O Sangue do Mestiço escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 11
De encontro com as raízes


Notas iniciais do capítulo

Um capítulo grandinho, mas que eu realmente amei escrever.

Espero que gostem :)

Boa leitura!



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A tribo vivia um momento de paz e comoção. O corpo sem vida de Wohali recebia a atenção de todos enquanto Mahpee conduzia o ritual fúnebre. Homens, mulheres e crianças respeitavam o momento com o silêncio, ao mesmo tempo em que acompanhavam tudo atentamente. Mahpee soltava bençãos e palavras de esperança ao falecido.

— O seu espírito se juntará a Mãe — disse enquanto erguia a mão direita.

Com os dedos cheios de tinta de cor vermelho-sangue, ele logo começou a pintar o rosto do falecido lentamente. Enquanto vivos, a cor mais comum nas pinturas corporais dos membros da tribo era o azul. Mas na morte, o vermelho também tinha o seu significado: era a cor que representava a vida em um outro estágio.

— Wohali caminhará pelos campos e florestas juntos aos animais e nossos antepassados. Estará sempre vivo — dizia Mahpee com firmeza.

Ele tinha fé em cada uma de suas palavras, e isso acabava transmitindo paz e confiança a cada um dos ouvintes. Ninguém ousava cochichar, desviar a atenção ou mesmo sair dali. O foco total estava na passagem de vida e morte do bondoso índio.

— As penas — Mahpee pegou uma espécie de colar decorado com penas de variadas aves e cores. — Elas são como uma prece da própria natureza que dá boas vindas ao nosso irmão.

Pondo o colar em volta do pescoço de Wohali, Mahpee pôde relembrar ainda mais cada um dos rituais fúnebres que já conduzira. Ele era o responsável pela maioria dos ritos na tribo, então nada daquilo lhe era estranho. Entretanto, a maioria dos eventos homenageava mortos pela idade ou por acidentes da natureza, nunca assassinato. E isso ainda infestava o coração do homem de ódio. Mas ele sabia: deveria seguir a tradição.

— Vamos agora pedir... — começou, mas parou logo em seguida para derramar lágrimas. — Vamos pedir que a Mãe natureza possa receber de braços abertos mais um filho dela.

Se antes já pareciam unidos, a tribo agora aparentava ter se tornado um único ser. Como um imã, estavam atraídos pelo mesmo pensamento, desejo e estado espiritual. Estavam sintonizados. Mahpee prosseguiu:

— Mãe, que o sol nasça em uma nova manhã para Wohali. Que o calor atinja o seu espírito, que a luz ilumine os seus novos passos e mostre o caminho. Que o ar o encha de vida e o coloque em movimento eterno. Que a lua o mantenha esperançoso na escuridão, sabendo que sempre pode contar com uma luz. E que nossos antepassados possam recebê-lo de braços abertos, como um filho que reencontra sua família. Que ele possa ser um bom filho, Mãe.

Silêncio. Todos se concentravam para absorver cada palavra daquela oração. Mahpee mantinha seus olhos fechados enquanto lembrava de todos seus momentos com Wohali. Pobre homem! Não merecia aquele destino violento.

— Queria ter estado lá para ajudá-lo — Mahpee ouviu a voz de algum índio.

O primeiro impulso do homem seria apoiar aquela manifestação, mas a consciência logo bateu a porta e ele viu que não seria adequado em decorrência do contexto.

— Tudo tem o seu tempo, garoto — disse, apesar de estar borbulhando por dentro. — Agora lamentamos e pedimos bênçãos por nosso irmão. A justiça pode esperar.

Sim, a justiça encontraria sua hora. Ele tinha certeza que em breve teria os autores daquele terrível crime em suas mãos, e poderia esmagar cada um deles. O sangue dos assassinos encharcaria o solo fértil de Roanoke e assim a justiça floresceria. Entretanto, perdido em tais pensamentos, Mahpee não percebeu que estava há longos segundos sem dizer uma palavra sequer, apenas olhando fixamente para o nada, onde unicamente seus pensamentos podiam enxergar.

