, enquanto eu queria aprender novas cantigas. – Respondeu cheio de si, com os braços posicionados um de cada lado do corpo do outro como se o encurralasse, deixando Friedrich acanhado com tal proximidade, mas sem conseguir desviar o olhar daqueles olhos admiráveis.

— Mas a canção não é francesa, eles deveriam ser da região Occitania provavelmente. – Friedrich comentou intrigado, querendo saber mais sobre tal conhecimento oculto do outro, mas tentado a também prosseguir com o cortejo e alimentar ainda mais o olhar insinuante do outro. – Como é o resto da música? Nunca ouvi tal dialeto antes.

Não foi preciso pedir duas vezes, Loki sorriu ainda mais com o pedido, continuando a cantarolar.

Totei tres fasián lo torn de l'aubre
            Ai vist lo lop, lo rainard, la lèbre
            Totei tres fasián lo torn de l'aubre
            Fasián lo torn dau boisson folhat.

 

Friedrich gostava de cantar, mas a rotina regrada do mosteiro havia o tornado retraído com a própria voz, só o fazendo sozinho e algumas poucas vezes acompanhado por Loki, visto que se via sempre acanhado demais em erguer o próprio tom. Quanto ao druida, era só sentir que o ambiente estava silencioso demais ao seu gosto para que começasse a cantarolar qualquer coisa que viesse em sua cabeça no momento, mesmo não tendo nenhuma voz de menestrel ou tido qualquer tipo de aula de canto. Cantava simplesmente por que gostava, pois o distraía das adversidades e o fazia se sentir ainda mais vivo. Loki era um verdadeiro espírito livre, tal como a natureza mágica que depositava sua fé, e tal despojamento da parte dele era até invejado por Friedrich de certa forma, não a inveja pecaminosa que deseja o mal ao outrem, mas por admirá-lo e aspirar poder ter tamanha segurança em si mesmo. Mesmo em singelos momentos como aqueles em que ele cantava sobre animais a correrem ao redor das árvores.

Aquí trimam tota l'annada
            Per se ganhar quauquei sòus
            Rèn que dins una mesada

A esse ponto Friedrich já estava absorto com o andamento da música, curioso com a similaridade da língua dos francos, mas intrigado com suas diferenças, onde ele preenchia as lacunas das palavras desconhecidas ao raciocinar um pouco sobre o funcionamento das línguas românticas. Poderia estar orgulhoso de si por desvendar tal enigma, mas estava mais impressionado com tamanha sagacidade do companheiro. Realmente não era tão inacreditável pensar em Loki aprender um idioma em poucas semanas, visto que observara sua facilidade com o aprendizado quando o ensinara sobre as letras. Por vezes se perguntava que tipo de homem Loki poderia ter sido se tivessem lhe dado às ferramentas certas do conhecimento, com sua esperteza provavelmente teria sido um grande homem, mas que Friedrich já admirava de toda forma sendo ele letrado ou leigo.

‘’Aqui trabalhamos o ano inteiro

Para se ganhar poucos soldos

E em menos de um mês’’

 

          – Nossa fotèm tot i pel cuol.  — Friedrich se sobressaltou ao ouvir de maneira inesperada tal palavreado chulo, que conseguiu compreender mesmo naquela língua distinta. Loki riu de sua reação, afinal não havia esperado que ele fosse compreender tão bem o que cantava, mas pelo jeito isso tornava o momento ainda mais cômico.

— Rude! Bárbaro! – O antigo clérigo ralhou atônito, se distanciando consideravelmente de Loki que havia acabado com o momento que quase tiveram, rindo sem sentir culpa alguma. – Não poderia esperar menos vindo de você!

Loki terminou o último verso aos gracejos, pondo a mão na cabeça tentando conter parte do riso causado pela expressão desgostosa e chocada do companheiro.

— Oras, não fique tão surpreso! Sei que não é inocente e que sabes bem haver cantigas muito mais grotescas por aí. – Apontou com um olhar divertido, o rosto enrubescendo pelo riso que tentava conter para não parecer exagerado.

— Disso sei muito bem, mas poderias manter tal repertório longe quando estiver entrelaçado comigo.  – Friedrich cruzou os braços, aborrecido, com o rosto rubro onde não se sabia se pela ira ou pelo constrangimento, desviando o olhar do de Loki que insistiu se manter próximo por pura petulância de gostar de tirar o outro do sério.

