O Sétimo Ritual escrita por Lucas Samuel


Capítulo 1
A Passagem Oculta


Notas iniciais do capítulo

Apresento a vocês a primeira parte de "O Sétimo Ritual", uma releitura do conto "Branca de Neve e os Sete Anões". Boa leitura e espero que gostem!



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Nos sonhos, sua mãe era sempre bela.

Naquela noite, Branca de Neve sonhara novamente com a falecida rainha Vitória. Já sabia tudo o que aconteceria: a mãe surgiria de um campo florido, vestida majestosamente, com os longos cabelos negros ao vento, a correr em sua direção. Em seguida, abraçava a pequenina Branca e sorriam e dançavam e brincavam entre os jardins. Assim acontecia todas as noites, desde que a princesa podia se lembrar.

— Acorde, minha filha!

O barulho das venezianas correndo pela janela fez-se ouvir, e o sol banhou o quarto de luz. Branca levantou-se e sorriu para Matilde. Se sonhava todos os dias com a mãe, que não podia mais ver, pelo menos ainda tinha a presença amorosa de sua tia e madrasta. Matilde casara-se por insistência do pai da menina, e desde então revelara-se uma perfeita mãe.

Quando desceram para o desjejum, o rei Carlo, pai de Branca, já se encontrava à mesa. A princesa sentiu um antigo incômodo ao chegar. O pai a fitava com seus olhos castanhos e brilhantes. Sua expressão era sombria, e apesar de estar alimentando-se, sempre parecia faminto por algo, sabe-se Deus o que era.

Na verdade, Branca também sabia. Infelizmente, ela conhecia o que afligia o rei. Mas não queria pensar nisso, não agora. Sentou-se com a madrasta, e sabia também o que viria logo a seguir.

— Ah, minha doce filha. Como está bela hoje! Não acha, Matilde? – Carlo não tirava os olhos de Branca, e isso a deixava profundamente envergonhada. – Branca nunca se pareceu tanto com minha esposa...

— Tens uma bela filha, Majestade. – Matilde concordou, cabisbaixa. Estavam casados já há quinze anos, no entanto, o rei teimava em referir-se à falecida como se ainda fosse sua mulher. Durante todos esses anos, tentara ser a mais gentil das esposas, mas sempre que aproximava-se do rei, ele a tratava com rispidez. Seu costumeiro "Bom dia, querido!" reduzira-se a um resignado "Majestade". Branca era a única razão para a tia ainda estar ali. Era verdadeiramente a filha do seu coração, e nunca deixaria a garota sozinha, não enquanto aquele louco estivesse lá.

— Não só bela, é maravilhosa. – O rei finalmente desviou o olhar para o pão de nozes, que comia de forma ávida. Matilde viu quando a jovem deu um pequeno suspiro de alívio, e então puderam beliscar a comida em paz.

Branca comia com delicadeza. Puxara a mãe, seu pai dissera. Assim como no modo de andar, dançar e se vestir. Isso muito a aborrecia. A rainha Vitória morrera ao dar-lhe à luz, e, como se isso não bastasse para a entristecer, o pai lembrava-lhe continuamente sobre a esposa. Pensava, as vezes, que agia de maneira consciente. Como que ressentido por perder a mulher enquanto esta trazia-lhe à vida. Havia, também, os dias em que trancava-se no quarto e derramava rios de lágrimas. Sou apenas uma cópia da minha mãe. Talvez isso seja uma maldição por eu ter causado a sua morte. Mas eu não queria isso. Não, não! Deus, por favor, como eu queria que mamãe estivesse aqui...

— O que foi isso, Branca? – A madrasta olhou assustada para o chão. A princesa arremessara o prato de frutas na parede, e agora restavam apenas cacos espalhados pelo chão, cercados por peras e maçãs. O pai continuava a comer como se nada tivesse acontecido.

— Me perdoe, Matil. – Branca estava trêmula. A lembrança de suas orações recordaram-lhe que não devia pedir a volta da mãe. Desde pequena, vira coisas estranhas a esse respeito, coisas que desejava não ter tido conhecimento, e que lançou brutamente para longe da memória, junto do prato que outrora tinha em mãos.

— Não se preocupe, filha. Vou chamar alguém para cuidar de tudo. – Davi! Chame os serviçais para limpar o chão. – O velho mordomo saiu com uma reverência:

— Sim, majestade.

Do outro lado da mesa, o rei Carlo levantou os olhos da refeição, e, num estranhamente simpático sorriso, disse, com a voz doce:

— Desastrada como a mãe. E também insana. Você é adorável, Branca, minha pequena Vitória.

