komorebi escrita por socordia


Capítulo 2
Dois.


Notas iniciais do capítulo

voltei! dsclp a demora, problemas inesperados com o pc surgiram, e por isso não consegui nem revisar o capítulo.
esclarecimentos necessários para o capítulo: o sistema universitário do UK é, para propósitos dessa fic, o mesmo dos EUA. então o pessoal faz quatro anos de undergrad, uma formação geral, e depois parte pra grad school, onde se especializam. RAs são Resident Assistants, alunos que são responsáveis pelo bem-estar dos outros alunos, por orientá-los e por reforçar as regras dos dormitórios. Lily e Remus são ambos RAs. por último, dimons são representações animais da alma, que vivem fora do corpo, e estão presentes no mundo de Lyra, na obra de Philip Pullman, Fronteiras do Universo.



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Surpreendentemente, Lily cai no sono assim que despenca em sua cama. Resultado, provavelmente, do álcool que fazia seus olhos pesarem e do estresse de ver seu cabelo lenta mas decididamente tomando cor bem na sua frente. Seu sono é pesado, mas afligido por sonhos bizarros, cheios de espirais e luzes piscantes, cheiros pungentes e batidas ritmadas.

O celular de Lily recebe uma ligação, primeiro, às 10 da manhã. A musiquinha padrão se espalha pelo quarto, mas, mesmo o aparelho estando na mesinha de cabeceira de Lily, ela nem sequer se mexe. Afundada na inconsciência, o único indício de que Lily perdeu uma ligação é a notificação na tela rachada nos cantos do seu celular. Às 11h33, o celular toca de novo, fazendo com que Lily gema e mande a ligação para a caixa postal sem nem ter consciência do quê está fazendo. Mensagens de texto seguem a segunda ligação perdida, as notificações sendo engolidas pelos cabelos e travesseiro de Lily, que esfrega o rosto de leve, se vira para o outro lado da cama e volta a dormir.

É só com a ligação das 13h18 que Lily acorda, deslizando o dedo pela tela delicada, encostando o celular de qualquer forma na orelha. É por pouco que ela não atende a ligação com o celular de ponta-cabeça.

— O quê é? — exige saber, mal-humorada, o sono deixando sua voz seca.

— Bom dia, Lily — cumprimenta Remus, imitando o tom impaciente dela. — A gente ia almoçar, esqueceu?

Lily senta-se na cama de supetão, os cabelos despontando para fora da trança, o coração pulando na garganta.

— Rem! — ela geme, e sua cabeça começa a latejar instantaneamente. O mundo desfoca-se ao redor de Lily e ela fecha os olhos com força na tentativa de fazer o mundo parar de girar. — Que horas são?

— Quase uma e meia. — Remus diz, de forma descontraída. — Lil, por que você não me atendeu mais cedo?

De olhos arregalados, Lily joga as pernas para fora da cama e põe-se de pé. Suas pernas estão fracas e ela tem que se segurar no colchão para não se estabanar no chão — apertando ainda mais o celular conta a orelha com seu ombro, Lily desliza de forma patética até o linóleo, xingando todas as entidades superiores do universo.

— Ressaca? — oferece Remus, com o tom de voz de quem sabe tudo, o tempo todo. Lily só geme em resposta. — Eu não sabia que iríamos sair ontem.

— Foi mal, Rem. — Lily troca o celular de orelha e esfrega os olhos com as mãos. — Foi meio que uma emergência. E você tava ocupado com coisas de RA e eu não queria atrapalhar.

— Lily. — A austeridade nas duas sílabas simples faz um arrepio de terror percorrer a espinha de Lily. — Você nunca atrapalha. — Lily sorri que nem uma idiota, mesmo sabendo que Rem não pode vê-la, e abraça a si mesma enquanto imagina que é Rem que a abraça. — Mas o quê aconteceu? Que tipo de emergência?

Com um suspiro sofrido, Lily se prepara para contar todo o drama relacionado a Snape que finalmente tinha explodido no dia anterior. Como Rem é um dos melhores amigos de Lily, não foi necessária nenhuma introdução complexa, e ela utiliza-se de sua frieza analítica dos anos passados estudando medicina para se afastar da situação e poder contar tudo o que aconteceu sem desmoronar em lágrimas.