— Rude ou não, tens de concordar que combina muito com nossa situação. – Disse fazendo Friedrich o olhar com desdém pelo canto dos olhos enquanto ainda se fazia com mágoa. – Não temos dinheiro, por isso estamos fodidos.

Friedrich revirou os olhos, mas não conseguiu conter por muito tempo um riso de imaturidade junto á Loki que lhe encarava com aquele olhar de vigarista que sempre roubava seu senso crítico.

— Apenas tu para me fazer rir diante de uma crise dessas. – Friedrich não contestou mais a aproximação do outro, onde inclusive depositou um beijo no rosto de Loki e lhe segurou a mão como se para redimir parte do momento perdido antes. Loki sorriu-se agora contente, aninhando-se ainda mais no corpo do companheiro, sentindo o estômago agitar-se por um motivo além da fome.

— É só o que nos resta a fazer além dos lamentos. – Comentou, tendo a audácia de envolver a cintura do parceiro fazendo seus corpos se chocarem ainda mais. Friedrich sentiu o peito se acelerar e o ar se esvair ao ter o rosto de Loki tão próximo do seu, soltando um arquejo quando para sua surpresa sentiu os lábios do outro a explorarem seu pescoço e fazendo o corpo inteiro se arrepiar com a boca do ruivo se deliciando a lhe sugar a pele macia. Mal Loki afastou os lábios de sua pele, se pôs a lhe tomar os lábios num beijo apaixonado em que só havia espaço para o desejo e afeto entre eles, conseguindo deixarem de lado nem que por um instante toda a adversidade que os assombrava. As mãos procuravam por algo a que se agarrar, apertando os braços, segurando o tecido das túnicas em suas costas, os fios de cabelos ou simplesmente contornando com cuidado a linha do rosto, tudo conforme exploravam com suas línguas o gosto um do outro, cessando brevemente apenas quando Loki voltava a explorar a pele alva de Friedrich fazendo cócegas com o roçar da barba por toda a extensão de seu pescoço e ouvindo com prazer seus ofegos.

Mesmo que houvesse estranhado a princípio aqueles toques, Friedrich passara a apreciá-los cada vez mais conforme se familiarizava com a presença do corpo do outro, se vendo completamente caído pelo encanto de Loki e cada uma das suas surpresas, soltando-se aos poucos do medo da luxúria que antes possuía e devolvendo com cada vez mais ardor cada um daqueles gestos.

Arfando, interromperam o enlace pelo cansaço que tanto os dominava pela fome e caminhada, assim como por Friedrich ainda possuir certos limites com a intimidade e que Loki sabia muito bem pelos seus modos retesados e constrangidos. Dessa forma, permaneceram somente abraçados e acariciando os braços e o rosto um do outro, sorrindo solenemente com o breve momento de candura, permanecendo juntos e em silêncio, pensando no que fariam e sobre o mundo que os cercava.

‘’Eu vi o lobo, a raposa e a lebre’’ Friedrich refletiu ao ter os versos dançando em sua mente agora, buscando um significado em meio aos simbolismos sempre escondidos naquelas canções da moda, enquanto focava seu olhar nas esmeraldas que tanto o enfeitiçava.

‘’Eu vi a nobreza, o clero e a plebe

Eu vi a nobreza e o clero dançar. ‘’

Continuou a matutar por alguns instantes sua constatação, absorvendo a mensagem da cantiga e a difícil situação em que se encontravam, sentindo pela arte a dor que possuíam em vida.

‘’ A lebre nunca está a salvo. ’’ Concluiu em seus devaneios, sem tirar os olhos do rosto marcante de Loki e todo o cansaço que ele tentava esconder com seu sorriso de vigarista. ‘’Nós não estamos a salvo. ’’

                                                           ***                                 

A Ordem Beneditina sempre deixara claro que todos os irmãos deveriam dar-se bem entre si de forma igual, onde nem mesmo o Abade poderia criar favoritismos ou fazer de si próprio muito acima dos outros monges. Esta era a regra, todavia, na realidade Adrian nos seus vinte anos de mosteiro só conhecera dois frades a darem-se bem com todos: Bernard Cordeiro Manso e Alf o Altruísta de Winchester, mas os dois estavam mortos. Daria para se dizer que Friedrich de Farley também sempre havia sido uma figura amigável, mas também sempre causou suspeita por parte de muitos monges por conta de seus estudos estranhos, e de qualquer maneira, provavelmente também estava no mesmo lugar que os outros dois.

