Bestetti escrita por Aires
Notas iniciais do capítulo
Eis o primeiro capítulo. Espero que se divirtam! Boa leitura!
Bongard vinha de uma linhagem de “trabalhadores pela fé”, como dizia seu pai e todos os primogênitos antes dele. Relações públicas era o atual e bem visto nome para a função daqueles que apagavam incêndios, cobriam escândalos, calavam quem sabia demais e tornavam uma notícia a verdade que lhes caísse melhor.
Cabelos negros em um corte chanel, alta e de uma magreza um tanto exagerada, Leonora passava a imagem de uma mulher séria porém um tanto frágil. Dentre todos de sua família que já trabalharam para a igreja, foi a única que teve uma certa dificuldade em conquistar a confiança e o apoio dos membros do clero. Apesar de ser a primeira mulher de uma linhagem de homens, para os antiquados líderes religiosos a única mulher que ainda merecia alguma confiança era Maria, mesmo não admitindo tal pensamento abertamente.
O escândalo no convento Santa Edwiges era a oportunidade perfeita para consolidar seu nome e respeito entre todos; poderia demonstrar que a competência e excelência dos Bongard não havia sucumbido a um par de seios como diziam os padres, aos cochichos, pelos corredores.
— Arquibalde — dizia o bispo, com seus óculos caídos na altura do nariz folheando alguns papeis.
— No Brasil!? — o olhar, agora impaciente, enfim a encarou.
— No sul do Brasil, mais precisamente.
Os lábios de Leonora ensaiaram dizer algo mas não o fizeram. Nunca tinha ido tão longe para resolver algo do vaticano. Em seu íntimo temia fracassar.
Retirada, de súbito, de seus pensamentos vislumbrou o bispo já de pé com as passagens que a levariam para a América.
Uma pequena mala de roupas e uma pasta; dentro do avião ela folheava fotos do convento, da pequena porém bela cidade, de algumas freiras, inclusive da pobre vítima que sorria sentada ao pé de carvalho. Mal sabia o triste fim que a aguardava. Aproximou a última foto um pouco mais.
— Madre Strauss — disse em voz baixa. A mulher altiva transmitia um misto de benevolência e intimidação; como alguém poderia unir sensações tão distintas?
Fechou os olhos e suspirou, dizendo a si mesma que aquela seria a faísca de um incêndio que ela não permitiria acontecer. Se os bispos diziam que os Bongard eram um dos tentáculos da poderosa força divina ela seria, então, a mão aplacadora e consoladora de Deus.
A chegada ao Brasil foi tranquila. Da capital tomou um ônibus em direção à Arquibalde e pelo caminho passou a tomar notas mentais dos primeiros passos que teria em toda a investigação a se iniciar. Como o corpo foi parar naquele lago? Ela possuía inimigos? O que a falta do dedo anelar da mão esquerda representa? O que Madre Strauss tem a dizer sobre tudo?
O Vaticano não precisava de um problema feito aquele, que poderia botar em xeque a confiança em seus conventos, a integridade de seus cuidadores e suas formas de proceder. Se o fato tomasse grandes proporções, aquela freira com pouca sorte, significaria uma crise em uma organização até então limpa.
A cidade era arborizada, de ruas em pedra, histórica e com muita vida. O clima frio criava uma sensação de tranquilidade e Leonora notou que, em alguns aspectos, até chegava a lembrar o próprio Vaticano.
Os cumprimentos pela rua a fizeram agradecer mentalmente as diversas aulas de português que fizera, como tantos outros idiomas. Afinal, uma representante dos planos santos deveria alcançar todos os fiéis.
— Sou Leonora Bongard, Relações Públicas do Vaticano. Madre Strauss está me aguardando.
O porteiro, um senhor bem idoso, afirmou positivamente com a cabeça enquanto lhe permitia a entrada. Logo a frente, uma noviça que passava foi avisada a encaminhar a mulher ao encontro da Madre.
— A senhora que veio descobrir o que houve com Alice? — Perguntava a jovem noviça.
— Exato. O próprio Papa me destacou para entender o que ocorreu.
Mentia. O Papa tinha o mundo para se preocupar e mal devia saber o que ocorrera e, se sabia, já delegou o assunto a alguém. Que o chamassem quando o próprio demônio aparecesse, repetiam, aborrecidos, os subalternos de Sua Santidade.