Lily conhece Severus desde que eles eram crianças. Vizinhos, passavam bastante tempo juntos, brincando no parquinho meio destruído da vizinhança e frequentando a mesma escola pública. As outras crianças não gostavam muito de Snape — e mesmo Lily admite que até ela o achava meio estranho. Mas ele era gentil com ela, e tinha uma espécie deturpada de humor que fazia com que ela risse até lágrimas saírem dos olhos. Conforme foram crescendo, Severus começou a desenvolver uma obsessão nada saudável com o processo de colorização. Ele, assim como Lily, não via cores, e achava todo o blábláblá acerca de colorização não apenas enfadonho, mas odioso. Para ele, não existe isso de compatibilidade total entre pessoas, principalmente uma que se manifeste numa mudança tão gritante na vida dos envolvidos.

Seu discurso sempre dava a entender que, na realidade, Severus só estava profundamente amargo por não ter se colorizado ainda. Melhor — por não ter se colorizado com Lily. Ele vivia perguntando, de formas nem tão sutis, se ela já tinha encontrado suas cores, se tinha conhecido gente nova, ou se estava namorando. As coisas ficaram mais intrusivas quando os dois entraram para a universidade e não passavam mais tanto tempo juntos. Severus ficou perturbadoramente controlador.

Os amigos que Lily fez em Hogwarts não entendiam porquê ela não cortava Snape de uma vez de sua vida. Mas Lily ainda lembrava do garotinho estranho, embora doce, que a fazia rir. Mas a última discussão deles... foi a gota d’água. Lily nunca se sentiu tão diminuída e furiosa ao mesmo tempo. Ele fez com que ela se sentisse deslocada e errada em suas escolhas, usando dos anos de amizade para apertar todos os botões das inseguranças de Lily.

E então ela percebeu o quê Marls tem-lhe dito desde que se aproximaram e viraram melhores amigas: Severus Snape não presta. Por isso que Lily jogou um copo d’água na cara dele e deixou-o lá, com cara de pastel, sem nem olhar para trás.

— Finalmente. — Remus resmunga, quando Lily termina de falar. — Quer dizer, eu sei que ele foi seu amigo por anos, Lil, mas...

— É, é. Tudo bem, Rem. Não precisa medir palavras. — Ela bufa e começa a desfazer o quê restou da trança em seus cabelos. — O importante é que tirei ele da minha vida. Definitivamente.

— E por isso saiu com as meninas ontem? Para comemorar?

— Para não ficar chorando de desespero em casa e remoendo cada sílaba que disse, na verdade. E para que minha decisão amadurecesse ao ponto de que eu não me sentisse tentada a voltar atrás.

— E deu certo?

Lily para, por alguns segundos, avaliando sua resposta. Seu cabelo continua colorido à sua frente, num tom mais claro, quase voltando ao cinza original. Ela penteia o que pode com os dedos, mas seu cabelo não perde definitivamente a cor. Erguendo os olhos para o teto, Lily tem que se controlar para conter o gritinho que se acumula em sua garganta: a parte racional da sua mente sabia que o dormitório da Grifinória tem como cores o vermelho e o dourado, mas ela não estava preparada para encontrar a bandeirola que colou em cima da porta encarando-a numa cor desafiadora. O leão ainda está cinza, mas Lily quase pode imaginar ele ganhando cor conforme Lily for ganhando as cores.

— Deu. Nos divertimos muito. Dançamos, rimos, bebemos, e tomamos café no Abe.

Lily estrategicamente omite de seu curto relato o fato de que deu uns amassos anônimos com a sua provável alma gêmea. Não há porquê preocupar Rem.

Ele começa a falar como foi sua reunião com os RAs dos andares dos meninos quando Lily ouve baterem em sua porta.

— Rem, tem alguém aqui. A gente se vê depois?

— Me encontra lá embaixo daqui a pouco. Vamos comer alguma coisa antes da reunião de orientação.

