SADIE

Certeza que eu nunca tinha visto aquele barco tão cheio de gente. Um incrível grupo de onze pessoas, contando comigo, havia deixado a Base Del Quinto Sol para trás para usar nosso barco como carona ou para nos acompanhar até Londres. Deixaríamos Carter em Nova Iorque, Victoria, Micaela e um outro garoto que se apresentou como Eduardo na cidade francesa de Nantes, e seguiríamos eu, Anúbis, Will, Nico, Sam, Blitzen, Hearthstone e Mestiço para Londres.

Como tínhamos esperado Carter chegar da Cidade do México depois de ter ido em busca aparentemente do Nomo mexicano, a tarde já estava quase no fim quando chegamos na praia onde o barco estava. Se bem que, independente do que meu irmão foi fazer de manhã cedinho, eu aproveitei muito bem as horas da manhã no meu quarto. Mas, agora prestes a partir, ao ver aquele mar bonito do México eu bem pensava em como queria aproveitar aquele mar azul e cristalino para uma boa e merecida férias, mas quem sabe depois de tudo isso? 

Mas enfim, com todos dentro do barco, zarpamos rumo à Nova Iorque primeiro para poder deixar Carter por lá. Todos já estavam se acomodando em algum canto do barco, Victoria e Micaela conversavam animadamente em espanhol enquanto o tal Eduardo ficava simplesmente calado todo anti-social com cara de emburrado mexendo no celular, Hearthstone, Blitzen e Sam pareciam tentar ensinar Will algumas palavras em Linguagem de Sinais, Mestiço estava tirando uma soneca e, para minha surpresa, Nico e Anúbis estavam no cantinho mais isolado do barco conversando entre si. 

Quanto a Carter, a pessoa que eu queria conversar primeiro, ele estava excluído de todos parado na parte da frente do navio parecendo estar pensativo. Não sei se foi a ida até o nomo mexicano, a situação atual ou a ansiedade de ter que resolver a papelada da universidade (ou todas as opções acima) que estava deixando meu irmão com aquela cara que ele fazia quando estava expremendo cada neurônio.

— Hey. - eu disse chamando a atenção dele ao me apoiar na amurada do navio logo ao seu lado - Nem me contou como foi lá no nomo mexicano. Chegou a achar?

— Até que sim. - respondeu ele - Achei bem bonito o lugar inclusive, apesar de que estava bem vazio, o que deixava ele triste.

— Não conseguiu falar com ninguém então? - perguntei.

— Consegui sim. - disse - Tinha um garoto lá… só ele, mais ninguém. Disse que a mãe foi pro Sudão meses atrás para ajudar o Tio Amós. Ele disse muito do que a gente já sabe… que eles não querem entrar em contato para ninguém descobrir onde estão escondidos no Sudão. As coisas parecem estar bem ruim no Egito, mas um ruim que está disfarçado… não pilares de luz rompendo o céu e monstros juntando exércitos aos pés de templos e pirâmides, como aqui. Ou melhor… não tenho certeza da parte do exército aos pés de pirâmides… me parece bem provável agora que falei em voz alta.

— Esse menino sabia dizer se o Tio Amós tá bem? - perguntei soltando um suspiro preocupada enquanto notava, com o canto do olho, que a menção à situação no Egito parece ter atraído a atenção de Anúbis que, mesmo de longe, parecia prestar atenção em cada palavra de nossa conversa e apesar de a distância que ele estava, ao menos na minha concepção mortal, parecer grande demais para ele conseguir ouvir o que eu e Carter falávamos, eu tinha 99,9% de certeza que ele estava ouvindo cada mínima palavra.

— Ele não soube me dizer muito quanto a isso… - resmungou Carter suspirando talvez tão preocupado quanto eu - O último contato que ele teve com a mãe foi só duas semanas mais recente do que o que tivemos com nosso tio. Mas ele disse que, quando fôssemos no Egito resolver as coisas… eles vão sair do Sudão para nos ajudar pois estão de olho nas coisas. Ele também mencionou que eles tinham planos de, caso o Sudão não fosse mais seguro, ir para Siwa, no Egito, ou até na Líbia.

