O abismo em todos nós. escrita por Ninguém


Capítulo 2
Capítulo 2




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“O homem superior atribui a culpa a si próprio; o homem comum aos outros” – Confúcio

 

 

Semanas atrás.

O pátio central do colégio Os Quatro Gênios era um grande espaço com um pé de manga enorme plantado no meio onde a diretoria acreditou que seria saudável manter a árvore bem no meio da construção escolar e acabou que estavam certos pois o murinho que circundava a mangueira era bem disputado por todos os alunos que sentavam-se juntos para conversar, comer um lanche ou ficar de bobeira no intervalo ou no pequeno tempo antes do início das aulas, além de uma grande e gostosa sombra que se estendia por quase todo o espaço nas quentes tardes de verão.  

Alexandre com seu amigo Estevão, observavam a multidão de aluno de uniformes cinzas perambularem pra cá e pra lá com celulares, salgados, sucos e refrigerantes em mãos. A “hora do recreio” como dizia Estevão era um momento em que os dois podiam ficar misturados sem que ninguém percebesse o quão deslocados estavam.

 Popularidade com garotas ou outros amigos não era exatamente o ponto forte da dupla, talvez fosse a aparência magra demais de Estevão ou o rosto espinhento de Alexandre, provavelmente era porque nenhum dos dois frequentava academia, não eram esportistas e nem tinha dom para arte ou para os estudos de modo geral.

Alunos medianos.

Ainda sim Alexandre detinha de uma confiança sólida ganha por uma educação mimada por sua única avó que o criara desde os dois anos de idade após os pais morrerem num trágico acidente de avião que culminara em centenas de vítimas. Por culpa, amor ou afeto, dona Beatriz sempre deu o que Alexandre pedia, sempre o engrandeceu além de suas capacidades e isso resultou na confiança que extrapola os limites chegando ao ponto da mais ácida arrogância.

Logo, como alguém que foi ensinado a ter o que queria de um modo simples e fácil, a psique do rapaz acreditou veemente em suas habilidades pífias e como qualquer adolescente desmiolado o rapaz almejou as garotas mais bonitas do colégio, aquelas que mais chamavam atenção por sua beleza e status. O resultado foi um completo fracasso em igual modo simples e fácil, o pior é que Alexandre não havia percebido que não só elas não queriam nada com ele, como grande parte do corpo estudantil feminino.

Essa dúvida somada ao ego inflado e machucado deixou o adolescente perplexo e frustrado.

Agora em sua linha de visão, sentados nos degraus do bloco B do prédio, dois colegas  cercados por sorridentes garotas e vários outros caras que sempre esboçavam para o mundo que tinha mais dinheiro, felicidade e transas.

— Isso é ridículo! – vociferou Alexandre batendo nas coxas – como um cara com um nome tosco de “Aegon” pode ser tão... tão... ah, sei lá! Olha ali!

Estevão ajeitou os óculos enquanto mexia no celular, sem precisar olhar para a mesma cena que vira centenas de vezes, respondeu:

— Seus pais deram o nome por causa de um personagem daquela série antiga, com o reboot agora e a grande popularidade é de se esperar que as pessoas gostem. Embora tenho quase certeza de que é porque Aegon é alto, tem olhos azuis celestes, cabelos loiros e um rosto quadrado bem masculino sem qualquer imperfeição, ele faz parte do grupo de debate e já ganhou concursos para a escola, todo mundo que o conhece fala que ele é legal, simpático e divertido. E antes que você fale de Mike, é só olhar pro cara, ele tem um metro e noventa com uma pele negra impecável, os braços mais grossos que nossas duas pernas juntas e é o goleiro titular da seleção de futsal da escola.  

— E daí? Ninguém é tão perfeitinho assim. Eles são legais? Besteira, são metidos, nunca falaram conosco. – rebateu Alexandre com dor de cotovelo.

— Nossa classe tem cinquenta e seis alunos, ninguém fala com a gente.

Alexandre encara Estevão com os olhos fixos no celular.

— O que fizemos de errado?

— Um monte de coisa que não entendemos. Acho fazer piadas dos outros não é exatamente um motivo para sermos populares.

— Se está falando daquele vídeo da Carmem que eu compartilhei... já disse que eu não fiz nada demais, só gravei ela pegando um resto de salgado do lixo, admita, foi nojento vai!

— Aham – continuou Estevão mexendo no celular – e pegar a bombinha do Evandro e colocar a pimenta vermelha do refeitório nela também não foi nada demais.

Alexandre se levantou num salto.

— Como eu ia saber que ele era alérgico a pimenta?! Ah vá, foi até que foi engraçado ver o cara desabando no chão ficando roxo depois azul.