Lily concorda e se despede de Remus, botando o celular em sua escrivaninha e pondo-se de pé. A pessoa bate na porta de novo, enquanto Lily se espreguiça e põe a coluna no lugar, e ela avisa que já está indo entre bocejos. Dá uma conferida em si mesma para se certificar que está apresentável antes de abrir a porta.

— Uau — a pessoa que está do outro lado, uma menina baixinha de traços filipinos e com grandes óculos de armação grossa ao redor dos olhos amendoados, diz. — Ruiva.

Lily ri.

— É o quê me dizem. — Ela enfia uma mecha de cabelo atrás da orelha. — Bom dia. Posso te ajudar?

Estranhamente, Lily não reconhece a garota a sua frente. Como Resident Assistant do décimo terceiro andar, ela deveria conhecê-la, já que é o seu trabalho estar à disposição de todas as alunas e zelar pelo bem-estar geral. Isso quer dizer, provavelmente, que a garota não está no andar certo. Como Mary é a RA do décimo segundo andar e frequentemente passa o final-de-semana em qualquer lugar menos no dormitório, não é a primeira vez que Lily tem de lidar com residentes de outros andares que não aqueles sob sua responsabilidade.

— Bom dia — responde a outra, com uma expressão intrigada no rosto. Droga, já é depois de meio-dia, lembra-se Lily. — Eu sou a Alice Fortescue. Grad student de História da Arte. Eu cheguei ontem à tarde e você não tava por aqui. Alguém me disse pra te procurar hoje e me apresentar.

— Ah, ok! — Lily automaticamente ajeita a postura e entra em sua persona responsável, que definitivamente não fica até as sete da manhã na rua depois de uma noite inteira dançando e bebendo. — Seja bem-vinda. Eu sou Lily Evans, mas as outras garotas já devem ter te dito isso. — Alice acena em concordância e Lily se apoia no batente da porta para estabilizar o mundo que parece meio bambo nos cantos. — Já te deram o tour?

— Do campus, sim. Pelo menos dos prédios principais. — Alice arregala os olhos puxados e ajeita os óculos no rosto. — Aqui é enorme.

Lily sorri diante da fascinação que ilumina os olhos de Alice. Ela mesma mal conseguia acreditar no que via quando chegou à Hogsmeade e em consequência à Hogwarts. É difícil distinguir cidade de universidade, as duas coisas misturando-se numa simbiose quase biológica e profundamente interdependente. Hogsmeade não sobreviveria sem a universidade, mas Hogwarts tampouco seria capaz de subsistir sem a cidade e sua infraestrutura.

— Logo você se acostuma.

É verdade. Lily sente falta do senso de deslumbramento que tomava conta de si toda vez que tinha de ir ao prédio antigo, da administração, ou passar horas na biblioteca geral no mesmo prédio. O castelo ancestral é recheado de história de cercos e batalhas, hospedando inclusive reis, rainhas e sua corte. Hogwarts faz parte da Escócia, e andar por seus corredores é ter um vislumbre das eras pelas quais a construção permaneceu. É um sentimento estranho, andar por um lugar que existe há muito mais tempo que você, seus pais ou qualquer outra pessoa que você já conheceu, e que ainda persistirá para muito além de você. Dá um friozinho na barriga — mas não é difícil acostumar-se ao sentimento e ignorá-lo toda vez que ele ameaça dar as caras.

— Mas te apresentaram o dormitório? — Lily continua, seguindo o protocolo determinado e demandado por seus superiores. — A Torre da Grifinória é bem grande.

— Torre? — Alice franze as sobrancelhas, confusa, numa expressão adorável.

— É que quando a universidade se resumia ao prédio principal, todos os quatro dormitórios ficavam por lá, e eram chamados de “casas”. A Grifinória e a Corvinal ficavam em torres, e o nome pegou...

— Ah... — Alice assovia baixinho, impressionada. — Esse lugar é cheio de tradição, né? Mas não, ainda não fiz o tour pela Grifinória. Só sei que o decorador tinha um afeto especial por leões, vermelho e dourado. — Alice franze o nariz diante das últimas observações, olhando para o corredor como um todo. Lily segue-a com o olhar e percebe rastros de cor disformes e rasos por paredes e piso.

