O Sangue do Mestiço escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 28
O despertar


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura :)



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O peso de seus passos não era maior que da sua consciência. Patwin nunca sentira um desconforto tão grande em sua vida. Teria tomado a decisão certa? Tal pergunta ficava dando voltas em torno de sua cabeça, mas nenhuma resposta fazia questão de surgir. Na linha do horizonte, o mestiço encarava o mar e o céu que aos poucos era invadido pelos primeiros raios de sol. Apesar da madrugada estar encontrando o seu fim, pouca luz adentrava seus pensamentos.

— Ele fará o trabalho sozinho — o jornalista deixou escapar enquanto encarava seus próprios pés.

Havia parado de caminhar enquanto se perdia naquela reflexão. Deixar Edward Muller vivo foi algo correto? Ter hesitado mais uma vez, como de costume, poderia custar muito caro no futuro. E se o homem enlouquecesse – o que não seria surpresa alguma – e resolvesse atacar a igreja? “Não, isso não vai acontecer”, uma voz na cabeça do mestiço assegurou. Aquilo realmente parecia ser improvável. O velho estava emocionalmente despedaçado após aquela descoberta. Como alguém poderia imaginar que o seu braço direito assassinara sua filha de maneira tão brutal? “Muralha não era uma pessoa, mas o verdadeiro demônio daqui”, Pat pensou com raiva. A queda do gigante certamente evitaria a morte de outras pessoas na ilha. “Só queria ter sido eu a puxar o gatilho”.

Finalmente voltando a caminhar, ele tentou a todo custo se livrar daqueles pensamentos. Mas não havia escapatória: ao levantar seu rosto, pôde ver os olhares assustados que se escondiam através das frestas de janelas e portas. Pat olhou para sua mão esquerda e viu ainda segurava o revólver. “Pensam que sou um assassino ou um herói?”, questionou como se pudesse ser ouvido. Guardou a arma e logo voltou a sentir seu rosto inteiro latejar em intensa dor. “Ou então acreditam que fui torturado como todos os que tentam enfrentar Edward Muller”.

Tentando ignorar toda aquela curiosidade que transbordava dos residentes da ilha e a dor que insistia em se manter presente, o jornalista finalmente pôde vislumbrar a tão familiar porta de madeira da igreja. Abrindo-a com delicadeza, logo foi recebido de uma maneira menos amistosa do que desejava.

— Você é louco? Acha que eu não sei? Acha que eu não ouvi? A vila inteira ouviu, Patwin Winslow — era David que falava. O garoto estava sentado no banco mais próximo da porta. Com os braços cruzados e a testa franzida, ele deixava clara toda a sua insatisfação. — Como pôde ter a coragem de sair assim no meio da madrugada? E céus, olhe só para o seu rosto: completamente machucado. Fico surpreso por ainda estar vivo. O que você tem na cabeça, hein?

Pat ensaiou dar uma risada, mas se conteve. Ele não achava aquela situação engraçada e nem desprezível, estava simplesmente feliz por ter encontrado um rosto amigo após momentos tão intensos de pura escuridão. Adentrando o templo de Deus e fechando a porta, começou a falar:

— Isso não é nada — foi em direção do pequeno jornalista e lhe deu um tenro abraço. — Está feito, David. Está feito! Nós somos livres!

— O quê? — O garoto desvencilhou-se do abraço de seu amigo ao mesmo tempo em que buscava compreender aquilo. — Livres? Livres de quê?

— Edward Muller. Ele está acabado — lágrimas começaram percorrer o rosto machucado do mestiço. Ele mal podia acreditar que estava dizendo aquelas palavras.

E então um profundo silêncio tomou conta da igreja. Patwin olhou para todos os lados procurando encontrar as figuras do padre e de Selvagem, mas não obteve sucesso. Vendo o rosto cheio de surpresa e descrença de seu amigo, perguntou:

— Onde estão todos? E por que você não me diz nada? — O jornalista sentia a necessidade de algum tipo de validação. As dúvidas ainda permeavam a sua mente, mas o apoio de um bom amigo já propiciaria um grande alívio.