— Sudão é mais prático então… - eu disse pensando um pouco - Ambos os outros casos tem que cruzar o Saara né? Ao menos o Nilo passa no Sudão também.

Carter confirmou com a cabeça e eu fiquei ainda pensando sobre toda aquela situação. Não sei se Carter compartilhava da minha sensação, talvez sim por causa do jeito que ele falou, mas eu quase podia sentir (e também fazia muito sentido) que o palco da batalha final dessa bagunça toda seria o Egito. Mas, claro, primeiro a gente tinha que conseguir chegar tão longe.

Ficamos em silêncio por alguns segundos mas eu podia sentir que ele queria falar alguma coisa. Olhei pra ele com o canto do olho e notei que ele mordia o lábio e logo suspirava pesadamente como se estivesse frustrado com alguma coisa. E obviamente a minha curiosidade não aguentou isso.

— O que foi? - perguntei.

— Nada… - desviou-se ele.

— Uhum… fala logo o que é.

— Não é nada! - insistiu ele e eu só fiquei o encarando tentando silenciosamente botar pressão para ele falar, mas ele só suspirou - Vamos mudar de assunto… falar de coisas não importantes.

— Tipo? - perguntei rindo de leve - Se você viu algum filme interessante? Ou o que achou do álbum da Adele?

— Só conheço uma música da Adele e a última coisa que eu vi foi um documentário, serve? - perguntou ele rindo.

— A primeira declaração é claramente um crime, mas vou deixar você passar por essa porque é meu irmão. - declarei.

— Ufa. - disse ele rindo mas logo parando, criando uns segundos de silêncio novamente antes de recomeçar a falar aparentando estar meio sem graça - Então... hum… dormiu bem de ontem pra hoje?

Eu sabia. Sabia que tinha uma chance de ele tentar tocar no que aconteceu na noite passada. Porquê sim, Anúbis tinha me contado que Carter tinha aberto a porta do quarto e viu a gente simplesmente dormindo juntos. Se antes eu tinha alguma dúvida de se Anúbis estava ouvindo nossa conversa, agora estava mais ainda com toda certeza. Um olhar rápido pra ele comprovou isso, pois vi ele desviando o olhar com o rosto todo vermelho. E eu aproveitei essa olhada para ele para tentar respirar fundo para meu rosto não ficar vermelho também e acabar entregando… bem… o que rolou essa manhã. Eu disse que tinha aproveitado bem a manhã. 

— Dormi feito uma pedra… Toda aquela luta em Teotihuacan me deixou bem cansada. - menti parcialmente, afinal estava de fato só dormindo feito uma pedra na hora que Carter apareceu, tentando ficar o mais inexpressiva possível - E eu já falei pra bater na porta embora admito ter parte da culpa por ter esquecido de trancar.

— É só que… eu me preocupo… - desabafou ele suspirando - Sei que você já tá com 16 anos e tudo mais, mas…

— Às vezes você fala como se fosse 10 anos mais velho que eu, sabia? - resmunguei - Tá que oh.. ter 18 anos abre todo o leque de coisas que um adulto pode fazer, mas confie um pouco mais em mim, por favor. Eu sei me cuidar. Não precisa ser tão super protetor.

Eu suspirei e, antes que ele conseguisse arrumar qualquer coisa de mim e eu acabar me entregando, virei as costas pra ele e fui andando para onde os outros estavam. Felizmente, ele não me seguiu e agora de costas pra ele, eu podia relaxar e… ficar vermelha e com a cabeça cheia de coisas que não eram exatamente uma boa hora para lembrar.

— Hey. - disse Will do nada me puxando bruscamente de meus pensamentos e interrompendo meu caminho até Anúbis - Parece que o meu gótico e o seu gótico tão virando amigos.

— Acho que ambos tão mais pra um emo-gótico leve. - comentou Blitzen - Mas pontos pro Nico por ter alguma peça de roupa que não é preta. 