— Desculpe se pareço intrometida. — Lily começa, depois de enfiar uma mecha de cabelo atrás da orelha, sentindo-se incrivelmente consciente de si mesma, mas ao mesmo tempo sem conseguir conter sua curiosidade. — Você já...?

Alice nem deixa que ela termine.

— Se eu já me colorizei? Na verdade, eu nasci com cores.

É a vez de Lily arregalar os olhos. Ela sabe que deve estar parecendo um desenho animado, mas a surpresa é tanta que ela não faz ideia de como reagir. Pelo menos seu queixo não caiu, mas isso foi só porque Lily sentiu o movimento e travou a mandíbula com força.

Nasceu com cores?! Fenômeno raro, mas real, que nem pessoas que nunca se colorizam.

— Eu... ã... — Lily lambe os lábios sem saber o quê fazer. Ela limpa a garganta e tenta tomar controle de si mesma de novo. — Nunca conheci alguém que nasceu com cores.

— Agora conhece! — exclama Alice, com um sorriso que parece um pouco forçado. Pobrezinha, deve receber olhares espantados e queixos caídos com muita frequência, e Lily não está ajudando.

— Desculpa. — Pede Lily, botando as mãos em posição de oração e fazendo sua melhor expressão de coitada. — Juro que não sou tão inábil socialmente. É só que não tomei café. — Alice ri melodicamente diante da tentativa de piada e Lily sente-se um pouco melhor. — Eu vou me encontrar com um amigo para almoçar, e se você quiser, pode vir com a gente e eu te apresento todas as comodidades da Grifinória.

— Ótimo! Te encontro no elevador em dez minutos?

— Ok!

— O meu namorado pode comer com a gente? — pergunta Alice, antes que Lily tenha a oportunidade de pedir licença e fechar a porta para poder trocar de roupa. — Ele mora fora do campus...

— Desde que ele tenha uma identidade estudantil ele pode ter acesso a nossa cafeteria, e todo mundo pode ir nas outras instalações públicas do prédio, tipo o café e a lojinha de conveniência... — Lily entra no papel de RA com uma facilidade espantosa, e começa a listar para Alice os procedimentos de receber visitantes, enumerando os horários permitidos e toda a burocracia por detrás. Alice fica acenando com a cabeça, os olhos fixos em Lily, e ela tem a impressão de que a outra está fazendo anotações mentais sobre tudo o quê ela está dizendo.

Finalmente, Lily volta para o quarto, joga uma água no rosto e, enquanto escova os dentes, manda mensagens para Remus avisando que Alice os acompanhará. Recebeu notificações de mensagens de um número desconhecido, e seu coração gela quando abre a conversa não-lida.

Snape pedira o celular de um dos amigos emprestado para importunar Lily. Ela digita furiosamente uma mensagem que não trai a tempestade de emoções dentro de si: “não tente mais falar comigo, severus”.

Ela continua, para enfatizar: “estou falando sério”. A falta de contrações serve como indicativo da gravidade das palavras de Lily. Ela bloqueia esse número também, só para prevenir, e confere o Instagram para desviar a mente de pensamentos desagradáveis. Stories de Marls e Dorcas no Três Vassouras na noite anterior deixam um sorriso no rosto de Lily, que finalmente troca de roupa, prende os cabelos no alto e pega a identidade estudantil e chave do quarto para sair.

Alice já está lhe esperando em frente aos elevadores. As duas descem ao subsolo, onde Lily apresenta a lavanderia e academia, tirando as dúvidas de Alice de forma diligente, e logo sobem ao térreo, pelas escadas, só para que Alice saiba onde se localizam. Quando estão prestes e passar as carteirinhas pelas barreiras entre a área privativa do dormitório e a saída, Lily estaca no lugar. Alice, que falava sobre como estava animada para começar as aulas, demora para perceber que Lily parou de andar, e, ao virar em seus calcanhares, vê que ela está escondida na esquina do hall dos elevadores.