David, por outro lado, tentava processar aquela densa carga de informações. Elas não eram numerosas, mas traziam um peso capaz de alterar tudo na ilha de Roanoke. “Edward Muller acabado?”, o pequeno jornalista refletia com lentidão. “Isso é mesmo possível?”, a incredulidade prosperava em seus pensamentos. E então viu a arma que Patwin carregava.

— Você... — o garoto teve que pausar sua fala para pensar melhor nas palavras seguintes. Começava a ser invadido pelo nervosismo, mas após uma profunda respiração, prosseguiu. — Você matou Edward Muller?

Patwin desfez o sorriso. Aquela era a pergunta que ele menos queria ouvir. Ela fazia com que voltasse a se questionar se deveria realmente ter colocado uma bala na cabeça de seu algoz. “Ele era um demônio. Ele merecia”, uma voz em sua cabeça sussurrou.

— Não — o mestiço respondeu em um tom inseguro e sofrido. — Eu não o matei. Mas ele não irá fazer mais nada.

Aquela resposta não ajudara o pequeno jornalista a sanar a sua dúvida. Pelo contrário, apenas fizera que ela crescesse. Aquilo simplesmente não tinha muito sentido.

— Como assim? — David questionou com preocupação. Sua voz agora não passava de um sussurro. Ele sabia: Patwin não era mais o mesmo. No entanto, o jornalista continuava sendo seu grande amigo. — Conte-me tudo, Patwin. Não deixe nada passar, por favor.

O jornalista cultivou mais um pouco de silêncio, mas logo criou a coragem para falar. A verdade deveria ser sempre dita, pois ele já vira que a mentira era capaz de provocar grandes tragédias.

— Você lembra do dia em que a Margaret descobriu a verdade sobre o Richard? Sobre o assassinato dele? — Pat observou David acenar positivamente com a cabeça. — Ela veio até mim e me entregou a arma. Não só isso, também recebi uma chave da porta dos fundos da mansão. E ela me pediu claramente para matar Edward e Muralha.

— Ela pediu? — O pequeno jornalista parecia não querer acreditar naquilo. — Ela lhe disse as palavras? Pediu mesmo?

— Ela foi bem clara, David — o homem respondeu em um tom sombrio. — Eu pensei que fosse loucura. Mas ela tinha suas razões. Na verdade, quem não tem? Pense, meu amigo: aquele homem e sua trupe me prenderam, torturaram. Depois massacraram a tribo secotan. Eu vi pessoas sendo feitas em pedaços, David. Inclusive mulheres e crianças! Como um ser humano pode fazer e comandar algo assim? Você não acha que algo deveria ser feito?

“Sim, deveria”, as palavras visitaram o garoto. Ainda assim, ele sentia uma espécie de conflito dentro de si. Sim, tinha visto e ouvido todos os horrores que Edward tinha causado. Era sabido que o homem era um verdadeiro demônio e que definitivamente ele deveria ser parado. Mas matá-lo? Isso não seria se rebaixar ao mesmo nível? Ou seria válido? “Talvez essa fosse a única maneira de garantir a sobrevivência de pessoas inocentes”, refletiu antes de dar uma resposta.

— Ele definitivamente precisava ser parado, Patwin — disse com uma certa insegurança. — Só quero que todo esse ciclo de sangue acabe, entende?

— Eu também, David. Acredite — Pat respondeu com firmeza. Aos poucos ia recuperando a compostura e a serenidade que o acompanhavam rotineiramente. — Seja como for, escute o que tenho a dizer. Acordei há algumas horas e algo dentro de mim dizia que eu deveria fazer isso. Sim, sei que pode parecer não ter muito sentido, mas aqueles monstros deveriam ser parados. Não havia tempo a perder. Então levantei-me, peguei a arma e a chave e parti rumo ao inferno.

