Primavera sem flores escrita por Megitsune


Capítulo 4
4 - Quase perfeito - parte 1




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O céu de Tóquio era tão vazio de estrelas quanto os gostos de Sasuke. Ele era um rapaz com mais desgostos do que sonhos. Um rapaz que quando decidia algo, muitas vezes, sentia um compasso diferente no peito, pois no fundo sabia estar mentindo para si mesmo. Como agora.

Sentado em frente aos pais na sala de jantar, os olhos vagueavam dos hashis para a tigela fumegante de sopa de missô(1). A comida estaria deliciosa, tinha certeza disso, mas ele estava sem fome. Desde que foi ao cinema algo passou a incomodá-lo e piorou quando deixou Sakura em casa. Sasuke tentava compreender o que poderia ser capaz de tirá-lo do sério a troco de nada, o dia tinha sido ótimo para ele terminar de mau humor.

— Algo errado, Sasuke? — a mãe de Sasuke, Mikoto, perguntou, acompanhada de um olhar furtivo de seu marido, Fugaku.

Ela tinha motivo para se preocupar, o filho não havia encostado na comida.

— Não, é que eu comi demais no cinema — mentiu. Uma pipoca pequena aliviava a fome por pouco tempo.

— Por isso fiz sopa. Imaginei que iria comer besteira com os seus amigos — Mikoto repreendeu sem estar brava. Ela também contava com a possibilidade de o filho não querer jantar — O filme foi bom?

— Sim.

Ele queria dizer mais, confessar que algo no passeio o incomodou, mas não perto do pai. Fugaku fazia o tipo de homem que analisava e julgava em silêncio. Ele nunca precisou usar palavras para ensinar aos filhos que os Uchihas tinham um orgulho a zelar e que demonstrar fraqueza era um erro imperdoável.

Sasuke sabia todos os ensinamentos não ditos do clã, só que ele mesmo era fraco. Ele em si era cheio de inseguranças, receios, sentimentos que o corroíam por dentro, tornando por vezes quase impossível manter uma máscara de frieza e imparcialidade diante dos fatos.

Quantas vezes ele desejou ser igual o irmão mais velho, Itachi. Um mestre da resiliência, bom em tudo o que fazia, motivo de orgulho para o pai. Sasuke podia correr o quanto quisesse na longa estrada da vida - sabia que nunca seria um décimo do que o irmão era. Havia um ditado antigo no clã dizendo que o ódio era o que movia um Uchiha. Podia até ser verdade, pois faltava nele um combustível potente capaz de fazê-lo ultrapassar Itachi, mas ele era incapaz de odiar quem mais amava.

— Eu vou para o meu quarto — Sasuke anunciou, levantando-se da confortável almofada em que estava sentado. A tigela de sopa continuou intocada na baixa mesa de madeira.

Mikoto não deixou de transparecer preocupação com o caçula, enquanto Fugaku permaneceu em silêncio. Sasuke às vezes pensava que havia puxado demais a mãe. Tanto na aparência quanto nas fraquezas, se ao menos ele tivesse puxado os irmãos dela, Madara e Izuna, as coisas seriam diferentes.

Sasuke seguiu por um pequeno corredor estreito até o seu quarto. Toda a casa seguia uma decoração minimalista, tanto por falta de espaço quanto por falta de vontade dos donos. Menos era mais em casas japonesas, mesmo quando seguiam um estilo moderno. O moreno sentia falta da casa tradicional que tiveram em Kyoto, era espaçosa e tinha uma bela vista para um amplo jardim de ameixeiras. Pena que o pai conseguiu trabalho em Tóquio; pior, teve um desentendimento com o cunhado.

Claro, porque policias corretos nunca entravam em acordo com um chefe yakuza. Acabaram tendo de se mudar para uma casa menor e moderna em Tóquio. Sasuke não gostava da cidade, mas o bairro tinha seus pontos positivos, era tranquilo e os pais deixaram para ele o quarto que tinha vista para um pequeno jardim de arbustos e bambus. Não chegava aos pés do exótico tapete branco e do cheiro adocicado que as ameixeiras deixavam na primavera.

Agora, toda vez que abria a janela, precisava se contentar com o som da fonte, cuja água caía próxima a um ishidoro(2) de pedra. A luz que emanava de lá era o que chamava a atenção de Sasuke toda noite antes de dormir, como se o espírito do fogo estivesse contido em uma pequena lanterna decorativa. Se fosse verdade, há muito ele teria lhe concedido o desejo de voltar para Kyoto.