— Hmmm — murmura Alice, em tom inquisitivo, botando-se ao lado de Lily, que está de repente muito pálida. Muito embora Lily não consiga ver a si mesma, sentiu o sangue ser drenado de suas bochechas. — Lily, o quê...?

Snape — ela sussurra em tom exasperado, como se isso deveria significar qualquer coisa para Alice.

Lily não consegue acreditar em seus olhos. Da onde está, covardemente escondida, consegue ver Remus e Severus, ambos destoantes como dia e noite. Rem é alto, com membros elegantes, postura relaxada e cabelos num corte baixo; Snape, por outro lado, é desengonçado, principalmente quando está gesticulando desse jeito, os cabelos caindo na frente dos olhos, tendo de olhar para cima para conseguir enxergar o rosto de Rem.

— De quem estamos nos escondendo? — cochicha Alice, curiosa. — Do moreno bonito ou do moço saído da imaginação de Bram Stoker?

Lily solta uma risadinha que é meio que um ronco e retrai-se ligeiramente mais para as sombras, com medo de ser reconhecida.

— Do segundo. — Responde, voltando ao seu lugar quando percebe que Rem e Severus não estão olhando para a sua direção. — Snape.

— Ex-namorado?

— Ex-amigo.

— Ahhhh... — Alice concorda com a cabeça, como se soubesse exatamente do quê Lily está falando.

As duas permanecem em silêncio pelos próximos minutos, observando conforme a linguagem corporal de Snape vai ficando cada vez mais frustrada e exasperada, enquanto Remus parece acomodativo, com gestos lentos, mas ainda assim mantendo distância de Severus. Não demora muito para que Snape dê as costas e saia do prédio, pisando fundo, seus coturnos fazendo barulho contra o piso de pedra polida da entrada do dormitório da Grifinória. Depois que sua silhueta desapareceu de vista, Remus vira-se nos calcanhares e olha exatamente no nicho onde as duas meninas estão escondidas.

— Lil, pode sair.

Ela respira aliviada e deixa as sombras para trás, sendo seguida por Alice, que parece extremamente entretida. O celular dela pisca e toca, e ela diz que vai encontrar com o namorado nas escadarias e já volta para encontrar Lily. Lily apresenta Alice a Remus brevemente, e Alice sai logo em seguida; Lily deixa que o amigo puxe-a para um abraço.

— Oi.

— Oi. — Ela responde, enterrando o nariz no suéter felpudo de Remus. Lily apoia o queixo no peito dele e olha para cima, procurando o olhar de Rem com o seu. — O quê o Sev queria?

— Falar com você. — Remus revira os olhos. — Parece que o cara não sabe o quê significa quando alguém bloqueia o seu número.

— E diz com todas as letras que não quer que ele lhe procure mais. — Lily murmura contra o suéter de Remus. Ele estreita o abraço, apertando-a mais, e Lily sente-se segura por preciosos momentos. — Oi — ela repete, em voz miúda.

— Oi. — Lily consegue ouvir o sorriso na voz de Rem e sente o queixo dele contra o topo de sua cabeça. Rem rompe o abraço e dá um beijo na têmpora de Lily, oferecendo-lhe o braço. — Vamos comer?

— Por favor.

Os dois se encaminham para o refeitório, conversando amenidades. Rem dá detalhes da reunião dos RAs masculinos; aparentemente, dois velhos residentes da Grifinória, que tinham dado uma pausa nos estudos, finalmente voltaram para a grad school e eles têm toda uma reputação de baderneiros. A administração está sabendo, mas parece que o pai de um dos rapazes é um ex-aluno que dá doações significativas para Hogwarts, e por isso os RAs devem fazer vista grossa para as indiscrições deles. Lily só rola os olhos quando Remus fala disso — Hogwarts está cheia de pessoas podres de ricas que se acham melhor que todos os outros só porque têm dinheiro. Ela está cansada de receber olhares tortos por seu status de bolsista, e de ter que engolir sapos pelo bem de sua bolsa de estudos. Rem está na mesma situação, e nos minutos que têm só para si, os dois reclamam efusivamente de todos os filhinhos de papai que têm de aturar para conseguirem terminar a universidade.

