The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 40
Capítulo XL - 09 de Janeiro de 1873


Notas iniciais do capítulo

Olá, meu leitores, tudo bem?

Eis que chegamos ao Capítulo 40! Em outras palavras, iniciamos nossa caminhada rumo ao final dessa trama. Não sei vocês, mas eu me diverti e me emocionei muito em cada capítulo desse projeto. Houveram momentos de dúvida em relação à qualidade do trabalho, mas fiquem certos de que sempre me esforcei no sentido de dar o meu melhor.

Agradeço, de coração, cada acompanhamento, favorito e comentário. Tem sido muito gratificante escrever essa história, sinceramente não sei como ficarei depois de finaliza-la. Provavelmente em pedaços, mas vida que segue, hahaha. Vamos juntos nessa caminhada, para desvendar os últimos mistérios pendentes? Vamos!

Desejo a todos uma ótima leitura!! ;)



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— Acredito que deva existir um prazer oculto, que somente você é capaz perceber, em me fazer acompanhá-la em longas caminhadas durante o inverno.

As palavras polidas acompanhadas de um cenho franzido, proferidas mediante o usual ar presunçoso do Secretário Real, não foram capazes de disfarçar o tom de queixa contido naquela fala. Phillip nutria verdadeiro apreço por aquela estação do ano, desde que estivesse sentado numa confortável poltrona, acompanhado de um bom livro e uma xícara de chá fumegante. Entretanto, na ocasião, nenhum desses requisitos estava sequer próximo de ser honrado, e na medida em que se afastava do castelo, aquela imagem aconchegante distanciava-se cada vez mais.

— Ora, não seja tão azedo! — Sarah exclamou, em meio à risada infantil que lhe escapou pelos lábios. — Sabe que abomino a ideia de permanecer horas à fio trancada entre quatro paredes.

O gesto involuntário foi responsável por iluminar o rosto do rapaz que a acompanhava, suavizando suas feições e fazendo-o sentir-se ligeiramente aquecido. Não eram poucas as vezes em que se via saudoso daquela espontânea expressão de inocência. Era curioso relacionar-se com uma pessoa tão transparente quanto a jovem rainha, que sustentava abertamente em seu semblante todas suas lutas e conquistas. Contudo, tal característica não necessariamente facilitava sua compreensão acerca do comportamento dela. Cada ação ocasiona uma reação correspondente, e a menina trazia consigo uma infinidade de respostas possíveis para cada tipo de situação, tornando-a uma figura imprevisível. Ainda assim, ele quase sentia-se invejoso de tamanha diversidade de expressões e sentimentos.

— Não importa — retrucou em instantes, desta vez portando um fingido tom de descontentamento. Sentia os ossos tilintarem debaixo das pesadas vestimentas, mas já não despendia tanta atenção a esse detalhe. — Como lhe dizia antes, temos recebido muitas mensagens de felicitações natalinas e votos de boa sorte para o ano que se inicia. Entre eles, é perceptível a preocupação das famílias fundadoras no que tange a tributação sobre circulação interna de mercadorias, assim como as taxas de exportação nos portos.

— Um receio justificado, tendo em vista que essa arrecadação excessiva está longe de servir ao seu propósito. O que Odarin precisa nesse momento é de empregos para seus habitantes, e não de uma reserva mais robusta em nossos cofres. Mudanças precisam ser feitas, mas não quero agir de maneira precipitada. — O rápido discurso levou um discreto e simbólico sorriso de canto por parte do jovem Chevalier, indicando-lhe que seus pensamentos seguiam na direção correta desta vez. — Quais as expectativas para este inverno?

— Tivemos uma colheita razoável se comparada com anos anteriores. Além disso, a abertura dos portos de Hallbridge proporcionou um ligeiro aquecimento na economia, ainda que muito aquém do necessário. O cenário não é tão desastroso quanto poderia ser, mas continua longe daquilo que almejamos. É certo que muitas famílias padecerão antes do fim da estação.

— Essa é a última coisa que eu gostaria de ouvir — Sarah afirmou, em meio a um suspiro desanimado. — Não há nada que possamos fazer por eles?

— Algumas medidas cautelares podem ser adotadas, mas preciso lembrar-lhe de que caridade não está entre o rol de atribuições da Coroa — Phillip advertiu, já antecipando os pensamentos que tomavam forma na mente da jovem. O sorriso acanhado que deixou transparecer em seu rosto apenas confirmou as suspeitas do Secretário.

— Espero que isso seja suficiente. Eu não desejo carregar mais mortes sobre os meus ombros.

