O Último Ato escrita por Liz Setório


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Essa é a minha primeira one de 2018, espero que gostem.

Críticas construtivas são bem aceitas ♥

Boa leitura!



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Era apenas mais um dia, mais um dia daquela minha vida desgraçada e infernal. O sol já estava de pé há um bom tempo e eu precisava me levantar. Necessitava entrar em cena no maldito teatro que havia sido arquitetado para mim. Odiava aquela vida, mas precisava vivê-la. Revoltar-me era impossível. A todo custo, reprimia os sentimentos de ódio que dominavam o meu ser. Não podia de forma alguma colocá-los para fora.

Ainda estava deitada, tentando reunir forças para encarar aquele dia. Queria tanto não ter acordado naquela manhã… Eu ainda não tinha ideia que acordar tinha valido a pena. Enfim, me livraria do meu algoz, me tornaria o seu algoz.

Quando finalmente senti-me disposta para levantar, o fiz lentamente. Havia dormido o bastante, mas ainda me sentia um pouco cansada.

Dirigi-me até o guarda-roupa, peguei uma blusa e um short aleatórios, desci as escadas, passei pela minha linda família feliz, sem os cumprimentar, e fui para o banheiro, tomar banho.

Tomei um banho morno, morno como aquela minha vida sem graça. Feito isso fui tomar café. Papai e mamãe ainda estavam na mesa e enquanto eu colocava o café na xícara, pude ouvir o papai resmungar:

— Você não educou mesmo os seus filhos, né, Vanda?!

Mamãe não respondeu nada, limitou-se apenas a um muxoxo fraco, quase inaudível.

Josué, o pai que não era pai, desejava que eu chegasse à mesa, desse bom dia e fizesse demonstrações de afeto, ou seja, alimentasse a fantasia criada por ele e por mamãe, fantasia essa onde éramos uma família de comercial de margarina. Entretanto, essa felicidade existia apenas na mente deles, a realidade mostrava-se bem diferente.

Já havia dez anos que Josué, por erro seu, tinha deixado de falar comigo. Ele queria aceitação de minha parte, de todas as cachorradas dele, queria que eu achasse normal o envolvimento dele com mulheres na rua, algo natural, na cabeça machista dele. Ele adorava enfatizar: saio com outras na rua, mas só amo a Vandinha.

Revoltei-me imensamente com tal situação.Provavelmente mais que minha mãe. Ela todos os dias levantava as cortinas, para dar início a toda aquela encenação . Mamãe agia com normalidade, fingindo não haver conflitos, tudo funcionava da melhor forma possível, na cabeça dela, é claro. Referia-se a Josué, o tempo inteiro como meu pai. Às vezes, mais parecia que ela tinha esquecido o nome dele, pois quando falava dele para mim, o chamava de seu pai  e não pelo seu asqueroso nome.

Enquanto comia não conseguia deixar de recordar a desgraça que a minha vida havia se tornado, desde quando mamãe e eu tomamos consciência de quem era Josué, de como ele mentia para nós e nos deixava em segundo plano na sua vida.

O mais doloroso para mim, era o fato de minha mãe não esboçar mais nenhuma reação frente ao comportamento dele, para ela, tudo sempre estava como o usual. Ela havia reagido somente quando descobrimos a infidelidade. No entanto, depois de um tempo veio o conformismo, passou-se uma borracha no acontecido.

Ao fim do café, fui escovar os dentes, em seguida terminei de me arrumar. Dei tchau para mamãe e saí. Sempre fazia questão de dizer um tchau, mãe. Eu não queria, de forma alguma, que pudesse passar na cabeça de Josué que aquele tchau também estava sendo direcionado a ele.

Fui para a faculdade e naquele dia, fiquei até a noite lá. Pela manhã, terminei de organizar com os colegas um trabalho que seria apresentado à tarde. Durante o período vespertino além da apresentação, também tive aula de Cálculo II.

Adorava o meu curso, sonhava desde menina cursar engenharia civil, porém era extremamente irritante passar o dia rodeada por homens. Não que eu fosse misândrica, todavia desejava imensamente mais feminilidade naquele curso. Na minha sala havia apenas cinco garotas, contando comigo, e no meu grupinho de amigos havia só eu e mais outra menina.