Eles passam seus cartões do plano de alimentação da bolsa de permanência que ganham e já vão para a fila da comida, bandejas nas mãos e ombros relaxados. A tensão de ter visto Snape inesperadamente dissipa-se da coluna de Lily aos poucos, e ele passa a se tornar um problema de canto de mente: ela sabe que ele está lá, mas está tão escondido que pode ignorá-lo, ao se distrair.

No caso de Lily, a distração vem de um tubo de ketchup e de uma geladeira abastecida de latinhas de Coca-Cola. Ela arregala os olhos e titubeia com a bandeja pesada, perdendo o equilíbrio por alguns momentos. Rem impede que ela caia, segurando-a pelo cotovelo, e seu semblante se franze em preocupação conforme Lily sente o rosto pegar fogo e a força voltar aos seus joelhos.

— Tá meio escorregadio aqui — ela murmura a desculpa por debaixo da respiração, sem sequer conseguir olhar Remus nos olhos.

Preciso fazer alguma coisa sobre essas cores, reclama para si mesma, trincando a mandíbula e procurando uma mesa livre para se sentar. Alice acena à distância e Lily indica-a com a cabeça para Remus, que pega a bandeja de Lily nas mãos e começa a conduzi-la na direção de Alice. Lily rola os olhos para as costas do amigo, sempre superprotetor, mas não hesita em segui-lo. Alice está de mãos dadas com um homem que parece ser um pouco mais velho que ela, também de traços asiáticos, embora Lily não consiga identificá-los muito bem.

— Frank, essa é a Lily — Alice diz, em sua voz musical, assim que Lily e Remus aproximam-se da mesa. — Ela é a Resident Assistant do meu andar. E esse é o Remus, amigo dela. Gente, esse é o Frank, meu namorado.

Frank abre um sorriso tímido e estende a mão para os dois. Lily e Remus cumprimentam-no de forma amigável, sentando-se de frente para o casal.

— Frank é de Singapura — começa Alice, numa tentativa de quebrar o gelo.

— Ah, que legal! — exclama Lily, verdadeiramente impressionada. — Eu sou de Surrey — continua, em tom autodepreciativo, arrancando uma risadinha de Alice. — Você tá estudando o quê, Frank?

— Economia.

— Eu faço medicina.

— Estou estudando História da Arte — contribui Alice, em seguida virando-se para Remus. — E você?

Em sua visão majoritariamente acinzentada, Lily consegue ver as bochechas de Remus escurecendo debaixo das dolorosas luzes artificiais do refeitório. Ele está corando, e Lily só sorri suavemente. Ouvir Rem falar sobre sua pesquisa — ainda que Lily entenda muito pouco — é sempre fascinante, porque ele é daquele tipo de pessoa que consegue falar apaixonadamente sobre um mesmo assunto por horas, cativando toda a audiência.

— Estudos Clássicos.

— O quê isso quer dizer? — pergunta Frank, reclinando-se mais na cadeira de plástico e soltando a mão de Alice apenas por tempo suficiente para ajeitar-se mais confortavelmente.

Remus limpa a garganta e Lily morde os lábios para impedir que um sorriso enorme escape de seu rosto. Lá vamos nós...

Rem passa os próximos dez minutos falando sobre androginia e representação queer n’A Ilíada. Já tendo ouvido essa conversa muitas vezes antes, Lily desliga um pouco a voz do melhor amigo, deixando-a tocar como barulho de fundo, e bebe um gole generoso do suco de laranja que pegara.

Lily não percebera como estava faminta até ter comida na sua frente; ela devora seu almoço tardio sem dó, sem se preocupar se está sendo observada no refeitório cheio de gente. Ela precisa de suas forças por conta da reunião de orientação que ocorrerá mais tarde, e também precisa estar de estômago cheio para tomar um analgésico para sua insuportável dor de cabeça. Lily não tem certeza da onde vem a dor: se é resultado da noite de bebedeira, do estresse de ter que lidar com Snape, ou se pelas corres disformes e dolorosas que volta e meia entram em seu campo de visão.