Estevão ergueu o olhar.

— Eu achei engraçado, algumas pessoas acharam também... só que não foi nada divertido depois que soubemos que ele entrou na UTI por uma semana por causa daquilo. Todo mundo soube que foi você e só não foi expulso por que sua avó é uma juíza aposentada que ameaçou processar o colégio por acusa-lo sem provas.

 Alexandre deu de ombros voltando a se sentar ao lado do colega.

— Tá bem, posso ter exagerado... mas foi sem querer. Jamais mataria alguém, droga, nem entrar numa briga eu quero, morro de medo de me machucar.

— Que másculo hein – respondeu o amigo com os olhos na tela do aparelho.

— Não sou hipócrita Estevão, afinal quem gosta de sentir dor?  

Alexandre continua observando Aegon com as garotas e os amigos, e sentiu uma estranha inveja, mesmo que não tenha a inteligência necessária para entender a razão dela.

***

Alguns dias depois.

Geralmente Alexandre volta para casa sendo buscado por sua avó de carro, mas em algumas ocasiões prefere ir de a pé tomando o metrô para ir com Estevão ao centro de jogos no shopping, entretanto nos últimos dias o amigo tem andado distante, quase não responde suas mensagens, e por mais de uma vez o deixou no vácuo no “zap”. Assim, logo após o sinal tocar ele foi falar com Estevão antes que o mesmo fosse embora, o convidando para jogarem. Em uma resposta evasiva e vaga, o amigo só disse que tinha algumas coisas pra fazer e que depois se falavam.

 Confuso e entristecido decidiu ir sozinho de a pé para o shopping quando ouviu alguém o chamando, ao se virar era Suzane, sua vizinha desde que ele se entende por gente. Para Aquiles, ela é uma garotinha magra sem peitos com cabelos castanhos sem graça e um rosto comum demais.

— Sua avó vem te buscar?

— Não, disse para ela que iria sozinho hoje. O que quer?

Suzane bufa em desânimo.

— Pra variar minha mãe bateu o carro pela terceira vez este ano e ainda não ficou pronto o conserto assim não vai vir me buscar, estou com preguiça de ir embora de a pé.

Alexandre arqueia as sobrancelhas.

— E isso é problema meu...?

Ela balança a cabeça.

— Vamos embora juntos, conversando faz o tempo passar mais rápido.

— Vou pro shopping.

— Não vai mais. Se me deixar sozinha digo pra sua avó que você me abandonou e ela vai te cortar a mesada de novo.

Alexandre trava a mandíbula, Suzane era tipo uma amiga indesejada que por força da chatice sempre esteve presente e acredita veemente que tem moral com o garoto, quando na verdade a simpática garota tem moral com a velha que cuida dele, e é claro, que controla os recursos financeiros de Alexandre.

— Tks. Ah tudo bem, não estou com tanto tesão pra jogar mesmo.

Os dois começam a lenta caminhada até em casa. Suzane percebe o humor do garoto e pergunta:

— O que foi? Parece mais desiludido que o normal.

— Estevão tá estranho, parece estar me evitando, sei lá.

Suzane reprimiu uma risada fazendo Alexandre ficar vermelho de raiva e vergonha.

— Desculpe – disse ela – pensei que você soubesse.

— O quê?

— Estevão está saindo com a Fernanda do primeiro ano A, é obvio que a primeira namorada vai ter prioridade perante o amigo odiado.

Alexandre abriu a boca para iniciar uma torrente de perguntas quando um detalhe da frase de Suzane chamou mais sua atenção do que o choque da informação.

— Amigo odiado? – pergunta ele.

Suzane o encara pendendo a cabeça, confusa.

— Sua reputação não é das melhores, você sabe né.

— Hã?

Agora a menina para de andar ficando com um rosto sem expressão, a testa fazendo uma linha fina enquanto os olhos encaravam Alexandre que realmente não entendia do que a vizinha de longa data estava falando.

— Ale – disse ela – você tem ideia que você pegou uma fama... meio ruim com todo o pessoal da nossa turma, do primeiro e do terceiro ano.

O olhar confuso do rapaz causou um sentimento de pena tão grande em Suzane que ela não sabia se deveria continuar falando ou deixar o assunto morrer ali, daí ela se lembrou que sua mãe sempre dizia. “ quando usar a cera quente para tirar os pelinhos, você puxa de uma vez, não vai tirando de pouquinho não, vai direto! O mesmo vale para uma conversa séria. Vá direto ao ponto” Vendo agora que Alexandre sequer fazia ideia do que estava acontecendo, ela acreditou que fosse melhor contar a verdade.