— Que bom que voltou — o pequeno jornalista tentou ser sarcástico, mas a sua voz entregava a insegurança com toda aquela história.

Ao mesmo tempo, Patwin percebeu uma movimentação no compartimento secreto da igreja.

— Então ali estão eles — disse e pôde ver David confirmando a informação com um gesto. — O que Marcus faz ali?

— Rezando — o garoto respondeu. — Quer que aquele lugar e todos aqueles livros sirvam para algo, afinal. Todos queremos. Mas vamos, continue com o que estava dizendo.

— Certo — o mestiço prosseguiu. — Quando cheguei na mansão, entrei em combate com aquele gigante. Ele me acertou várias vezes e, obviamente, acabei apagando. Acordei tempos depois atado a cadeira.

Se a incredulidade de David já era visível da porta da igreja, agora era capaz de moradores do continente enxergarem a expressão contorcida do menino.

— Espera um pouco — tentava organizar seus pensamentos. — Eu ouvi um tiro e você me disse que tinha “resolvido” a coisa toda. Como que pode? Como você escapou dessa?

— Bem, aparentemente Edward Muller achou algo que Muralha escondia. Uma joia, entende? Uma joia que pertencia a sua esposa e que sua filha passou a usar. Acontece que o demônio pressionou o gigante até ele contar toda a verdade. E você não vai acreditar — Patwin já podia observar o rosto de surpresa quase vulgar do pequeno jornalista. Aquele era o tipo de história que nem mesmo alguém perspicaz como ele havia pensado. — Muralha matou Jessica Muller. Não só isso, também profanou o corpo dela daquela maneira horrenda que eu vi e todos falam.

Erguendo a mão direita, David pediu por um momento de silêncio. Precisava, definitivamente, digerir aquelas informações. Como que algo daquele tipo pudera passar despercebido por tanto tempo? “O homem tinha um caráter tão degenerado que ninguém – nem mesmo eu – pensou no óbvio”, refletiu.

— Agora me explica uma coisa — disse pausadamente. — Por que ele fez isso? Além de toda a loucura e possessão demoníaca que ele deve ter sofrido, claro.

— Lembra das histórias de que a Jessica tinha um caso com um nativo? O Adaky? Então, Muralha quis chantagear a garota. Ela reagiu e, segundo o monstro, ele a matou acidentalmente.

Abismado com aquilo, David acidentalmente soltou um impropério em plena casa de Deus. A expressão saiu com intensidade o suficiente para chegar aos ouvidos do padre, que prontamente saiu do compartimento acompanhado da Selvagem. A cadelinha estava com o rosto levemente amassado em decorrência das últimas horas de sono.

— Patwin? — Marcus disse com uma certa surpresa, ainda mais pelo rosto severamente machucado do mestiço. — Meu Deus do céu.

Sem perder tempo, o pequeno jornalista fez o trabalho de recapitular toda a história para o padre, enquanto Pat apenas acenava com a cabeça confirmando cada nova informação que era revelada pelo garoto.

— E foi aí que ele parou — David havia chegado no ponto final de seu conhecimento da história. — O que houve depois, Pat? O que Muller fez?

— Ele acertou um tiro na cabeça de Muralha — o jornalista revelou. O rosto do padre se encheu com um misto de pesar e alívio com aquela notícia. Não era certo comemorar a morte de alguém, mas certamente a vida de muitos estariam protegidas com aquilo.

— E depois? — A curiosidade do garoto era inesgotável.

— Ele me libertou das amarras e me entregou a arma. Pediu para que eu acabasse logo com tudo aquilo. Ele queria morrer.

O padre fez o sinal da cruz ao ouvir aquilo, ao mesmo tempo em que um sentimento contraditório fluía por David. Há poucos momentos ele temia que seu amigo tivesse assassinado alguém. Mas agora, tudo que pensava era que não havia outra escolha. Por que correr o risco de deixar aquele demônio vivo? No entanto, preferiu manter o silêncio e continuou a ouvir o seu amigo.