— Não veja as coisas por esse ângulo. A vida não é um presente, e sim uma concessão. — A menina lançou um olhar confuso, de quem anseia por explicações. — Existe um limite temporal para que possamos usufruir de tudo que este mundo tem a nos oferecer. O tempo, que é finito, precisa ser administrado com sabedoria, sob o risco de perdermos as melhores oportunidades ao longo do caminho.

— Não é comum vê-lo tão inspirado e poético, ainda mais numa fria manhã de inverno. — Enquanto falava, seus olhos recaíram sobre a construção vermelha que protegia seus cavalos do vento cortante. O dia estava escuro e nublado, mas de dentro dos estábulos era possível notar uma luz fraca, possivelmente proveniente de uma lâmpada à óleo. Poderia se tratar de qualquer servente ali, mas algo lhe dizia que as palavras recém proferidas por Phillip não tinham sido mera coincidência. Seria possível tratar-se de um sinal? — Eu gostaria de comprar um terreno.

— Desculpe, o que disse? — o rapaz questionou com espanto, sentindo-se perdido com a súbita mudança de assunto.

— Exatamente o que ouviu, eu gostaria de comprar um terreno. — Sua fala parecia direta e objetiva, e mesmo assim seu Secretário demonstrava dificuldade em compreender o real sentido de suas palavras, deixando-a impaciente de pronto. — Grande, largo. Terra limpa, sem construções. Seria ótimo se encontrasse um plano, sem grandes relevos.

— Por que precisa de algo assim? Este castelo não lhe satisfaz mais e almeja construir outro, ou pretende começar a investir em animais de pastoreio? — A sensação diante do desconhecido, o sentimento de não saber o que quer que fosse era motivo suficiente para deixá-lo perturbado, e até mesmo um tanto nervoso. E na ocasião, a menina parecia tomada por um inesperado delírio, relutando em esclarecer a motivação por trás daquele desejo imediato.

— Ouça, eu não estou louca ou nada parecido. Apenas confie em mim. — As afirmativas não pareceram suficientes para convencê-lo ou mesmo tranquilizá-lo, de modo que houve a necessidade de situá-lo, ainda que por alto, o que aspirava mediante um pedido tão inusitado. — Tenho algo em mente que desejo pôr em prática com a maior brevidade possível. No entanto, é preciso planejamento e não desejo rumores precipitados pairando pela cidade. É somente por isso que estou preservando-o dos detalhes agora.

Phillip lhe direcionou um olhar pesado e descrente. O desconforto diante da falta de clareza naquele pedido seria algo difícil de administrar, mas não poderia se negar a pôr em prática aquele pedido, por mais estranho e vago que fosse. Mesmo à contragosto, o rapaz assentiu em silêncio, aceitando o desafio de encontrar um terreno que cumprisse com todos aqueles requisitos.

— Sabia que me ajudaria! Não desperdice um minuto sequer, comece a busca agora mesmo — ela afirmou com empolgação, apressando seus passos na direção dos estábulos, deixando sua companhia para trás sem qualquer cerimônia.

— Espere um pouco, Sarah, onde está indo?

— Passei muitos dias ausente em Hallbridge, agora preciso verificar em que condições meus cavalos se encontram.



Enquanto as mãos de Elliot se ocupavam em reabastecer cada baia de água e comida, um turbilhão de pensamentos pairava em sua mente, sem que ele conseguisse colocá-los na devida ordem. Suas mãos suavam, a despeito da baixa temperatura do ambiente.

À princípio achou que não fosse mais que um mero fruto de sua imaginação, até mesmo cogitando a possibilidade de estar sonhando. A dúvida o perturbava, fazendo-o permanecer estático, avaliando com demasiada cautela os sons provenientes do exterior. Alguns instantes de silêncio absoluto se fizeram necessários, e logo já não lhe restavam dúvidas: a voz que se manifestava a poucos metros de distância pertencia à Sarah. Como condição adicional, tal realização levou seu coração a pulsar num ritmo incomum, irregular.

“Ela entrará aqui, por uma razão ou outra, e depois de ter dito tantas inverdades, não sei o que mais posso acrescentar”, pensou com o ar pesaroso, ocasião em que seu semblante transpareceu menos desespero e mais vergonha de si mesmo. O sentimento de arrependimento se alastrava em seu íntimo, fazendo-o desejar não ter dito nenhuma daquelas coisas terríveis, cujo único intuito era magoá-la, como isso pudesse deixá-los em pé de igualdade novamente. “Como se a partir dali fossemos recomeçar, deixando os erros bobos para trás”.