Aquela noite não seria diferente. Sasuke abriu a janela do quarto e ficou a observar o jardim. Ele tinha lição de casa para fazer, mas podia deixá-la para depois. Tirou o celular do bolso. A tela de bloqueio exibia o símbolo do clã Uchiha, o leque que controla o fogo. Deslizou o dedo pela tela e a imagem foi trocada pela de quando Sakura e Naruto foram almoçar na casa dele, pois passaram a tarde inteira fazendo um trabalho de história sobre a era Meiji.

Aconteceu de Itachi ter voltado de uma longa missão como agente no dia junto do primo Shisui, Fugaku ter tirado de folga no trabalho para passar o tempo com a família e Sasuke não contar com nada disso. A casa ficou cheia, para não dizer lotada. O resultado disso foi uma sala de jantar impenetrável, com todos se acotovelando em busca de um pouco de espaço para mover os braços e sustentar os hashis.

Só que havia algo que a foto mostrava e só depois de uma semana Sasuke foi perceber. Todos estavam felizes. No lado esquerdo da mesa estavam Mikoto, Fugaku e Sakura, o pai exibia um sorriso discreto e Sasuke nunca tinha visto ele a sorrir antes. Mikoto estava resplandecente como sempre, com seus longos cabelos negros brilhando sob a fraca luz que vinha da janela e o sorriso de quem há muito não se divertia.

Do lado esquerdo estava Naruto, Itachi e Shisui. Era digno de nota o fato do loiro ser o único a comer na hora da foto. A tigela de lámen tampava parte do rosto, mas não o olhar de quem havia acabado de ser pego em algo errado.

Sakura sorria divertida, mas o olhar denunciava que havia visto a falta de modos do amigo. Itachi tinha um sorriso discreto enquanto Shisui era mais aberto ao fato de que estava feliz. Sasuke adorava aquela foto. Mostravam a ele que o amor por vezes valia mais do que o ódio.

Ele e Sakura não eram namorados na época. Sasuke sempre soube que a amiga gostava dele, assim como todo o restante da escola ou talvez da cidade. Considerava irritante ir a algum lugar e ficar ouvindo o burburinho de garotas fofocando sobre a beleza dele.

Só que ele também sabia que Naruto gostava dela e que ela, mesmo sabendo desse fato, usou o loiro como uma escada para se aproximar dele. Poderia considerar Sakura vil por isso? Poderia, mas ele seria hipócrita caso dissesse que não fez o mesmo. A garota, assim como ele, era jovem e como Itachi dizia, os jovens fazem muitas besteiras das quais se arrependiam mais tarde.

Fosse ele se arrepender ou não, a companhia da namorada era agradável. Sakura tinha um perfume doce, delicado e seus cabelos róseos o lembravam pétalas de flores. Ela era como um feixe de luz nos dias escuros na vida de Sasuke, porém em nada se comparava com o sol que expulsava a escuridão por completo. O sol que apenas Naruto conseguia ser.

A ida ao cinema teve tudo para dar certo. Todas as peças estavam em seu devido lugar, exceto por uma que apareceu de última hora: Gaara. Nada contra o guaxinim sem sobrancelhas. A presença dele poderia ter passado despercebida, afinal ele falou pouco, não interviu em nada... Ou interviu?

Abriu a galeria do celular e observou a foto que tirou de Naruto mais cedo. A cara dele estava engraçada, óbvio, mas havia um elemento extra ali, bem no fundo, com as mãos no bolso e o olhar perdido na direção do loiro. Sasuke ampliou a foto, o suficiente para perceber as faces rubras do ruivo. Havia acontecido algo dentro da sala daquele maldito cinema que agora Sasuke queria saber.

Ele não era próximo o suficiente de Gaara para conhecê-lo. Os dois haviam tido seus desentendimentos quatro anos atrás, período em que o ruivo queria matar quem cruzasse seu caminho. O ruivo dissera na época que os dois eram parecidos e por isso queria acabar com ele, para reafirmar a própria existência. Sasuke teria achado um prazer acabar com a raça de Gaara, já não aguentava mais o rapaz machucando os colegas e depois agindo como se aquilo fosse algo natural.

Os irmãos do ruivo, Temari e Kankuro eram uns frouxos, tinham medo do próprio irmão, porém o amavam o suficiente para não deixá-lo sozinho na escola. A pior parte de tudo era que as notas de Gaara eram tão altas que chegavam a superar as dele. Só a ideia de ter alguém melhor do que ele em algo fazia Sasuke cerrar os punhos de raiva.

Realmente teria sido um prazer mostrar para o ruivo quem era o melhor, mas Naruto não permitiu. O loiro estendeu a mão para Gaara e tentou convencê-lo a mudar, porque eram parecidos - órfãos e odiados na infância, pessoas na margem da sociedade que lutavam para ter um lugar nela.