A jovem parecia feliz com a resposta e logo estavam de frente a sala principal da Madre Superiora Eva Strauss. As portas de madeira se abriam vagarosas, talhadas em imagens bíblicas: anjos, querubins; a salvação estava a uma mesa de distância, de pé, vislumbrando um quadro.
— “Tiveste sede de sangue, e eu de sangue te encho” — a voz calma proferiu.
— Como?! — Leonora adentrava o belo escritório a passos indecisos.
O rosto virou-se lentamente, fazendo alguns fios ruivos desajeitarem a trança frouxa, porém bem feita. Os olhos agora fitavam a recém chegada.
— Dante Alighieri. Este é meu quadro preferido de todo o convento — o indicador deslizou cuidadosamente pela moldura em estilo barroco. Parecia dedilhar o próprio inferno representado ali. — Qual inferno cabe melhor aos seus pecados? — Sorria e enfim aproximava-se estendendo a mão. — Senhorita Bongard, é um prazer conhecê-la.
O crepitar da lareira, ao canto, deu um leve susto em Leonora que sorriu sem jeito, fez um sinal positivo com a cabeça e ofereceu a mão em resposta.
— Madre Strauss, é uma honra conhecê-la! Posso afirmar que todo o clero lhe tem em grande estima.
Strauss, com um cordial sorriso, indicou que se sentassem.
— Não deixo que o pecado do ego tome conta de meu ser. Humildemente agradeço tal estima, porém me vejo apenas como simples serva dos desígnios do Criador.
A conversa amena tomou conta durante um tempo. Sobre a viagem, o idioma, o clima no sul brasileiro. A Madre aparentava serenidade e parecia, sinceramente, querer deixar Bongard mais a vontade e familiarizada com tantas coisas.
— Senhorita Bonga…
— Me chame apenas de Leonora.
— Pois bem, Leonora, aconselho que vá descansar. Uma das freiras preparou-lhe um quarto.
Tentou intervir pelo contrário, não havia tempo para o descanso, porém havia sido em vão.
— Nós descobriremos o que houve com nossa amada Alice, minha querida. Você foi enviada e cumprirá seu propósito.
Ambas já de pé, Strauss a levou até a saída e chamou uma noviça para acompanhar a mulher.
— “Do viver, que é uma corrida para a morte” — ouvia a voz de Eva enquanto vislumbrava as portas se fecharem à sua frente.
O sono tomou-lhe o corpo assim que se deitou, pedia descanso, parecia saber o que viria a seguir. Logo cedo o trabalho parecia ser improdutivo, as freiras tentavam desconversar, as noviças pareciam amedrontadas; o que todos temiam dizer? O que havia naquele convento de tão secreto e “perfeito”?
Os portões de saída eram suntuosos, de ferro, uma estrutura antiga resistente ao tempo. O símbolo da santíssima trindade lhe dava a força necessária para sobreviver as mais diversas tormentas que já ocorreram ou que pudessem vir.
— O senhor está aqui há muitos anos, não? — Perguntava cautelosa. Leonora não queria terminar o dia sem nenhuma evolução.
O homem a olhou e arqueou a sobrancelha.
— Você veio aqui pela freira encontrada morta? O Vaticano te mandou? Alice não pode simplesmente ser esquecida sem justiça.
— Não será, senhor…
— Pedro, me chamo Pedro — fora batizado com o nome do apóstolo mais leal a Jesus, o homem mantinha-se firme em seu dever de cuidar e preservar as ovelhas de Deus.
— Senhor Pedro, estou aqui porque Alice não será esquecida! Eu encontrarei as respostas, não deixarei lacunas. Atravessei o oceano para isso.
A resposta fez o idoso suspirar, serviu então, um café para si e outro para a mulher. A portaria estava vazia, o movimento havia cessado e Pedro sentiu confiança em sair da guarita e recostar-se por ali.
— Essa cidade é maravilhosa, dona, mas já aconteceram coisas demais. As vezes parece que o diabo é doido pra encostar aqui e fazer morada.
— Como assim? — Um gole do café e com o rosto levemente inclinado, a mulher o observava com atenção.
Ele olhou para os lados desconfiado, garantindo que não seriam ouvidos.
— O rapaz, o menino Gabriel, que trabalha aqui… e os Bestetti… Bem, tome um pouco mais de café, tenho algo a contar.
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O que será que aconteceu em Arquibalde? Algum palpite sobre o que pode ter assolado esta pequena cidade?