— Mas eu não fiz nada. Não, eu não o matei. — Patwin falou de maneira sombria. Ele encarava o vazio e relembrava a situação. Era doloroso, mas após todo sofrimento podia sentir um amargo alívio. — Deixei-o ali. Eu sinto que não fará mais nada contra nós. Eu sei!

Um longo silêncio logo tomou conta do lugar. Padre Marcus encarava Selvagem como se a cadelinha fosse lhe dar alguma resposta. Ao mesmo tempo, David se via num dilema moral e desejava enormemente acreditar que aquela fora a melhor decisão.

— Seja como for, está feito — o mestiço não suportava o silêncio. Aquilo o matava por dentro. — Não há mais volta.

— E o que você fará agora? — O homem de Deus questionou o jornalista.

Então, finalmente, aquele a desejar silêncio foi o mestiço. Havia passado por tantas coisas que nenhuma resposta parecia certa. Não era mais o mesmo Patwin Winslow de antes e a cada dia essa mudança parecia mais visível. Não havia como fugir de si mesmo.

— Eu não sei — começou de maneira grave. As palavras iam surgindo organicamente. — Eu não sou quem eu pensava ser. Afinal de contas, não sou um nativo de verdade. No fundo, não me pareço em nada com eles, ainda que eu tenha tido bons momentos. Mas também não sou mais um homem da cidade. Não, definitivamente não! Depois de tudo o que passei, como poderia encarar uma vida ordinária novamente? Eu estou simplesmente perdido.

Em lágrimas, Patwin tinha descoberto que, afinal, não havia alívio para ele naquela história. Ou ao menos seus olhos não o enxergavam com clareza.

— Mas o David está bem e isso é o mais importante — o jornalista continuou e demonstrou todo o seu senso de responsabilidade. — Irei levá-lo de volta a Nova York. E depois? Eu não faço a mínima ideia.

Retomando sua insatisfação inicial, o garoto levantou-se do banco e, com inquietude, rebateu as ideias de seu amigo.

— De forma alguma! — Sua voz saiu de maneira forte, parecendo ter vindo de um homem mais velho. — Ainda há algo por aí, Patwin. Você sabe o que é! O tal do deus protetor, eu sei que ele está por aí.

— David, nós já... — o mestiço fora rapidamente interrompido pelo pequeno jornalista.

— Minha vez de falar! Eu sei que você é estupidamente cético, certo? Presta muita atenção para o “estupidamente”, porque essa é a verdade. Depois de tudo que passamos, de tudo que fizemos, você ainda duvida de algo? Essa ilha não faz nenhum sentido, Patwin!

— Eles estão mortos, David! — Pat falou grosseiramente. Podia sentir o ódio invadir sua alma só de lembrar daquela informação. — Se algum nativo sobreviveu, ele não pode fazer nada, garoto. Não temos porque temer nenhum deus protetor. E mesmo que existisse algum, esse seria mais um motivo para deixar este inferno para trás!

Observando aquele embate de ideias, Marcus soube que era melhor fazer silêncio e deixar que os dois amigos se resolvessem. Ele recuou com discrição e levou Selvagem consigo.

— E abandonar todas essas pessoas? Patwin, você sabe que isso não é certo — a cada segundo, David parecia mais convicto. Dessa vez, não havia contradição que invadisse seus pensamentos. — E outra coisa: você sobreviveu. Você levou um tiro, meu Deus! E sobreviveu, repito dez mil vezes se for preciso. Muitos outros podem ter escapado. Eles podem estar por aí invocando algum deus ou demônio para se vingar. E as histórias contam que esse tipo de coisa não costuma terminar bem. E quer saber? Eu não acho que ter descoberto tudo isso foi por acaso. Nós temos uma missão aqui, Patwin! O que seu pai gostaria que você fizesse?