As palavras de Naruto não tiveram efeito no início e Gaara jurou matar o loiro se continuasse a se meter onde não era chamado. Sasuke não soube do caso até o fim da tarde, quando se se meteu em uma briga com o Sabaku nos portões da escola. O resultado para o Uchiha foi uma série de hematomas no torço e nos braços, o que rendeu a ida de Fugaku à diretoria no dia seguinte. Para Gaara, um hematoma na bochecha e outro feio nas costelas. Ele foi suspenso por uma semana da escola, tempo suficiente para a fofoca se espalhar e as feridas pararem de doer.

Naruto quando ficou sabendo não fez nada. O rapaz que sempre se colocava na frente na hora de proteger os amigos permaneceu em silêncio durante os dias que se seguiram. Sasuke sabia que o amigo ficou com medo de Gaara e, pela primeira vez, sem saber o que fazer. Não havia como culpá-lo por agir assim. Eles tinham 12 anos e brigar de verdade era coisa de filme.

Até que veio a gota d’água. No fim da semana de suspensão de Gaara, o líder do clube de futebol, e faixa preta em artes marciais, Rock Lee, resolveu desafiar o Sabaku. A condição era que, caso ganhasse, o ruivo sairia da escola. Gaara não estava nem aí para a escola, já havia sido expulso de tantas outras que uma a mais no currículo não faria diferença. Ele queria sangue e isso Rock Lee ofereceu de bandeja.

A luta ocorreu nos arredores da cidade, onde a polícia pouco patrulhava, e terminou com Rock Lee indo para o hospital. Para um intercambista chinês, aquilo poderia acabar custando-lhe os seus estudos no país. Ele sabia disso, mas na hora em que a polícia o questionou sobre o ocorrido, disse ter sido emboscado por delinquentes. Em momento algum o nome de Gaara foi citado e Sasuke nunca entendeu o motivo.

Naruto que permanecia em silêncio, ao visitar o amigo no hospital, tomou uma decisão. Quando as aulas acabaram, ele abordou Gaara. Sasuke lembrava com detalhes do semblante do loiro, pois nunca o tinha visto tão sério. Haveria uma última luta, porém Naruto e Gaara não trocariam socos por ódio e, sim, para defender a própria razão de viver; tudo ou nada.

Era um mistério como o loiro havia vencido a luta. Ninguém viu quando os dois brigaram, mas souberam que algo aconteceu quando viram eles chegarem repletos de ferimentos no dia seguinte. Foi a partir daquele dia que o comportamento de Gaara mudou da água para o vinho. O ruivo passou a se importar com as pessoas, se esforçar para melhorar o ambiente à sua volta e ainda pediu desculpa a Rock Lee pelo que fez. Aliás, pediu desculpa a todos e na mesma semana tatuou com tinta vermelha o kanji “amor” na lateral direita da testa.

Se Gaara queria ser amigo do mundo, o problema era dele. O único incômodo para Sasuke era a forma como ele passou a olhar Naruto. E parecia que só o moreno percebia, sem querer aceitar. O Sabaku já mostrou ser instável, Naruto não precisava de amigos assim. Ninguém precisava.

Travou a tela e colocou o aparelho em cima da mesinha de cabeceira. Ficaria de olho em Naruto amanhã, já que ele iria comer no Ichiraku com Gaara e... Não, teria que adiar o plano. Droga, havia prometido sair com Sakura, pois seria o aniversário de namoro deles. O guaxinim ruivo estava com sorte, mas não por muito tempo.

Foi fazer a lição de casa e estudar. A relação de notas de todos os alunos da escola havia saído semana passada e ficar em segundo lugar feria o seu orgulho.

Amanhã seria um longo dia.


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Notas finais do capítulo

Notas:

1 - Sopa de missô: É um prato da culinária japonesa, normalmente preparado com soja, hondashi (é uma marca de tempero japonês, feito à base de peixe), tofu e cebolinha. Pode levar outros legumes e vegetais. Esse prato é consumido com frequência entre os japoneses.

2 - Ishidoro: Também conhecido como dai-doro, é uma lanterna de pedra utilizada para decorar jardins em casas e templos. Em sua forma completa, ele é é formado por 5 partes que representam os 5 elementos da cosmologia budista. A parte inferior tocando o chão, representa a terra; a próxima seção representa a água; a luz representa o fogo, e a parte superior da lanterna que lembra um chapéu e a bolinha voltada para o céu, representam o ar e o espírito (alma). Aqui vai o link de uma imagem para ilustrar: http://kyoto.asanoxn.com/places/higashiyama_nth/eikando/ishidoro-1_eikando.jpg

Por favor, comentem, favoritem, espalhem o amor. É muito importante para mim como autora. :3

Até o próximo capítulo!



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