— É hora de levar nosso irmão para seu lugar de descanso — ordenou dando prosseguimento ao ritual.

Dois fortes índios levantaram o corpo de Wohali, que se encontrava deitado em uma tábua de madeira e palha. O seu corpo não estava só pintado e cheio de penas, mas também trajava um belo conjunto de peles de animais, além de estar ao lado de seu velho cachimbo e seu inseparável arco. A afiada ponta de sua lança também iria junto, como de costume.

Mahpee guiou o caminho do grupo ao lado de uma anciã que queimava um conjunto de ervas, exalando um cheiro doce e agradável, que também entorpecia levemente os sentidos, trazendo uma sensação de dissociação da própria realidade. É como se pudessem se conectar ainda mais com a natureza e a sua linguagem. A caminhada seguiu com apenas o canto dos pássaros a romper o silêncio, até que finalmente chegaram no objetivo: uma frondosa árvore que superava em altura todas ao redor.

— Tão grande e forte como o espírito de Wohali — comentou a anciã.

Outros dois índios foram a frente e montaram uma estrutura de madeira que consistia em um apoio. A plataforma com o corpo foi então colocada sobre o apoio, que logo foi levantado, elevando Wohali a uma altura de cerca de dois metros e meio. Era a tradição: o índio ficaria ali por um ano, trocando energia com a natureza, tendo o tempo para seu espírito se dissociar do corpo. Só depois poderia ser finalmente enterrado.

— Essa árvore existe desde seu nascimento. Acompanhou seu crescimento como ninguém. Foi ela que recebeu suas primeiras flechas durante seu treinamento quando garoto. Aqui ele poderá descansar, não tenho dúvidas — Mahpee começou a chorar.

Wohali foi uma das pessoas mais próximas que o índio teve. Esteve ao seu lado durante incontáveis rituais, treinaram juntos, brigaram outras incalculáveis vezes. Era verdadeiramente como um irmão. Vendo a tristeza do homem, alguns indígenas se aproximaram para abraçá-lo, algo que ele aceitou, apesar de não ser o tipo de pessoa mais adepta desse tipo de contato. Aos poucos, a tribo começou a retornar para a vila, afinal de contas, o ritual estava completo. Só restou ele, Mahpee, junto a seu amigo.

— Eu deveria ter feito algo. Deveria ter ido junto, ou ao menos impedido você. Que ideia estúpida! Falar com os brancos — desdenhou. — Eu deveria ter sido mais esperto. Não só eu, mas você também! O que esperava? Flores, abraços e belas palavras? Você tinha fé demais, Wohali. E isso foi o seu maior erro.

Mais uma vez, Mahpee se via chorando intensamente. Não era do seu feitio, mas os tempos eram obscuros para a tribo.

— Desculpa. Eu não deveria maldizer os mortos — respirou fundo. — Mas o que devo fazer? Mostre-me um sinal!

Ele só encarava o corpo ali nas alturas. As folhas balançando com a brisa, a estrutura de madeira resistindo, o frio começando a se fazer presente e os pássaros parando de cantar. Uma pesada nuvem cobriu o sol e Mahpee viu refletida no ambiente a escuridão da sua alma. “Só um sinal”, ele suplicava mentalmente. E então, com o vento cada vez mais veloz, a plataforma no qual se fazia presente o corpo de Wohali balançou violentamente, deixando cair no chão um de seus objetos. Foi algo rápido que fez Mahpee se afastar assustado. Entretanto, quando se aproximou, viu do que se tratava: enterrada no solo, a ponta de lança jazia feroz. “Sim, um sinal”, o índio agradecia ao universo.