Extremamente irritado em ouvir tudo aquilo, Pat também se ergueu e, com o dedo em riste, disse:

— Não fale do meu pai! — Com os dentes cerrados e um olhar cheio de raiva, concluiu. — Eu sou o responsável por você aqui e digo que iremos embora desta ilha amanhã! Esteja pronto.

Dito isso, retirou-se da igreja ignorando as possíveis respostas que seu amigo estivesse dando. Com passos pesados e sem raciocinar direito, logo partiu para o bar atrás de qualquer coisa que pudesse afogar seus pensamentos. Aquele, definitivamente, não era um bom dia. Mas, como tudo em Roanoke, a situação sempre podia piorar.

Longe do mundo que se autoproclamava “civilizado”, a hora mais sombria já havia chegado. Toda a preparação envolvendo o deus protetor fugia de qualquer simplicidade. O fato de Adaky ter encontrado a escuridão não queria dizer que a divindade estava pronta para fazer o seu serviço. Ainda na caverna obscura, ela passou dias sendo regada com sangue de diferentes animais e outras ervas da ilha. Macawi tinha dúvidas se não estava faltando algo diante de todo aquele longo ritual, no entanto, Mahpee assegurou-o que tudo corria como previsto.

— Ele estará do nosso lado — disse com confiança. — Eu posso sentir.

Do lado de fora da caverna de ossos, as estrelas já tomavam conta do céu e a lua brilhava como prata ardente. Observando tal imagem, Macawi pôde respirar um pouco enquanto rezava para que tudo aquilo valesse a pena. Cada estrela, cada som, nada fugia da percepção do nativo. Aquilo sim era estar vivo. No entanto, podia parecer irônico o fato dele estar cooperando na criação de um ser que respirava morte.

— Refletindo, irmão? — Mahpee aproximou-se sorrateiramente. Dentro da caverna, apenas os outros dois índios tomavam conta dos últimos preparativos para o deus protetor. — Não se assuste com a demora: ela já era prevista. No entanto, hoje o nosso deus há de se levantar.

— O tempo não é um problema, Mahpee — o outro respondeu com serenidade. — Ainda assim, devo admitir que planto minhas dúvidas. Sei que dias atrás eu mesmo apoiei que usássemos o deus protetor a nosso favor. Mas algo dentro de mim diz que talvez não seja a melhor decisão.

— São as tentações, Macawi — o guerreiro veterano disse com firmeza, mas sem perder a gentileza. — Elas nos enfraquecem, nos fazem esquecer quem somos e o que perdemos. Um povo sem memória é um povo sem vida. Você se lembra quem verdadeiramente é?

— A cada dia, a cada piscar de olhos — Macawi agora olhava com ainda mais profundidade para o céu. — Que a Mãe e todos os deuses nos ajudem.

— Eles estão aqui para isso — Mahpee assegurou e logo se virou para a caverna.

Adentrando mais uma vez a escuridão perversa, o nativo de grande força de vontade viu que o ritual havia chegado ao seu fim. No escuro, a sombra de grande estatura e longos braços era uma presença amedrontadora. Um dos índios que auxiliava em todo o processo logo entregou uma espécie de turíbulo a Mahpee. O objeto estava cheio de ervas que queimavam vagarosamente, liberando uma fumaça acinzentada de cheiro ligeiramente doce.

— Deus protetor, aquele de fome insaciável. Estou aqui para lhe oferecer a sangrenta oferenda — o nativo disse com grande coragem e confiança. — Serei o seu guia e, dessa maneira, a justiça será feita pelo povo secotan.

Saindo lentamente da caverna, Mahpee foi acompanhado daquele ser. Finalmente do lado de fora, a luz do céu brilhante revelou com mais detalhes as feições do chamado “deus protetor”. Com a pele acinzentada, braços longos e ossos distorcidos, era impossível reconhecer que aquilo já fora um dia o tão jovem Adaky. Os seus dentes eram inúmeros e afiados, além de saltarem da boca como uma centena de adagas. Suas narinas extremamente dilatadas, sentindo o cheiro do sangue independente da direção que ele tomasse, enquanto os olhos avermelhados revelavam uma faceta demoníaca daquele ser tão profano. Suas orelhas estavam claramente danificadas, e grandes cicatrizes percorriam seu rosto e corpo. Sentindo o forte odor das ervas, o deus protetor respirava lentamente e parecia aguardar alguma espécie de comando.