Às vezes acabavam rolando uns papos meio machistas na sala, nos deixando muito irritadas. Ouvíamos coisas do tipo: peão não vai respeitar mulé não, oxe. Elas vão acabar indo pra obra só pra cuidar dos detalhes, pra fazer reajunte.

Era difícil ser feminista e estudante de engenharia, aquilo acabava me trazendo sofrimento, naquele espaço eu sentia a opressão de forma maior, mais agressiva. Entretanto, eu tinha uma espécie de obrigação de ocupar aquele lugar, precisava mostrar que as mulheres não eram, de forma alguma, inferiores aos homens.

Quando finalmente fiquei livre das obrigações acadêmicas, voltei para casa num ônibus cheio, as pessoas constantemente se esbarravam em mim. Sabia que não era proposital, porém isso não deixava de ser irritante, contato físico sempre me deixava um pouco irritada, me fazia lembrar do meu período Edípico¹ com Josué, onde nós éramos só beijos e abraços. Sentia-me enojada só de lembrar de tal situação.

Ao chegar em casa, encontrei Josué na sala, jogando em seu console portátil, através desse joguinho ele fingia ser um monstro mais agradável.

Mamãe estava no quarto, dobrando roupas, ela ainda não tinha percebido a minha presença. A sede insuportável que tomava conta de mim me impediu de ir falar com ela. Acabei me dirigindo imediatamente para a cozinha. Abri a geladeira e servi-me com um copo de água. Quando fui devolver o copo ao armário, reparei numa faca, uma peixeira. Ela parecia me encarar, ela parecia solicitar a mim para ser retirada dali, era como se ela desejasse imensamente ser usada.

O meu olhar estava fixo na faca e eu acabei cedendo aos meus desejos que até então haviam sido reprimidos, desejos esses que pareciam estar saltando imediatamente do meu inconsciente para o meu consciente.

Sinceramente, esses desejos visitavam constantemente o meu consciente, ou seja, eles não eram tão inconscientes assim, mas sempre eram negados e reprimidos por mim.

Voltei à sala, num gesto rápido e frio, ataquei Josué pelas costas, no mesmo momento ele soltou um grito alto e agudo. Seu videogame caiu no chão e eu sem nem pensar, o estraçalhei com o pé. Nesse instante mamãe veio até a sala.

— O que está acontecendo aqui? — questionou aos berros, ela estava desesperada.

— Eu vou acabar com isso — bradei, enfiando a faca mais fundo nas costas dele.

— Pelo amor de Deus, pare com isso, Luiza — pediu com lágrimas escorrendo pelo rosto.

Mesmo se mostrando contra aquilo, ela não tentou fisicamente me impedir, somente me pedia para parar.

Minha mãe permaneceu imóvel. Provavelmente estava em choque, ou talvez, apenas não quisesse impedir aquilo, talvez aquele também fosse o seu desejo inconsciente.

— Não, esse é o último ato desse seu maldito teatro — vociferei com todas as minhas forças. Eu tinha uma voz assustadora, parecia estar possuída por algum tipo de demônio.

Josué sem forças caiu no chão, por algum motivo, mesmo quando ainda tinha alguma força ele não tentou resistir, não tentou de forma alguma me atacar. Talvez soubesse que merecia aquilo, aquele deveria ser o seu fim. Morrer pelas mãos de alguém que um dia disse amar e que o amou também, o amou da forma mais sincera que se pode amar outro ser humano.

Com ele no chão eu o virei de frente e dei a minha última facada, onde deveria ser o seu coração, caso aquele monstro horrível tivesse coração, mas não, ele não tinha, alguém como ele não poderia ter coração. Alguém que maltratava constantemente um filho como ele fazia, era um ser oco, seu sangue deveria ser bombeado por uma espécie de bomba e não por um coração, afinal ele não era um humano, mas sim um monstro sem nenhum tipo de emoção.


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Notas finais do capítulo

Edípico¹: período em que é vivenciado o Édipo (psicanálise). Édipo é um personagem de uma tragédia grega que matou o pai e casou com a mãe. Para a psicanálise, todos nós passamos por um período edípico, onde desejamos o genitor de sexo oposto ao nosso e queremos matar o de mesmo sexo, essa fase, ocorrida, por volta dos cinco anos de idade, recebe o nome de Complexo de Édipo.

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