Seu desejo por guerra distorcia a sua fé, de maneira que aquilo, em sua mente, tornou-se um claro sinal de sua missão de vida: ser a lança que defende a tribo, a lança que mata, a lança que molha o solo com o sangue das ameaças do mundo. Os deuses estavam, afinal, alinhados com seus pensamentos e desejos mais profundos. Não seria nenhum pecado buscar a vingança, a justiça em nome de tantos índios caídos ao longo da história. “Justiça?”, uma voz na cabeça de Mahpee questionava, mas ele logo tratou de enterrá-la sob seus anseios por guerra. “É o único jeito de salvar a nossa tribo”, ele acreditou com todas as forças.

Enquanto caminhava lentamente de volta para a vila, o índio pensava em cada palavra que usaria nos minutos seguintes. Com a ponta da lança de Wohali em mãos, ele tinha um destino a cumprir. Mas quais as palavras certas? Como convencer a todos da importância da união contra um inimigo tão forte como os homens brancos? Não havia nada de novidade naquilo: os secotan e outras tribos já haviam sido massacrados por brancos há séculos. Em Roanoke mesmo algo do gênero já havia ocorrido. Isso poderia ser um revés para o discurso de Mahpee. “Não, não. Essa será nossa força!”, refletiu. Sim. O que poderia dar mais motivação do que um sentimento de revanche? Algo que transcendesse a barreira do pessoal, mas invadisse toda uma questão histórica. Algo que matasse o “eu”, a responsabilidade de cada indivíduo para substituir tudo isso por um pensamento puramente coletivista. Sim, Mahpee conseguia enxergar muito bem o que falaria. E ele finalmente estava próximo da imensidão de índios.

— Irmãos, peço mais uma vez a atenção de todos — declarou em voz alta. — Wohali agora descansa, mas nós ainda estamos despertos. Mais que isso: os assassinos do nosso amado irmão também estão bem acordados. E isso significa que não podemos fechar nossos olhos por nenhum minuto sequer. Não podemos piscar, largar as armas e muito menos descansar.

A cada palavra, mais e mais nativos apareciam para ouvir e compreender o que Mahpee queria passar. Prosseguiu:

— Os nossos inimigos estão por aí. Eles provavelmente não sabem como nos achar, mas isso é só questão de tempo. Devemos achá-los primeiro, caçá-los primeiro, buscar a justiça com nossas próprias mãos. Ou vocês acham que eles irão parar? Que os homens brancos vão largar seus hábitos de conquista e destruição? Por favor, não sejamos tolos! — O homem olhava nos olhos de cada nativo próximo, quase como se ele pudesse se conectar com suas almas. — Eles não irão parar. É só questão de tempo para matarem nossos irmãos, comerem nossa caça, estuprarem nossas mulheres, roubarem nossas crianças e tomarem ainda mais as nossas terras. Esse não é um medo infundado: há um histórico. Devo lembrá-los?

Um misto de medo e curiosidade pairava pelos corações e mentes que tão atentamente ouviam aquela inflamada proclamação.

— Vamos lá — começou após respirar fundo. — Há séculos esta terra era inteiramente nossa. Até que os brancos chegaram em suas grandes embarcações, roupas graciosas e peças douradas. Eles foram tomando o nosso espaço, mas até então sempre ganhávamos algo em troca. Até que um dia isso mudou. Um índio foi injustamente acusado de ter roubado uma caneca de prata dos brancos. A punição? Eles queimaram completamente a vila indígena. Sim, meus caros, nós pisamos nas cinzas daquilo que foi construído por nossos antepassados.

Mahpee deu uma pausa. Viu que todos estavam aos poucos absorvendo suas palavras. Mais que isso: eles absorviam suas emoções. A raiva, a revolta, o medo. Quais as chances de tudo aquilo de repetir? Tendo em vista que haviam acabado de realizar o ritual fúnebre de um irmão de tribo, a repetição dos acontecimentos parecia preocupantemente provável. Nenhuma voz era levantada contra o que era dito. O homem prosseguiu:

— Essa história era passada de geração em geração, mas parece que se perdeu para alguns. Esquecemos nossas feridas e por causa disso elas voltam a sangrar. E como sangram! Mas isso vai mudar — ele começou a sorrir. — Devemos lembrar que isso também mudou no passado. Os que vieram antes de nós conseguiram sua justiça contra os brancos. E nós também conseguiremos!