Quanto a ele, estava muito longe de ser um exemplo de simpatia, não sendo atoa sua famosa alcunha de ranzinza. Em verdade a maior parte dos irmãos já sabia que era melhor passar longe de sua pessoa, igual um corcel arisco a ser deixado nas últimas baias como um aviso de cuidado, ou era o que Adrian gostava de pensar sobre si. Nunca se dera bem nem com os irmãos de sangue sempre a disputarem pelas terras do pai, - dava graças à vida beata por se ver longe deles e de tais intrigais fúteis -, não conseguia conter o revirar de olhos frente a maior parte dos padres da região, que para ele não passavam de glutões com sede de poder, até mesmo entre os próprios irmãos de hábito se enojava ao observar o vício em costumes mundanos por baixo de seus votos sagrados.

Aedan com certeza fazia parte da corja que ele não suportava. Adrian já havia tentado denunciar suas profanidades diversas vezes, mas o maldito era ardiloso que só, e ainda por cima parecia se divertir com tudo aquilo! Entretanto, Bernard havia dito uma vez que nem todo mundo era feito inteiramente de mal, e quando Adrian desdenhara de sua fala – afinal toda pessoa era nascida em pecado – o mesmo afirmara dizendo ‘’É só olhar para si. ‘’, calando-o por um instante (e coisa rara era fazer Adrian ficar sem respostas). Quiçá agora pudesse dizer o mesmo de Aedan, mesmo que seus modos não o agradasse, visto que o próprio havia lhe provado ser muito mais que o completo herege com batina que imaginava.

A primeira vez que Aedan lhe deixou sem palavras foi cerca de quatro anos atrás, após a volta da visita á Londres, quando Adrian se via tomado por tanta culpa e desconsolação que poderia ter afligido todo o corpo até não sentir mais a própria pele por penitência. Contudo naquele tempo ainda não se feria por compulsão, e com certa racionalidade decidiu confessar-se a algum dos irmãos para aliviar tamanho peso de seus ombros e receber o perdão divino. Entretanto estava tão envergonhado com o que tinha a dizer, que não conseguiria confessar-se com Bernard ou qualquer outro frade que geralmente o ouvia. Por maior que fosse a rixa entre ele e Aedan, sabia que era o único que não se sentiria inteiramente repugnado por seus atos, visto o histórico nada sacro do outro frade.

Quase todo o mosteiro sabia que havia se encantado em demasia por uma fiel em Londres, com Adrian sabendo muito bem sobre o que os frades discutiam quando falavam aos sussurros e apontando em sua direção. Afinal, tratava-se dele, Adrian o Ranzinza de Bartonshire, aquele que sempre parecia intocado pelas malícias mundanas e um de seus maiores combatentes. Era uma verdadeira desgraça ver-se nas graças de todos quando já precisava lidar com os próprios problemas, mas ao menos ninguém sabia de toda a verdade. Esta que só teve a coragem de admitir á Aedan por mais distantes que fossem um do outro.

Quando foi ter com ele em sua cela, o frade pândego apesar de já imaginar o motivo da visita, ficara levemente surpreso ao ser escolhido por Adrian para ouvir suas confissões, mas ouvira tudo com cuidado e calma.

‘’Não há nada de errado em amar, sabes bem disso irmão. Muito provável que viesse a sentir isso alguma vez um dia, há quem ame diversas vezes durante a vida, até mesmo para nós celibatários. O pecado ocorre somente quando há luxúria e malícia, mas quanto ao sentimento em si não há nada de pecaminoso. ‘’ Aedan lhe dissera, por mais que não fosse nenhum exemplo de boa conduta com o voto de pureza, sua palavra era dirigida ao confessor e não para si, por isso ainda valia de certa forma.

‘’ Nos encontramos algumas vezes... E mesmo que jamais me cedi por completo, ainda me sinto profano com o que fizemos. ‘’ Adrian havia admitido aos murmúrios e enrubescendo, sentindo as palavras estremecerem nos lábios. ‘’E Emily não é uma fiel como pensam... És prostituta. ‘’

Aedan não mudou a expressão pacífica mesmo com sua confissão, confirmando o motivo para Adrian ter feito a escolha de dizer á ele seus segredos ao invés de qualquer um dos outros frades. Ele poderia estar longe de ser um exemplo de clérigo, mas isso lhe dava uma certa vantagem para tais casos.