Por mais que a consciência de Jacques estivesse perdida em algum ponto do passado durante a maior parte do tempo, seu pai o ensinou a sempre caminhar olhando para o futuro. O velho Earnshaw tinha um ensinamento semelhante, dito à sua própria maneira rudimentar. “Sementes antigas não geram frutos novos. O amanhã depende daquilo que semeamos hoje. Além do mais, todo dia é uma oportunidade nova para recomeçar”. Era bem possível que tivesse escutado aquela frase do jardineiro, apenas repetindo-a como se sua fosse. A ligeira memória do antigo tratador fez com que um sorriso deprimido surgisse em seu rosto. Sentia mais falta dele e de suas grosserias gratuitas do poderia admitir.

Finda sua atribuição de renovar as provisões, o rapaz caminhou até a última baia, onde Celeste jazia deitada, observando-o com um olhar curioso. Seu pelo e crina eram de um branco puríssimo, característica que a fez ser escolhida para transportar a jovem rainha até a Catedral, no emblemático dia de sua coroação. A égua portava uma elegância singular, quando comparada com seus companheiros de estábulos. Foi com imenso pesar que ele a encontrou jogada ao chão, num de seus dias de pastagem ao ar livre, com uma armadilha para raposas presa em uma de suas patas. Libertá-la dos ferros que perfuravam sua carne ocasionou diversas lesões nas mãos do tratador, mas ele não deu mais importância àquilo do que daria às picadas de um mosquito. Trazê-la de volta para a segurança de sua baia fora particularmente difícil, pois requisitava da ajuda de vários outros serventes, deixando-a ainda mais agitada. Agora que a tragédia havia sido superada, restava apenas a necessidade de trocar-lhe os curativos todas as manhãs, até que estivesse completamente recuperada.

— Vamos torcer para que não haja nenhuma sequela desse terrível acidente — ele comentou, enquanto acariciava com ternura o focinho do animal, que relinchou em resposta.

Sentado ao seu lado, Elliot concentrou-se em retirar os curativos e trocar por novos, que sequer estavam sujos. A égua possuía tamanha disciplina com sua própria reabilitação que passava parte de seus dias deitada, em repouso. O mesmo não poderia ser dito do tratador, que se recuperava à custo dos ferimentos adquiridos no momento do resgate.

À princípio, a dor dos cortes o incomodava durante as tarefas diárias, obrigando-o a repetidas pausas ao longo do dia. As ataduras, muitas vezes encardidas de terra se encontravam manchadas de sangue ao final do dia, ao passo que suas mãos formigavam, clamando por um repouso para que pudessem se recuperar. No entanto, não tinha condições de deixar o trabalho de lado, pois tanto seu pai quanto os cavalos prescindiam de seus cuidados. Com o tempo, ele se habituou à dor, mas manteve as mãos enfaixadas para evitar olhar os ferimentos precariamente sarados.

Enquanto direcionava seus cuidados à pata do animal, sua mente continuava a remoer o assunto de antes. Tinha certeza de que seus dois mentores estavam certos e que aquele seria um bom dia para recomeçar. No entanto, como fazê-lo? Aquela pergunta o atormentava há dias, sem que conseguisse chegar a qualquer resposta, por mais insensível ou ineficaz que fosse.

— Pobre criatura. — A voz baixa, em tom de lamento, foi responsável por chamar a atenção de Elliot. Estava tão absorto em suas próprias divagações que sequer percebeu a presença da menina atrás de si. Há quanto tempo estaria ali? — Emitirei uma ordem para que todas as armadilhas sejam retiradas do entorno do castelo. Os criados devem achar uma forma menos perigosa para exterminar as pragas e os pequenos saqueadores — informou, enquanto apoiava os braços sobre a porteira da baia de Celeste, observando-os com atenção e zelo.

Deveria responder? Sentia que sim, pois permanecer em silêncio poderia soar como um gesto rude. Entretanto, em questão de instantes, ele parecia ter se tornado ainda mais estúpido, pois as palavras fugiam de sua mente, conferindo-lhe um indesejado ar de reticência.

— É muito gentil de sua parte. — Foi tudo que conseguiu dizer, após longos segundos de batalha interna. Um comentário óbvio, mas certamente melhor do que permanecer silente.

Do lado de fora, Sarah o encarava com um misto de espanto e otimismo. A ausência de respostas atravessadas, troca de farpas ou acusações diretas lhe indicava uma mudança sensível e positiva. Seu comentário, contido e proferido sob um tom de voz tímido, lhe enchia de esperança. O mero prospecto de conseguir pôr a termo aquela incômoda desavença fez com que se sentisse confiante o suficiente para prosseguir.