Em uníssono, a tribo gritou em apoio.

— Mas vocês sabem como? — Mahpee questionou. — O deus-protetor foi invocado. Dessa forma, os malditos algozes foram completamente subjugados. E essa é a chave, a nossa proteção, para subjugá-los novamente. A história não erra. Infelizmente o deus-protetor foi banido há muito tempo. Não é mais permitido que o invoquemos. Mas eu quero que isso mude, e acredito que vocês também querem. Que deus é esse que aceita que o seu povo viva com medo? Querem saber a verdade? Acho que temos medo mesmo é da liberdade. Pois é isso que o deus-protetor pode nos dar. Basta confiarmos nele uma vez mais. Isso eu garanto.

Dessa vez não houve gritos de guerra ou apoio em massa. O silêncio indicou toda a mistura de sentimentos e incertezas. A questão do deus-protetor era algo que nem todos entendiam, ou até mesmo nada sabiam. Mas Mahpee sabia que era questão de tempo para todas essas dúvidas serem esclarecidas. Infelizmente para ele, não seria algo imediato.

A única coisa imediata foi a surpresa. Eles voltaram! Adaky, Eyanosa e Macawi adentravam lentamente a área que circundava a tribo. Eram apenas silhuetas a distância, mas era fácil presumir suas identidades graças aos adornos e a cor da pele. Mas havia algo de estranho, Mahpee podia perceber: havia um branco entre eles! E mais alguém também! Esse outro estava sendo carregado, aparentemente ferido. Era difícil dizer quem era, mas certamente não era um índio da tribo.

— Venham! — Mahpee sinalizou para dois índios guerreiros o acompanharem.

Armados com desconfiança e afiadas lanças, o grupo se aproximou rapidamente daqueles que penetravam seu território.

— Pai! — Eyanosa gritou assim que vislumbrou Mahpee.

Sem nem pensar duas vezes, a moça correu para presenteá-lo com um forte abraço. O homem sentiu tremenda felicidade ao ver sua filha sã e salva, mas ainda estava tenso com os visitantes inesperados.

— O que é isso minha filha? — Disse pondo-a de lado e segurando sua lança com força. — Quem são esses que lhe acompanham?

Adaky e Makawi andavam mais lentamente enquanto carregavam Patwin, mas nem por causa disso Richard os ultrapassou. O artista sentia-se completamente perdido naquele lugar. Nada de bares, casas e igrejas. Só conseguia ver pequenas estruturas de madeira e palha, pessoas com pouca roupa e muita vegetação. A própria sonoridade do lugar era diferente, com o vento serpenteando de forma assustadora por árvores e cabanas. Olhou para trás na esperança de enxergar uma maneira fácil de retornar para casa, mas logo lembrou do monstro Edward Muller que o aguardava por lá. “Que sorte tem Patwin! Desacordado, sem ver toda essa confusão”, pensou o garoto.

— São aliados — Eyanosa explicou para o pai. — Estavam sofrendo nas mesmas mãos que o Adaky sofria. Certamente não são inimigos.

Ouvir o relato de sua filha fez com que Mahpee relaxasse a mão que segurava com tanta tensão a lança. Ainda não estava confiante, mas certamente não haveria um ataque naquele dia. “Todo cuidado é pouco”, ainda pensou.

— Adaky, meu querido — disse quando estava finalmente próximo ao garoto. — Como você está?

— Bem — respondeu com a voz cansada de tanto carregar o mestiço. — Não fui bem tratado por lá, mas ao menos estou vivo. Ainda não acredito no que fizeram com o Wohali.