‘’ E de que importa quem ela seja? Apenas ela tens de saber o que fazer com o próprio pecado. Quanto ao que sentes, afirmo o que já lhe disse antes. Quanto ao que fizeram, se não foi consumado maior lascívia e se não repetir tal erro, não há de que se flagelar. E isso lhe digo de forma literal Adrian, apenas peça perdão ao Senhor e reze uma roda a mais de terço durante a Quaresma, é toda penitência que precisa. ‘’ Foi o que Aedan havia lhe dito de maneira firme, fazendo-o se sentir menos imundo com seus atos. E mesmo que após as rezas e de sair da cela do outro ambos retornassem com a eterna intriga entre eles, Adrian pode enfim compreender a antiga fala de Bernard.

Aedan sempre fora fiel á sua maneira. Era leal aos seus amigos, a suas palavras e ideais, por isso mesmo com toda a rivalidade entre ambos, ele não foi capaz de espalhar seus segredos aos outros. Podia ter muitos defeitos, mas Adrian admitia que a empatia de Aedan era algo a ser admirado. Sabia o quanto ele se culpava por não ter ajudado mais Friedrich quando o próprio enfrentava os domínios demoníacos em seu corpo, do olhar de pesar e repleto de lamúrias que estampou seu rosto quando lhe fora entregue os antigos documentos do frade fugitivo. Quiçá Adrian tivesse pensado algumas vezes sobre palavras de alento a dizer a ele, mas nunca o disse antes.

E agora jamais poderia.

Havia recebido a notícia da morte de Aedan quando estava auxiliando os fâmulos na limpeza das estátuas de santos; em primeiro momento não havia se impressionado, visto que o miniaturista também havia contraído a peste que já havia levado quase vinte irmãos. Se questionava como ele próprio também não contraiu a doença, e de certa forma por vezes sentia-se decepcionado por Deus não ter finalmente o livrado daquele mundo ao invés de se sentir grato como a maioria dos sadios. Podia não apreciar tais pensamentos mórbidos que tinha vez ou outra, mas os sentia de toda forma como uma eterna nuvem cinzenta a pairar sob sua cabeça.

Contudo, chegando ao scriptorium — não por curiosidade mórbida como a do montante de frades ao redor do morto, mas por ser no mesmo recinto da biblioteca que trabalhava –, pareceu que a realidade desceu como um gosto amargo em seu corpo, ficando perturbado pela imagem do cadáver do irmão.

O pincel ainda estava entre seus dedos mesmo com a mão desfalecida, o corpo caído na mesa de trabalho de forma que de longe parecesse que somente havia pegado no sono enquanto desenhava. Porém, ao olhar para sua face pálida e com as veias escurecidas, junto aos olhos abertos e sem vida, um arrepio apavorante passava pela coluna de quem visse; o cheiro de doença pairava ao redor, e da boca entreaberta do morto saía um filete de sangue a manchar os pergaminhos da qual trabalhava. Aedan não deveria estar ali, e sim com os outros doentes no hospital do mosteiro; mas de alguma forma havia saído escondido pela noite, pegou os antigos pergaminhos de irmão Friedrich e se pôs a terminar a porção do trabalho que era sua. Usou suas últimas forças para completar as iluminuras a adornarem a caligrafia magnífica do frade desaparecido, dando o suspiro da morte no último trabalho que dividiria com o amigo e também realizaria em vida.

Mesmo quando retiraram Aedan do scriptorium para velá-lo, Adrian continuou por muitos dias a ver a mesma miragem de seu corpo encurvado na mesa de copista e de seu sangue manchando os papéis que prometeu terminar pelo amigo perdido.

Como bibliotecário Adrian ficou com a responsabilidade de guardar os documentos em que o falecido trabalhava. E temeroso em pegar o material com o veneno da peste calçou as luvas de inverno para levar as páginas até as estantes, sentindo o papel e pergaminho parecendo muito mais pesados do que realmente eram, onde quiçá fosse pelo peso da história que os dera vida. Mas antes de tudo, movido por grande curiosidade, resolveu dar uma espiada no que aqueles escritos tinham a dizer.