— Tô sinceramente bem surpresa dessa amizade existir… - admiti olhando para os dois conversando normalmente e finalmente conseguindo trocar minha mente de foco - Ele não conseguiu se misturar tanto no Nomo por… bem… motivos óbvios… ser um deus anti social solitário de 5000 anos que alguns ficam com medo de irritar e virar pó… como se ele fosse tão mal a ponto de fazer isso por qualquer coisinha pra começo de conversa… mas admito que ele consegue ser mal humorado.

— Tira toda a parte de deus e troca por filho de Hades e troca também os 5000 anos por menos que vira o Nico. - disse Will suspirando mas logo olhando para Nico, que conversava alguma coisa com Anúbis, com um sorriso orgulhoso.

— Fazer amigos pode ser complicado mesmo. - disse Sam - Que bom que os dois estão se dando bem então.

Infelizmente eu não sei Linguagens de Sinais para poder entender o que Hearthstone disse logo em seguida. Assim, tanto eu quanto Will olhamos para Blitzen em busca de uma tradução.

— Ele disse que parece que a conversa lá tá interessante, ao menos pelo o que ele conseguiu ler dos lábios… - explicou Blitzen parecendo confuso de se tinha entendido certo - Alguma coisa de Hades e… Revolução Francesa?

Era uma combinação de assuntos estranha? Era. Mas foi o suficiente para fazer Will e Sam começarem a andar em direção aos dois, provavelmente curioso por entender mais da conversa. Eu, Blitzen e Hearthstone acabamos seguindo ele e, quanto Anúbis e Nico viram nós cinco indo de repente na direção deles, pararam de conversar e ficaram nos encarando tentando entender o motivo.

— Que foi? - perguntou Nico.

— O papo parecia interessante e viemos nos juntar. - disse Will se sentando logo ao lado dele enquanto eu fazia o mesmo com Anúbis fazendo então Blitzen e Hearthstone fecharem o círculo de conversas - Do que estão conversando?

— Ele tava me falando quando conheceu meu pai. - disse Nico.

— Na Revolução Francesa? - perguntou Blitzen estranhando talvez a data tão depois das eras de ouro tanto da Grécia, como do Egito.

— Não. - corrigiu Anúbis - Mencionei a Revolução Francesa porque Hades me carregou para ver um cortejo fúnebre de um comandante francês durante ela. Nos conhecemos durante o reinado de Akhenaton.

— Estavam ouvindo a conversa... - acusou Nico - E nem sequer ouviram certo.

— Hearthstone pediu desculpas e disse que foi sem querer… - disse Blitzen.

Era muito difícil ficar ali do lado de Anúbis e não pensar em… bem… a manhã agitada. Tínhamos conversado bastante depois, mas sentia que precisávamos conversar mais, porque eu tinha 100% de certeza que ele estava se sentindo culpado e com peso na consciência como se tivesse feito algo errado (e seguindo o padrão de pensamento da família imortal e egocêntrica dele que não gosta de se misturar com mortais, ele realmente fez). Mas admito que a culpa nisso é provavelmente pelo menos 60% minha.

— Uh… vocês praticamente foram pro Les Miserables da vida real. - disse Will.

— Les-o-quê? - perguntou Nico.

— Um musical francês que se passa na Revolução Francesa. - explicou Will - Podemos assistir a versão com o Wolverine quando voltarmos pro acampamento.

— Não obrigado. - respondeu Nico e eu ri de leve, também não aceitaria um musical tão facilmente assim.

— Conheceu alguém importante dessa época? - perguntou Sam - Tipo… sei lá… Napoleão?

— Não cheguei a falar com ele… mas vi bem de perto. Conta? - perguntou Anúbis.

— Eu acho que conta. - eu disse dando de ombros.

— Ele era mesmo baixinho?! - perguntou Will claramente super curioso.

— Ahm.. um pouco. - respondeu Anúbis parando para pensar - Lembro que eu era bem mais alto que ele… acho que ele devia ter… hum… talvez algo entre a altura da Hazel e do Nico?

— Quão estranho é parar pra pensar que você tava vivo em praticamente 95% do conteúdo do meu livro de história? - perguntou Will rindo - Só perdeu a idade da pedra… 

— Ai nem me faça pensar nisso… - pedi, o que fez Will rir mais ainda - É bem estranho.