Estando em casa, o jovem índio finalmente se viu disposto para sofrer. Não estava mais inerte, sem saber como se comportar. Lágrimas desceram dos seus olhos, mas elas saíram para que um certo alívio pudesse adentrar seu espírito. Estava finalmente com seus irmãos de alma e sangue. Ali estaria seguro, ou ao menos acreditava nisso.

Mahpee esticou o pescoço para verificar aquele homem que era carregado. Patwin estava com o ferimento a flecha presente, mas estabilizado. Os olhos fechados e a respiração lenta mostravam que o mestiço não tinha consciência nenhuma ainda de onde estava e nem com quem. O índio o achou esquisito.

— Quem é esse? — Questionou com certo desprezo. — Tem olhos e pele como os nossos, mas se veste como os deles.

— Um mestiço, Mahpee — Macawi finalmente falou. — Adaky pôde nos contar no caminho parte de sua história. Seu pai tinha sangue nativo, sangue forte.

— Tenhamos cuidado. A aparência pode ser como a nossa, mas as ideias podem ser como a dos outros.

Macawi achou aquele apontamento estúpido, mas simplesmente seguiu o caminho para poder tratar o mestiço. Atrás deles, Richard estava sem ação. O artista estava de frente para aquele homem cor-de-canela, olhos puxados, com penas enfeitando a cabeça e uma extensa pintura azul ao longo do corpo. Como se comportar? Ele nem sabia como agir entre os brancos, quanto mais entre aqueles aparentemente selvagens. O fato dele não entender absolutamente nada do dialeto secotan também era um empecilho enorme.

— Olá — disse com timidez, torcendo para que ao menos isso Mahpee compreendesse.

O índio veterano ficou encarando-o sem dizer uma só palavra. Tinha dificuldades em aceitar aquele tipo de pessoa em suas terras. O garoto era o puro estereótipo: branco, com roupas que cobriam todo o corpo, mãos lisas e sem cicatrizes e um comportamento estúpido. Como respeitar alguém desse jeito? Mahpee estava pronto para mandá-lo para fora, até que sua filha interviu:

— Richard é o nome dele, pai — tentou manter a voz calma, apesar de perceber claramente a tensão nos olhos do pai. — Ele não nos entende, mas também não fez nada de mal.

Mahpee sorriu com desprezo e disse para a filha, ainda em dialeto secotan:

— Fique de olho nele.

Eyanosa assentiu e seu pai finalmente retornou para o interior da vila. A moça gesticulou com a mão para que Richard a seguisse, algo que ele fez sem pestanejar. Sabia que não estava em posição de discutir ou negociar. “Como um balão em meio a porcos-espinhos”, refletiu enquanto caminhava.

Adaky e Macawi andavam com o corpo de Patwin passando pela multidão que habitava a tribo. As reações eram diversas: uns davam largos sorrisos e comemoravam pela chegada dos dois índios, ao mesmo tempo em que outros arregalavam os olhos para não perder nenhum detalhe daquele estranho visitante desacordado. O mestiço era alguém extremamente familiar e simultaneamente estranho. Um sentimento contraditório que permeou dezenas de mentes naquele dia.

— Curanderia — Macawi disse ao entrar em uma larga cabana junto a Adaky e posicionar o mestiço no chão. — Sangramento intenso já amenizado, mas ainda precisando de curativos e ervas.

A curandeira era uma mulher gorda e com os olhos praticamente fechados. Qualquer um diria que a velha estava dormindo sem fazer nada, mas a verdade é que sua mente era deveras acelerada. Não ligando para a estranheza do homem deitado a sua frente, logo tratou de misturar diferentes ervas e a proferir algumas orações. Um odor azedo começou a se espalhar pela cabana, e a dupla de salvadores logo se retirou, pois sabiam que Patwin estava em boas mãos.