— Você conseguiu! — Abismado com aquela imagem, Macawi foi ao chão enquanto agradecia aos deuses por aquilo. — Obrigado, deus protetor!

Mahpee não disse uma só palavra. Apenas observava com grande encantamento aquela obra divina. Com cerca de dois metros de altura, aquilo definitivamente não era algo do mundo dos homens. O nativo encheu-se de júbilo e orgulho, pois se via como um verdadeiro herói do povo. “Eu trouxe o verdadeiro nome da justiça até nós”, pensou.

— Agora falta o último passo — disse em voz alta. — Está na hora do demônio de Roanoke provar da fúria secotan.

— Que assim seja — Macawi respondeu em concordância. — Vá, mas não se descuide, meu amigo.

E, despedindo-se, Mahpee deixou seus irmãos para trás e, carregando aquela nuvem de fumaça, trouxe consigo o deus protetor.

A natureza parecia se curvar diante daquela força divina em forma de monstro. Animal algum ousava cruzar o seu caminho, além de que até os galhos das árvores pareciam preferir se inclinar para o lado oposto da divindade. Àquela altura, o único som verdadeiramente audível era dos estranhos grunhidos que o deus protetor emitia. Não era humano, mas também não se assemelhava a nenhum outro animal. Qualquer outra pessoa diria ser algo puramente demoníaco.

Seguindo a frente, Mahpee conduzia aquela força da natureza com a ajuda das tantas ervas que queimavam. O nativo já havia se acostumado com aquele cheiro e não sofria efeito algum daquilo. Enquanto caminhava, ia entoando seus velhos cantos e orações, como qualquer bom secotan faria. Em sua cabeça, ele enxergava aquela longa caminhada como um verdadeiro presente dos deuses: ser o encarregado de mostrar o caminho ao campeão divino era algo que poucos experimentaram durante toda a história. “Que hoje seja marcado um novo capítulo na história do nosso povo”, pensou.

Apesar das horas de caminhada, o índio pouco sentiu cansaço. O deus, de maneira semelhante, era simplesmente incansável Apenas seguia em um estado de transe persistente, ainda que tal estado não diminuísse em nada sua tão aparente força.

— Ali — Mahpee deixou escapar.

O homem lembrava-se bem da conversa que tivera com Patwin, o mestiço. O mais jovem havia falado da vila brevemente, mas o suficiente para que o índio entendesse como o lugar funcionava. E ali, no meio da madrugada, foi impossível não perceber a mansão de Edward Muller. Sim, o principal responsável pela chacina de tão pouco tempo atrás. “Finalmente”, Mahpee pensou de maneira vitoriosa.

A vila estava sendo ocupada apenas pelo vazio e pelo silêncio. Seguindo a estrada principal sem medo de ser visto, o nativo conduziu o deus protetor da mesma maneira que um súdito conduz o seu rei. Observando todas aquelas construções de madeira, ele logo lembrou-se de que a tribo havia se tornado cinzas. Lembrava-se também das armas de fogo utilizadas pelos seus algozes, além da completa covardia de terem atacado após o cair da noite.

— Deus, hoje é o dia da justiça — falou com convicção. — Roanoke acordará encharcada do sangue do monstro que assola esta ilha!

Como se pudesse entender aquelas palavras, o protetor soltou um grunhido carregado de ódio. E, finalmente, Mahpee se viu diante da grande porta de madeira da mansão. Estava, finalmente, diante da casa do demônio que trouxe o inferno até o seu povo. Retirando mais um conjunto de ervas de sua pequena bolsa de couro, olhou mais uma vez para o deus atrás de si.