Avaliando sua situação, Lily acha melhor não pensar no provável processo de colorização acontecendo em si mesma. Ela tem maiores preocupações no momento, isso é certo, e ter que ficar dando piruetas cerebrais para tentar descobrir quem será sua alma gêmea não está na sua lista de prioridades. No momento, Lily preocupa-se é com a carga horária extra que empreenderá por conta do seu projeto de pesquisa que foi aprovado recentemente, e com o fato de que sua irmã está demorando muito mais que o normal para responder suas mensagens.

Falando nisso... Lily tira o celular do bolso e abre o app de mensagens. Petunia nem esteve online hoje, ao que parece, ou ela desligou a função que mostra há quanto tempo acessou a Internet. Do jeito que as coisas estão, Lily arrisca que a segunda alternativa é mais provável. Ela gostaria que Petunia fosse mais empática e se preocupasse mais com os outros, mas ela sofre de uma síndrome de filha única mimada completamente incompatível com o fato de ter uma irmã mais nova. Ela nunca aprovou as escolhas de Lily, e Lily sempre sentiu-se culpada por isso, embora seu lado racional saiba que não faz sentido abrigar essa culpa toda em seu peito.

Ela ataca o pudim que pegara de sobremesa com uma violência que não é condizente com a textura do doce, e deixa Remus e Alice conduzirem a conversa da mesa, sendo uma participante educada, mas não proativa.

Quando terminam de comer, eles deixam as bandejas no local de coleta e apresentam o resto do prédio para Frank e Alice. Há uma cafeteria, um salão de beleza, uma pequena farmácia e uma loja de conveniência, além de espaços de convivência e uma sala de estudos aberta apenas aos estudantes de Hogwarts. Alice arregala os olhos para tudo, surpresa com tendo tudo tão pertinho.

— É para que não precisemos sair do prédio na semana de provas — esclarece Remus, em tom de chacota, embora esteja sendo completamente sincero. Muitos dos residentes trancam-se no prédio e fazem uso de suas salas de estudo quando chega a temida época de provas. Lily, por outro lado, prefere o prédio das Biológicas, com sua biblioteca especializada e laboratórios de pesquisa, e só volta para o dormitório nessas épocas para, bem, dormir.

— Lupin! — exclama uma voz masculina desconhecida, um pouco atrás do grupinho. Lily, que tem um PhD em Remus Lupin, sabe que a expressão cuidadosamente neutra no rosto do amigo não é nada natural, e ergue uma sobrancelha em pergunta muda. Rem só vira em seus calcanhares na direção da voz, e Lily faz o mesmo. — Indo pra orientação?

Lily pisca algumas vezes diante do dono da voz. Ela desconfia que, se procurar a expressão punk rock no dicionário, encontrará a foto deste cara, com um sorriso desleixado no rosto de feições marcantes. Embora Lily só veja em preto e branco — e vermelho, um canto de seu cérebro adiciona, desnecessariamente —, ela sabe instintivamente que ele está vestido de negro da cabeça aos pés. A blusa de uma banda que ela não conhece — The Marauders —, os jeans largos e as botas de motoqueiro... se não for tudo preto, a estética dele não seria coerente. Porque, é óbvio, essa é uma pessoa que se preocupa com a estética: os cabelos volumosos presos num coque na nuca, as linhas de uma tatuagem saindo por onde a manga da camiseta termina, a barba minuciosamente por fazer, o fato de que ele vê Lily encarando-o e pisca-lhe um olho.

Ela ergue ainda mais a sobrancelha que já estava fazendo uma pergunta e passa agora a fazer um interrogatório.

— Black. — Rem cumprimenta com um aceno de cabeça, cruzando os braços despreocupadamente na frente do peito, numa postura relaxada. Mas o rosto de Remus continua perigosamente indiferente, e Lily tem vontade de pular em seu pescoço para entender o quê está acontecendo. Mas, para o observador casual, não há nada de errado com Remus, e Lily só estaria sendo ligeiramente louca se cedesse à sua vontade. — Onde está o seu dimon?