— Desculpe… - disse Anúbis, não Will, enquanto olhava para mim com um sorriso levemente torto.

— Pra quê pedir desculpa? Não é como se tivesse algum poder de escolha em que século decidir nascer. - eu disse.

— Tá, como viagens são entediantes mesmo… Responde rápido ou pula a pergunta. - disse Will empolgado aparentemente criando um jogo pra passar o nosso tédio - Melhor faraó?

— Ahm… difícil... - disse Anúbis parando para pensar.

— Não vale parar pra pensar! Fala o primeiro que pensar! - insisti entrando na brincadeira também.

— Hatshepsut… - respondeu ele e sinceramente gostei da escolha…o pouco que lembrava de Hatshepsut era que foi uma grande faraó mulher.

— Pior faraó. - disse Blitzen traduzindo de Hearthstone.

— Akhenaton… talvez… - disse Anúbis mencionando o faraó herege e monoteísta, fazia sentido os deuses egípcios não gostarem muito do cara. Mas não tinha tempo para elaborar, já estávamos indo para as próximas perguntas.

— O que aconteceu com o nariz da esfinge? - perguntei. 

— Eu… na verdade... não sei… - admitiu ele parecendo meio envergonhado de não saber alguma coisa sobre algo tão “Egito Antigo” quanto a esfinge. Inclusive, a declaração me deixou surpresa também.

— Quê? Sério?! - perguntei surpresa.

— Eu dormi e quando acordei ela não tinha mais nariz… - explicou dando de ombros e resumindo o que provavelmente tinha muita história por trás pelo simples fato que ele não simplesmente “dormia” - Thoth acha que ou só simplesmente caiu ou um Sheik do Califado mandou queb-

— Próxima! - disse Sam interrompendo ele - Onde está a tumba de Cleópatra?

— Segredo. Próxima. - respondeu Anúbis prontamente - E nem perguntem a de Alexandre ou mais ninguém.

— Naquela hora em Teotihuacan… - mencionei olhando para Nico e me lembrando do momento que Anúbis, Nico e Hazel começaram a ficar muito velhos - Não entendi direito… porque você e Hazel ficaram velhos.

— Longa história… - bufou Nico - Mas se pensou nisso pra querer me colocar nesse interrogatório…

— Uma pequena parte até que foi… - admiti.

— Me tire dessa então, porque não tem nada de bom ou interessante pra desenterrar do meu passado… - disse ele suspirando cansadamente.

— Foi mal… - eu disse ao notar que ele parecia não ter gostado que eu tenha tocado no assunto.

— Tudo bem, você não sabia. - disse Nico dando de ombros mas pelos olhos dele, eu diria que não estava tudo tão bem assim. Mas logo ele foi olhando para Anúbis pronto para mudar o assunto - Além de Napoleão e de provavelmente todos os faraós possíveis, conheceu ou viu mais alguém histórico importante? Valendo conhecer no submundo.

— Ahm… Imhotep, que foi o arquiteto da primeira pirâmide. - começou a listar Anúbis - Júlio César, Beethoven…

— BEETHOVEN!? - exclamei chocada ao mesmo tempo que Will e Sam, essa era novidade até pra mim. 

— E o que exatamente aconteceu com a Biblioteca de Alexandria? - perguntou Sam.

E bem, ficamos irritando o coitado do Anúbis por mais alguns minutos. Eventualmente, a conversa tão nerd e histórica acabou atraindo o meu irmão também. Foi bom poder nos distrair um pouco de todos os problemas mesmo que eu ainda visse meu irmão claramente preocupado com o tanto de coisas em seus ombros, Sam olhando para o horizonte preocupada com aquele bicho feio e horripilante talvez estar seguindo ela novamente, Nico aparentar um pouco cansado e… enfim… ninguém estava 100% calmo. 

Ainda queria pedir desculpas direito para o Nico por ter sido talvez meio enxerida e conversar a sós de novo com Anúbis. Mas, acho que daria para chamar aquele dia de uma vitória ainda assim.