Enquanto isso, a população ali presente teve mais um motivo para espanto e curiosidade: Eyanosa conduzia um homem branco, também conhecido como Richard. Os olhos das crianças eram os mais atentos, afinal de contas, algumas nunca haviam visto qualquer humano com tal coloração e vestimentas. Mas também existia um fator extra: o discurso afiado de Mahpee fizera com que alguns olhares zangados fossem atraídos. Sim, o garoto era a imagem do horror e do medo que ameaçava a tribo. E ele conseguia sentir toda essa raiva.

— Eu me sinto como um bicho num zoológico — o artista segredou a Eyanosa. — Você está ao menos me entendendo?

O inglês da moça não era o dos mais avançados, mas o tom das palavras de Richard deixava claro o seu descontentamento e estranheza.

— Não sou americana. Não como vocês, brancos — ela se expressava com alguma dificuldade. — Mas saiba que seu amigo ficará bem.

“Amigo? Ela não sabe de nada”, Richard pensou. Estava completamente perdido e sem opção alguma. Como iria aguentar passar qualquer tempo que fosse ali? E quanto tempo seria? Alguns dias? Semanas? Não, definitivamente não. Ele não estava nem há dez minutos e já queria voltar para casa. Voltar para o seu quarto, seus quadros, sua mãe, sua comida. Sim, comida. O que comeria ali? Gente? Animais mal cozidos? Qual tecnologia usariam? A comida não estragaria? Quanto mais questionava, mais se desesperava. “Calma, Richard. Calma!”, tentava dizer para si mesmo.

— Fique calmo — disse Eyanosa como se pudesse ler sua mente. — Você terá uma cabana.

Com uma paciência que ela mesma desconhecia, a moça segurou o braço do artista e o conduziu até uma pequena cabana.

— Descanse. Vai melhorar — ela deu um sorriso forçado antes de se afastar, deixando-o sentado sobre uma porção relativamente macia de peles de animais e palha.

Alguns metros distante, Adaky abraçava e falava com alguns companheiros de tribo até ser interrompido por Mahpee.

— Adaky, fico realmente feliz por te ver bem — disse em tom áspero. — Ainda que não esteja totalmente.

O mais velho observava os ferimentos presentes no rosto do jovem após aquele terrível interrogatório com Edward Muller e Muralha.

— Fico feliz em voltar — respondeu com alívio. — Não deveria ter ido. Wohali ainda estaria bem.

O tom lamentoso de Adaky foi interrompido por uma risada sínica de Mahpee.

— Sabe, lembro-me de você há uns meses — começou o mais velho. — Quando essa história com a menina branca começou. Você lembra? Eu te alertei. Falei dos perigos e como isso não era só uma ameaça para você, mas para a tribo inteira. Ficar próximo do território deles é um risco!

— Pare! — Pela primeira vez Adaky respondeu com energia e agressividade. — O nome dela era Jessica. E ela está morta!

Mahpee se afastou e arregalou os olhos em sinal de legítima surpresa.

— Descobri isso quando fui visitá-la. Só depois cheguei a conhecer o mestiço. Acontece que o chefe dos brancos acha que nós a matamos! — O jovem se aproximava cada vez mais de Mahpee, de maneira que aparentava crescer em tamanho e força. — Será que ele não está certo?

Aquela acusação velada trouxe fúria para dentro da alma do índio mais velho.

— Como ousa? — Falou tão alto que alguns olhares e ouvidos curiosos se voltaram para acompanhar aquela discussão. — Eu estou pela tribo desde antes de você habitar a barriga de sua mãe. Acha mesmo que eu faria algo que pudesse nos prejudicar? O fato é: caso você não se relacionasse com essa branca, talvez eles nunca viessem a desconfiar de nós. Pense, Adaky, pense! Use sua cabeça para algo, e quem sabe assim pare de nos colocar em maus lençóis.