— Chega! – A respiração da princesa falhou, e seus olhos vertiam grossas lágrimas. – Eu não sou a mamãe, meu pai. Eu sou Branca, sua filha! – E, afastando-se depressa, correu escada acima, chorando. O rei estava perdido em pensamentos, suspirando enquanto via a menina fugir da sala.

— Como pode fazer isso com a sua filha? – Matilde havia levantado-se, horrorizada com o que acabara de presenciar. – Você está louco, o mal de Vitória ainda vive em você...

— Cale-se, vadia! – O rei fitou-a com olhos ferozes. – Não ouse falar mal dela. Invejosa e ciumenta! Você não é sua irmã. Nunca será Vitória. Nunca.

Louco, pensou Matilde, sem, no entanto, verbalizar o xingamento. Tudo o que fez foi correr escada acima, a fim de ajudar sua menina e sair da presença daquele demônio.


...

Sentada à beira da cama, Matilde acalentava a princesa, apoiando a cabeça de Branca em seu colo. A menina chorou por muito tempo, mas todas as emoções têm um fim, e depois de colocar para fora a tristeza acumulada, Conseguia agora respirar com calma.

— Você tem que ser forte, minha querida. – Matilde penteava os cabelos de Branca com as mãos, e percebeu como a semelhança entre a garota e Vitória era assombrosa. Era o mesmo rosto oval, as mesmas maçãs do rosto, rosadas e os mesmos lábios, fartos. Os olhos tinham a mesma cor, negros como a noite. Os da princesa, porém, eram bondosos, diferentes de Vitória, que sabia como enfeitiçar alguém apenas com o olhar, fosse ele enganadoramente puro ou cinicamente pervertido.

— Eu sei, Matil. Mas é tão difícil. Eu sempre me lembro do ritual, e...

— Não fale mais nada, minha pequena! – A mulher abraçou com força a sobrinha. O ritual não era nada de que devessem falar. Aquilo assustara profundamente Branca de Neve, e teria também a assustado, se já não o tivesse visto antes.

Todos os anos, na data de aniversário da morte de Vitória, o rei Carlo praticava um ritual de magia negra, a fim de trazer de volta à vida sua falecida esposa. Branca vira aquilo, pela primeira vez, aos nove anos de idade e o fato a traumatizara profundamente. A menina tinha acessos de memória em que via a cena terrível: o cadáver de Vitória magicamente preservado da putrefação, os olhos insanos do pai e mãos negras movimentando-se pelo quarto, enquanto uma voz grossa e pesada entoava um canto sinistro numa língua desconhecida. Matilde correra para o lado de Branca, sussurrando uma doce canção sobre campos floridos e almas repousando em paz, e então viu o pai cair, inconsciente, e o corpo de sua mãe novamente imóvel, e nada restava na sala do que o antigo e costumeiro silêncio. Mais tarde viria a saber que sua madrasta era uma feiticeira e também irmã de sua mãe, que impedia que esta voltasse a viver, pois, segundo Matil, a alma de Vitória havia causado problemas demais, e uma segunda vida não estava destinada a ela, por mais que esta tentasse voltar, enlouquecendo os pensamentos do rei.

Foi difícil para Branca assimilar tudo aquilo, ficando inclusive um outono e um inverno sem conversar com a tia, acreditando que sua mãe devia voltar e que a madrasta era má por impedir. Mas o tempo passou e a princesa constatou com os próprios olhos o avanço da loucura do pai, que de amor à Vitória passou a uma louca obsessão, um desejo irreprimível de tê-la novamente, o que, pensou Branca, não fazia bem a ser humano algum. Reconciliou-se com Matilde e tomou-a por mãe. As duas tornaram-se muito próximas, como se fossem, de fato, mãe e filha, e enfrentaram juntas mais cinco tentativas de ressuscitação de Vitória, todas – graças a Deus – mal sucedidas.


...

O grande dia chegara. O castelo transbordava de alegria com música, danças e um maravilhoso banquete pelos quinze anos de Branca de Neve. Nobres de todo o reino vieram prestigiar a filha do rei, que, conforme a tradição, deveria escolher um marido no dia em que tornava-se uma mulher. A bem da verdade, a jovem estava ao mesmo tempo maravilhada e assustada. A perspectiva de ter que escolher, numa tarde, o homem com quem iria se casar deixava-lhe pouco confortável, ao mesmo tempo em que os pretendentes eram todos belos e amáveis. Um pouco chatos, por perseguirem-na aonde quer que fosse, como abelhas voando em torno do mel. Porém, Branca estava feliz por sentir-se desejada, ainda mais por pessoas normais, e não pelo próprio pai perturbado. A todos tratou cordialmente, e já ia bolando uma lista mental de quais eram os melhores candidatos. Num dos raros momentos em que pôde estar sozinha, mordiscando um biscoito sem nenhum rapaz ao lado, foi surpreendida pelo pai, que surgiu sorrateiro como um fantasma.