O tal de Black ri baixinho diante da referência, e Lily inconscientemente se impressiona por ele saber do quê Remus está falando.

— James já está no auditório. Eu também já estava indo. Posso acompanhar vocês?

Remus concorda e logo apresenta Black — Sirius Black, e que espécie de nome é esse? — ao resto do grupo. Alice se despede de Frank, e os quatro restantes voltam para dentro do dormitório. Lily não aprende muita coisa sobre Black nos poucos minutos que passam juntos — só que ele é Engenheiro Mecânico, e está no andar de Remus. E que ele tem um amigo chamado James, aparentemente. Remus e Lily deixam Alice e Sirius procurarem lugares para se sentarem no meio da plateia quando vão para os bastidores, onde todos os RAs estão reunidos juntamente com a supervisora da Grifinória, a Professora McGonagall.

Só faltavam Remus e Lily chegarem para que ela repassasse os últimos detalhes sobre a reunião de orientação. Eram tópicos básicos, que Lily já sabia de cor por ser uma RA há anos: saídas de incêndio, toques de recolher, regras de conduta, sistema de méritos e deméritos. Remus e Lily, por serem os RAs mais antigos, são os responsáveis por responder as dúvidas dos alunos e são os que conduzem a reunião, juntamente com a Professora McGonagall. Depois que tudo foi esclarecido e a Professora McGonagall certificou-se que todos saibam seus papéis, eles vão para o tablado, da onde têm uma vista privilegiada da multidão que habita os dormitórios da Grifinória.

Lily com frequência esquece que todas essas pessoas estão sob sua responsabilidade, e, em momentos como esse, em que é forçada e se lembrar, fica extremamente desconfortável e consciente de cada mísero detalhe sobre si mesma. Ela respira fundo quando percebe que seu coração ameaça sair do peito, sentimento agravado pela percepção súbita que as cadeiras estofadas do auditório estão coloridas, e procura a mão de Remus com a sua. Ele entrelaça os dedos nos dela e dá um apertão solidário. Por sorte, quem começa a falar é a Professora McGonagall, com seu blábláblá burocrático e minucioso, ligeiramente letárgico. Lily consegue ver várias pessoas escondendo bocejos ou ocupadas com seus celulares enquanto a professora fala.

Quando ela termina, deseja a todos um bom ano letivo e se retira. Ela faz isso porque frequentemente os alunos possuem perguntas que nunca fariam na frente de uma professora, e por isso Remus e Lily estão lá. Eles se apresentam, com sorrisos e acenos, e recebem algumas perguntas da plateia. Mas alguma coisa começa a dar errado com o sistema de áudio: os microfones falham, e então param de funcionar. Lily sente os cabelos em sua nuca se arrepiarem, numa explosão de intuição, e olha para cima...

... bem a tempo de ver os baldes de tinta sendo despejados em cima de si mesma e de Remus. Ela consegue fechar a boca e os olhos, mas a coisa gosmenta lhe cobre cada centímetro de pele, roupa e cabelos. E, por cima disso tudo, o hino da Grifinória, distorcido em arranjos desdenhosos e nada harmônicos. O auditório explode em vozes revoltadas e algumas risadas, e Lily logo sente mãos conduzindo-a para fora do tablado. Alguém manda que ela permaneça com os olhos fechados e despeja água sobre seu rosto. Lily tosse, surpresa, mas em seguida consegue abrir os olhos e reconhece o rosto preocupado de Alice bem a sua frente.

— Meu Deus, Lily! — ela estrila, horrorizada. — Você está bem?

Lily só consegue acenar com a cabeça.

— Fecha os olhos de novo — Alice pede, alcançando uma garrafinha d’água que alguém lhe estende. Lily obedece sem pestanejar. — Tinta verde e cinza ainda por cima! — continua Alice, lavando o rosto de Lily de novo. — Quem faria uma coisa dessas?

Alice não vê, mas Lily cerrou os punhos à menção das cores do dormitório inimigo. Sonserina. Sei bem quem faria uma coisa dessas.


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Notas finais do capítulo

espero que vocês tenham gostado! comentários são amor! boas festas, todo mundo ;)



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