— Que se faça presente a ira dos deuses! — E então jogou as ervas sobre o fogo, liberando uma fumaça avermelhada.

O cheiro não era apenas forte, como também transmitia uma sensação quase incômoda de calor intenso. Com os olhos encharcados de lágrimas e quase sem aguentar aquele odor, Mahpee ordenou:

— Vai!

Respirando aquele ar avermelhado, o deus protetor sentiu qual deveria ser a sua missão. Com a fúria tomando conta de seu corpo, mais transformações foram visíveis, como um aumento ligeiro de sua estatura e uma distorção ainda mais agonizante de seus ossos. Com os afiados dentes a mostra, a fera logo tratou destruir a porta de entrada da mansão, causando um barulho gigantesco. Sabendo que a sua parte estava feita, o índio afastou-se do local.

Em seu quarto, Edward Muller acordou de sobressalto após ouvir o barulho de sua porta sendo rompida. O homem estava passando por tempos difíceis após a descoberta sobre o assassinato da sua filha. Ponderara sobre o suicídio diversas vezes, mas nunca tivera a coragem de seguir em frente com a ideia. Agora, ainda deitado em sua cama, podia ouvir pesados passos em uma intensidade crescente. Ele não sabia o que era, e aquilo tornava todo o momento ainda mais assustador.

Esticando-se com dificuldade, o homem mais poderoso de Roanoke pegou aquele colar que pertencera a sua esposa e posteriormente a sua filha. Ele podia sentir: a morte estava próxima. Segurando o colar em uma mão e um revólver em outra, torcia para poder rever os amores da sua vida. Com a mão esquerda, logo direcionou a arma para sua cabeça. Respirou fundo e pôde ouvir as passadas se aproximarem perigosamente. O deus protetor podia sentir o cheiro do medo, o som do desespero e a visão da morte.

No entanto, com o revólver na cabeça, Edward fraquejou. “Eu não mereço”, pensou enquanto permitia que lágrimas encharcassem seu rosto. “Não mereço morrer sem sofrer, não depois do que fiz”. Sim, ele sabia. A onda de morte que assolara a ilha era responsabilidade dele. E nisso estava inclusa a morte de sua própria filha. “Eu a matei”, pensou por último ao ver a porta de seu quarto se partir em pedaços.

Da escuridão, a criatura cinzenta mostrava o seu rosto sofrido. Ainda que tivesse todo tipo de crença no misterioso abalada, Muller gritou com puro pavor:

— Satã?!

E, avançando com velocidade sobre-humana, a criatura logo se viu diante do velho medroso. Erguendo o revólver, Edward atirou diversas vezes contra aquele monstro. O resultado? As balas causaram, de fato, ferimentos e fizeram aquele ser profano urrar de dor. Ainda assim, o homem pôde ver com seus próprios olhos os ferimentos rapidamente se fecharem. Livre da dor, o deus protetor usou sua grande e pesada mão esquerda para erguer seu inimigo. Após isso, algo estranho se sucedeu. Como se um pedaço da alma do jovem índio ainda pudesse falar, a criatura disse com grande dificuldade:

— Adaky!

E, estranhando aquilo, a única coisa que o demônio de Roanoke conseguiu fazer foi manter sua mão segurando firmemente o colar que pertencera as mulheres da sua vida. Sem qualquer tipo de compaixão, o deus protetor fez crescer afiadas garras em sua mão direita, numa ação puramente instintiva. Após isso, logo tratou de rasgar a barriga de Edward Muller, permitindo assim que sangue e vísceras se espalhassem pelo chão da mansão enquanto o homem gritava desesperadamente. Mas o sofrimento não durou muito: ele logo estava morto e devorado. Com exceção do sangue espalhado e de pequenos pedaços de órgãos, o deus protetor não deixara sobrar nem mesmo os ossos.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por ter lido mais esse capítulo! Nos vemos em breve ;)



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