— Minha querida, venha comigo ao seu quarto. Precisamos conversar sobre quem será seu escolhido.

Rei Carlo já estendera o braço. Vendo tantos convidados pondo os olhos nos dois, não pôde contra-argumentar. Limitou-se a dar um falso sorriso de simpatia e ambos subiram as escadas rumo aos aposentos da princesa. Ao chegarem, o rei fechou a porta e abraçou paternalmente a filha.

— Você está tão crescida! – Colocou as mãos em sua cintura e virou-lhe de modo que ambos vissem seu reflexo no grande espelho na parede. – Vamos! Pergunte a esse espelho se há no mundo alguém mais bela que você.

— Pai, por favor, está me apertando. – respondeu, desvencilhando-se de seu abraço e enojada pela situação. – Tenho que escolher meu futuro marido.

— Você não vai sair daqui. – O tom de sua voz era ameaçador. – Seu marido sou eu. Você é como Vitória, seu lugar é comigo.

E ao dizer estas palavras, jogou-a na cama. Branca tentou gritar, mas ele abafou seus gritos e montou em cima dela. A princesa chorava e se debatia, em vão. O pai era mais forte, e já estava levantando sua saia, quando sua fiel protetora surgiu gritando no quarto.

— Guardas! – Matilde trouxera meia dúzia deles, que prontamente resgataram Branca e imobilizaram o rei. A princesa correu para os braços da tia, aos prantos. A madrasta acalentou a jovem, enquanto Carlo praguejava e amaldiçoava a todos. A mulher deixou Branca no quarto e ordenou que o marido fosse levado aos seus aposentos. Em seguida, retornou ao salão, anunciando que por ora as festividades seriam canceladas, devido a uma súbita complicação da saúde do rei. Alguns dos convidados preocuparam-se com a notícia e desejaram ver o monarca, outros ficaram aborrecidos e houve até quem discutisse com Matilde. A rainha, porém, era implacável, e por fim todos foram embora, nada satisfeitos. O rei passou o resto do dia confinado em seu quarto, cuspindo ameaças que eram ouvidas por Branca, que chorava e era consolada pela madrasta.


...

A noite veio depressa e Branca repousava com Matilde. Estava mais calma, mas sua paz não durou muito tempo. Como um bicho feroz, o pai arrebentou a porta de seu quarto com golpes de machado, fazendo-a, pouco a pouco, em pedaços. As duas espantaram-se ao ver, pelos buracos na madeira, os corpos dos guardas espalhados pelo corredor, com as tripas expostas, cruelmente retiradas como que por dentes de feras. Infelizmente, Matilde sabia que a realidade não estava longe de ser esta.

Antes que a porta cedesse, Matil entregou a Branca um castiçal de cinco velas. Em seguida, correu até o grande espelho e lançou-lhe ao chão, reduzindo-o aos estilhaços. Para espanto da princesa, uma passagem oculta revelou-se a seus olhos: inúmeros degraus derramavam-se na escuridão, num caminho secreto para fora do castelo.

— Vá por ali, minha filha. – Enrolou-a rapidamente num manto, enquanto o rei dirigia-lhes ameaças e palavras chulas, prometendo tomar Branca como mulher, não importa o que lhe custasse. – Fuja pelo corredor subterrâneo, vá para longe, e não volte!

— Matil, você vai ficar? – A princesa soluçava e chorava, abraçando e dando beijos carinhosos na madrasta, como se fosse novamente uma criança em seu colo. – Venha comigo, vamos pedir ajuda...

— Não! Vá! – A mulher empurrou Branca no exato momento em que o rei saltava para dentro, rugindo como um demônio. Ele agarrou Matilde, puxando seus cabelos e enfiando suas unhas nela. O medo invadiu Branca, que, no entanto, ressentia-se por abandonar a madrasta. Os olhos da tia, porém, eram claros na mensagem que transmitiam: Fuja. Você pode viver. Foi com lágrimas que deixou para trás sua mãe adotiva, prometendo jamais se perdoar pela atrocidade que cometera, deixando-a à mercê do rei louco. Não sou tão diferente de meu pai, pensou.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por ter chegado até aqui! E aí, gostaram? O que acharam da família real? Ficarei feliz em saber!



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