Tratava-se de páginas desconexas, sem relação entre elas. Algumas eram uma cópia incompleta do Evangelho de Lucas, outras sendo anotações sobre medicina, algumas de pensamentos filosóficos e discursos teológicos. Mas as que mais lhe deixou intrigado eram as com linguagem espelhada ou misturadas entre inglês, francês e latim, descrevendo eventos que não faziam grande sentido como receitas fora de ordem, menção as divindades pagãs dos gregos antigos como ingredientes, descrições sem sentido de criaturas inexistentes, fórmulas matemáticas sem resultados finais, desenhos geométricos esboçados por todos os lados. Em um primeiro momento Adrian questionou se não fazia parte de sandices de Friedrich, mas ao raciocinar um pouco se deu conta que aquelas páginas eram enigmas que levavam para todas as pesquisas alquímicas que ele havia deixado para trás, numa linguagem que apenas ele compreenderia na hora da leitura.

Material demoníaco Adrian pensou, com toda certeza, onde provavelmente era o que havia causado os ataques de possessão do antigo frade. O certo a se fazer era queimar cada uma daquelas páginas e apagar o fogo com água benta para enfim purificar todo o mal que aquelas palavras haviam causado. Adrian certamente faria isso, pois não deixaria quaisquer artimanhas do Inferno no mesmo teto em que morava.

‘’Foi um julgamento injusto, até mesmo tu sabes disso. ‘’ As palavras de Aedan lhe sussurraram o ouvido feito um fantasma, enquanto percorria os corredores da biblioteca com os profanos pergaminhos na mão, com a intenção de levá-los ao lado de fora e queimar até as cinzas como seu autor deveria ter sido. No meio do caminho parou subitamente, refletindo enquanto sentia sentimentos de culpa e dúvida que tentava suprimir em suas orações, segurando os escritos com as mãos estremecendo por baixo das luvas.

Mal acreditando no que ele próprio estava fazendo, continuou a andar, mas dessa vez cada vez mais dentro da biblioteca ao invés de fora dela.

Acabou chamando por seu ajudante – um rapazote tolo que havia escolhido por saber o grego, mas por vezes se arrependia por ter pego alguém tão estúpido –, pedindo por capas de couro e que procurasse algum lugar entre as estantes que não houvessem traças. Depois, enrolou os documentos com cuidado, guardando-os numa estante de maneira quase escondida, bem no fundo e entre diversos outros livros pesados, mas num lugar em que os ratos e as traças não eram capazes de destruir as palavras.

Pois aqueles escritos pareciam fazer parte de um ciclo além de sua compreensão. E Adrian não possuía a audácia para quebra-lo, muito menos de trair a confiança do falecido Aedan.

Que Deus o tenha.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

''Ai vist lo lop, lo rainard, la lébre '' é uma canção bem famosa do repertório medieval mesmo sendo de uma língua pouco conhecida, um dialeto francês chamado ocitânio. Há indícios que fora criada no próprio século quatorze em que se passa a história, e com o passar dos anos ganhou suas versões em francês, inglês e alemão, mas todas elas acabaram suavizando nos últimos trechos (por que será? sauhaus). Sua fama se dá por conter grande parte dos elementos presentes em cantigas populares medievais, aquelas mais cantadas pelo povo do que pelos salões nobres: fábula, simbolismos, crítica aos poderes e palavreado grotesco. A interpretação sobre o que seriam o lobo, a raposa e a lebre é diversa. Alguns dizem ser a nobreza, o clero e o exército; enquanto outros dizem se tratar da nobreza, o clero e a plebe que foi a utilizada para a história. De toda forma, é uma canção antiga que reflete muito bem o período em que foi criado, e quem tiver o interesse de pesquisar para escutar tem um ritmo bem difícil de sair da cabeça depois.
Scriptorium trata-se do local nos mosteiros onde se faziam as cópias e criações dos livros.



Estou muito feliz de anunciar que Ode aos desafortunados conseguiu o terceiro lugar da categoria LGBT do concurso Descobrindo Escritores lá do Wattpad! Agradeço a todos vocês leitores que acompanham a história, esse prêmio é para todos nós!

Ode também está participando de um concurso por votos no facebook feita pelo site da Caneta Tinteiro, para quem quiser ajudar é só curtir a imagem da história:
https://www.facebook.com/grupocanetatinteiro/photos/a.977138602676934/977162469341214/?type=3&theater

E como sempre, se gostaram deixem um comentário! Até a próxima ^-^



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Ode aos desafortunados" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.