— O que houve com a sua mão? — ela questionou, logo em seguida. Desde que ingressou nos estábulos, as ataduras não haviam passado despercebidas. — Recorda-se de quando o desafiei a conseguir uma rosa para mim até o pôr do sol? Estávamos ao final do outono, as poucas roseiras sobreviventes tinham mais espinhos que qualquer outra coisa. Sua mão ficou num estado bastante semelhante a este.

— Mas eu cumpri com o desafio, diferente de você, que não conseguiu roubar uma jarra de biscoitos da cozinha até a hora da ceia — ele rebateu, de algum modo tomado por uma leveza de espírito. Tais palavras foram ditas de modo casual e, involuntariamente, ele sorria com um ar abobalhado. A recordação enchia seu peito de um sentimento agradável, ao qual há muito já não experimentava.

— Eu jamais teria aceitado, se soubesse que aquele pote era pesado como um piano! Juro que tentei, mas não consegui me afastar mais que uns passos antes de derrubá-lo no chão. Me puniram com um mês sem direito a doces.

— Teria sido realmente trágico, se eu não tivesse dividido os meus com você.

Um instante de silêncio seguiu aquela fala, e então, a tímida risada de ambos tomou conta do ambiente, sendo responsável por aliviar a tensão que ainda pairava entre os dois, como uma muralha. Tratava-se de um processo de readaptação, cujo o objetivo era se habituarem novamente a presença um do outro. Com alguma sorte, as preciosas memórias que restaram de sua infância comum os levariam de volta para a antiga amizade que resistiu há anos de separação.

Terminado o curativo de Celeste, Elliot já não tinha nada que justificasse sua permanência ali. Erguendo-se do chão, ele tornou os olhos na direção de sua companhia, e o que encontrou ali muito lhe surpreendeu. Sarah já não portava mais o semblante infantil de antes. Os turbulentos meses do ano que findara operaram não só uma mudança em aparência, mas também em seu espírito. Sua postura denotava altivez e inspirava respeito, enquanto seus olhos traziam consigo uma chama incandescente que certamente refletia a sua alma. Sua transformação era notável, e ainda assim tinha certeza de que sua essência permanecia inalterada.

Alcançando o corredor dos estábulos, ele fechou a porteira atrás de si, e logo sua mão enfaixada foi capturada entre os dedos finos e pequenos da jovem rainha. Ela os examinava com cuidado e em silêncio, empregando ainda uma carícia delicada. O rapaz manteve-se imóvel, por mais que se sentisse indigno de tamanha atenção.

— Diga-me, Elliot, em que momento deixamos de nos importar um com o outro? — questionou, havendo uma nota de culpa presente em sua voz.

— Eu não tenho ideia. Tudo que sei é que não podemos continuar desta maneira — ele respondeu, sentindo que compartilhava da mesma dor que a menina. Era a primeira vez em anos que concordavam com algo sem maiores discussões, um feito que certamente merecia ser celebrado. — Nas últimas vezes em que nos falamos, eu fui injusto e agi de maneira desleal com você. Não sei se algum dia irá me perdoar, mas...

— Foi insensível de minha parte esperar qualquer coisa além disso — com efeito, Sarah o interrompeu de modo a preveni-lo de ir além com aquele discurso. Afinal de contas, ela não estava isenta de responsabilidade no caso. — Você estava magoado. Nada de bom pode ser dito por um coração que sofre. É preciso esperar que toda a dor seja posta para fora, e nestes casos, falar é uma boa maneira de se livrar disto.

Naquele instante, Elliot sentiu o ímpeto de beijá-la e, felizmente, dispunha de autocontrole suficiente para refrear seus próprios anseios. Aquelas palavras o libertaram de um enorme fardo, proveniente não só da sensação de culpa, mas também de todo o rancor que fora inutilmente alimentado.

Buscando agir dentro das limitações que lhes eram impostas, o tratador ergueu a mão enfaixada, repousando-a sobre a bochecha corada de Sarah, empregando ali uma carícia muda, mas que falava por si só. Somente seus dedos encontravam-se livres, permitindo um contato direto, de modo que ela pôde sentir a habitual aspereza que estranhamente lhe transmitia a melhor das sensações.