Ela tentou resumir a história, que era mais ou menos assim: Alexandre era um escroto.

Suzane prosseguiu com a explicação relatando  o caso do final do ano passado onde houve um escanda-lo quando três garotas de outro colégio surraram uma colega devido a uma questão amorosa, após baterem na moça tiraram as roupas dela e fizeram várias fotos postando nas redes sociais com o título “ puta arregaçada”. O título foi considerado cômico por alguns e o teor de violência e nudez gerou uma atenção colossal sendo as fotos compartilhadas por milhares de pessoas, onde vários grupos do colégio Os Quatro Gênios passaram adiante as imagens, alguns rindo, outros comentando horrores e algumas garotas até concordavam dizendo: “ foi atrás do homem da amiga, merece mesmo!”

— Sim, sim... – disse Alexandre interrompendo  – eu me lembro do caso, e daí?

— Depois disso Aegon e os amigos se irritaram de verdade com a atitude não só daquelas que fizeram tamanha covardia, como dos que ajudavam a expor para todo mundo a barbárie. Lembra que Aegon, Mike, Kevin e Douglas fizeram, ainda no primeiro ano, a campanha contra o bullying?

— Sim, sim. Lembro que o cara ganhou muita atenção com aquilo. Babaca certinho.

Suzane fechou a cara.

— Larga de ser idiota menino. Aegon é tipo o líder do colégio e ao demonstrar tamanha repudia contra o ato, as pessoas do colégio apoiaram veemente a ideia. O que é magnífico devo dizer. Aegon é simplesmente diferenciado.

Alexandre ergueu as mãos para cima.

— Dá pra chegar logo no assunto? O que eu tenho a ver com tudo isso?

Suzane estancou, estupefata.

— Como o que tem a ver? O pessoal todo aderiu a uma campanha de não-bullying e vem você e faz o quê?

— Eu não faço bullying – disse ele inocentemente.

A vizinha arregala os olhos de tal modo que eles quase pulam das órbitas.

— Não faz? Tem a mais remota ideia das palhaçadas que fez desde o primeiro ano? Acha que apelidar a Tereza de “morcegona” e postar uma montagem dela com asas negras foi engraçado?

Foi engraçado! – quase gritou Alexandre – por que foi uma piada!

— Depois disso começaram a tirar sarro dela só por que a garota é gótica e gosta de maquiagem pesada.

Alexandre bufou batendo nas ancas.

— E daí? Se a trevosa não consegue aguentar umas brincadeiras ela que se enfie numa caverna ou vá ajudar o batman! – Alexandre balança a cabeça desnorteado – francamente, esse povo é mesmo fresco!

— Lembra-se do que aconteceu depois com a garota que foi espancada e teve suas fotos pelada circulando por todo colégio, cidade ou até o país?

Foi então que uma torrente de pesar demoliu a indignação que Alexandre sentia. Ele sabia porque tinha visto as fotos: a moça havia se matado cortando os pulsos no banheiro e de algum modo as imagens da cena vazaram e percorreram os celulares de milhões. Alexandre lembra-se da poça de sangue sobre o azulejo branco com o cadáver bem ao centro... os olhos abertos fitando o vazio ou refletindo o vazio de uma vida atormentada.

Abatido, ele tenta se recompor.

— Não compare minhas brincadeiras com aquilo, não tem nada a ver! Eu nunca machucaria ninguém.

— Você já machuca – rebateu Suzane – só não se dá conta. Agora o pessoal do colégio está tomando consciência disso e te ignoram, daí Estevão arruma uma namorada e o que ela pensaria ao saber que ele sempre anda com você?

Algo lá no fundo de Alexandre havia trincado com as palavras da vizinha, ele recebera o golpe embora não estivesse certo do que havia sido atingido. O rapaz nunca cometera bullying, suas brincadeiras eram inocentes, engraçadas, as pessoas riam... ele ria. Era bom. Ninguém sofria.

***

De volta a floresta que se transformara em um oceano de fumaça pela ferrenha briga das chamas ardentes contra as folhas verdes e úmidas, Alexandre focou nos olhos escuros e vazios do corpo, a sensação foi ficando mais poderosa segundo a segundo e o adolescente sentia que lembraria logo do indivíduo.

Foi quando os olhos mortos viraram-se em sua direção encarando-o.

E uma voz foi ouvida... surgiu por detrás das densas cortinas cinzentas do inferno onde estava. Com o susto, o garoto virou a cabeça na direção do som e seu olhar testemunhou a vinda de algo permeando as chamas enquanto avançava pela fumaça que se rebelava contra o invasor abrindo espaço em minúsculos redemoinhos.

Ao ver o que era, Alexandre fechou os olhos.   


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