Dito aquilo, Mahpee se retirou para sua cabana, enquanto Adaky fervia de raiva e era observado por tantos membros da tribo. Definitivamente não havia lugar para a paz naquela ilha, seja na terra dos brancos, seja na terra dos índios.

Distante da confusão e da fúria, Patwin tinha um sonho. Estava em sua pequena casa, em Nova York. Fazia muito frio e, apesar da lareira estar acesa, ele sentia como se fosse congelar. Caminhou lentamente pelo piso de madeira barulhento em direção ao fogo. Mas antes que pudesse chegar ao seu objetivo, foi interrompido por uma voz.

— Patwin — era a voz de seu pai. — Como está indo?

O mestiço percebeu que a voz vinha de uma poltrona vermelha virada de costas para ele, de maneira que a figura do pai não estava visível naquele ângulo.

— Pai? — Questionou. — O que faz aqui?

— Pergunta errada. O que você faz aqui? — Retrucou.

“O que eu faço aqui?”, Pat refletiu. Sim, aquela era a pergunta certa. Não se lembrava de como tudo havia terminado, de como havia deixado Roanoke. Espera, ele havia deixado aquela maldita ilha? Tinha conseguido cumprir o desejo do pai? “Algo está errado”, concluiu.

— Pai — disse enquanto pousava a mão sobre encosto da poltrona. — Você está morto. Estou sonhando, certo?

— Um sonho ou um presságio?

A voz estava diferente. Não, não era seu pai. Pat então se moveu para enxergar quem ocupava a poltrona e se assombrou com quem viu: Adaky. Ele vestia as típicas vestimentas secotan e segurava firmemente uma faca cerimonial.

— Adaky? — Patwin questionou assustado.

Não teve tempo para reagir. O índio avançou sobre o mestiço e começou a esfaqueá-lo de maneira brutal. Perfurou múltiplas vezes sua barriga e seu peito, com o sangue jorrando e suas tripas começando a marcar presença na grotesca cena.

— Você! — Adaky gritou histericamente. — Você trouxe a desgraça até nós!

Patwin nada podia dizer: apenas sentia seu corpo ser estraçalhado aos poucos. “Estraçalhado assim como Jessica Muller”, a imagem surgiu de relance. Enquanto a dor atingia níveis inimagináveis, o mestiço também ia sentindo uma dissociação de tudo aquilo, como se deixasse de fazer parte do corpo que era dilacerado. A única coisa que permanecia fixa era a imagem do brutal Adaky o esfaqueando sem parar.

E então, Patwin começou a enxergar tudo de cima, como um mero espectador. O índio havia destruído seu corpo, e enxergar a própria morte encheu o jornalista de puro pavor e desespero. “Um sonho! É só um sonho!”, repetia para si mesmo, mas o medo não queria abandoná-lo. O alívio só surgiu quando enfim despertou.

— Abençoado seja — disse a curandeira ao ver o mestiço abrir os olhos.

Ofegante, Patwin olhou ao redor e tudo que via era um inumerável número de ervas, utensílios e palha. “Onde estou?”, pensou enquanto tentava recuperar suas últimas lembranças.


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Notas finais do capítulo

Para quem quer se aprofundar minimamente, segue algumas das fontes que utilizei para o ritual fúnebre:
https://dying.lovetoknow.com/native-american-death-rituals
https://www.funeralzone.co.uk/blog/death-around-world-native-american-beliefs

Peguei algumas ideias de diferentes tribos para montar o ritual como um todo, espero que tenha ficado bacana :)

E uma imagem para os mais curiosos sobre a disposição do corpo e estrutura em si: https://1.bp.blogspot.com/-qWAIr3aWA2s/UaS8SSDKgSI/AAAAAAAAMO4/AxSZlnsbIRg/s1600/Lakota+Sioux-scaffold+burial.png

Por hoje é só hehehe

O que acharam?
Muito obrigado pela leitura e até o próximo capítulo :D



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