O que poderia dizer? Eles cresceram juntos, correndo de maneira desinibida pelo vasto jardim que circundava o castelo. Fizeram suas primeiras escolhas e colheram os frutos de suas ações, ao passo que descobriram conjuntamente algumas das nuances do amor, que possuía infinitas formas de se manifestar. Havia entre eles um elo inominado que jamais seria quebrado, independente das adversidades enfrentadas. Foi um erro confundir aquela íntima ligação com algum sentimento de cunho romântico. Eram quase como irmãos, e nada no mundo iria mudar isso.

— Elliot, nós não podemos…

— Eu sei disso — respondeu com firmeza, no intuito de interrompê-la em definitivo.

Ainda lhe doía pensar que já não poderia mais abraçá-la com toda a força, tomando-a somente para si, ou que seus sorrisos já não eram exclusivamente dedicados a ele. No entanto, agora tudo se apresentava numa escala muito menor, uma na qual ele poderia suportar.

Após um suspiro resignado, o rapaz abaixou o rosto, depositando um simbólico beijo na testa da menina à sua frente. Involuntariamente, ela se encolheu e fechou os olhos, receosa de que o inesperado gesto pudesse ir além, apesar de seu aviso anterior. Entretanto, ele estava contente pelo simples fato de não ter sido bruscamente repelido. “Talvez isso signifique alguma coisa”.

— A temperatura está diminuindo — pontuou, logo após afastar-se da jovem à sua frente. Seu autocontrole não era ilimitado e ele odiaria estragar tudo novamente. — É melhor retornar para o castelo agora.

— Vista-se adequadamente, para que não convalesça novamente — Sarah alertou, assumindo uma postura maternal que ligeiramente assemelhava-se aos modos de Evangeline.

Elliot limitou-se em agraciá-la com um meio sorriso acanhado. Certa de que não poderia exigir mais nada dele, ela caminhou silenciosamente de volta para casa.



A cozinha da Família Chevalier, ainda que larga o suficiente para comportar três pessoas ao mesmo tempo de maneira confortável, não era iluminada o suficiente para viabilizar o trabalho em dias nublados como aquele. Já habituada a trabalhar debaixo do sol forte, Delia sentia-se reclusa num calabouço enquanto ocupava-se em cuidar das refeições. Não eram admitidos mais que três candeeiros naquele cômodo, que eram efetivos em conferir ao local um ar mórbido, mas insuficientes para clarear o local.

— Estou absolutamente farta disto! Olhe para este lugar, isso mais se assemelha a uma masmorra que uma cozinha — Julie protestou, enquanto tentava limpar um enorme pedaço de carne, sem muito sucesso. — E como faz frio! Estou até mesmo começando a sentir arrepios.

— Você não é a única… — a camponesa complementou, concentrada em sovar uma massa de pão. Àquela altura, era certo que deveria estar totalmente suja de farinha de trigo, mas que poderia fazer? Mal conseguia enxergar dois palmos além de seu nariz, usando apenas o tato para desempenhar sua tarefa.

— Completamente inadmissível! Além disso, nem bem o dia começou e já me sinto exausta. Tudo por culpa de Maria.

— Ah não, ela não teve culpa. Tornar a trabalhar no castelo sempre foi seu maior sonho. E eu estou aqui para substituí-la, também.

— Minha querida, não me entenda mal. Você tem sido adorável e bastante prestativa, mas sempre insisti que esta casa precisa de quatro criadas para atender a todos. Não são duas, nem mesmo três, mas quatro!

— Nisso sou obrigada a concordar.

— Certo, pra mim já chega — a criada mais velha afirmou, em meio à sua revolta com tais condições de trabalho. Firmando a faca em sua tábua de madeira, ela apressou-se em retirar o avental e jogá-lo com irritação sobre a bancada. — Vou arranjar algumas velas com Emma. Se alguém aparecer aqui, apagamos a chama e jogamos a cera em algum local escuro.

Delia sorriu discretamente, enquanto observava Julie deixar a cozinha de modo apressado. A empregada mais antiga da casa era impaciente e se irritava com facilidade, além de passar boa parte do dia conversando consigo mesma. Emma, por outro lado, era seu exato oposto. Trazia em seu rosto um olhar vago e perdido, como se sonhasse acordada, não falando nada mais que o necessário. Ainda assim, era organizada e muito limpa, o que era suficiente para seus senhores.

Levou algum tempo para que a ruiva se acostumasse a personalidades tão distintas mas, com sorte, logo encontrou nas duas um sentimento fraternal típico de irmãs. As três se complementavam de uma maneira única, o que era louvável, pois se assim não fosse, jamais conseguiriam dar conta de tantos afazeres.

— Que está fazendo num local tão escuro, e ainda por cima sozinha, minha querida? — Ouvir aquela voz arrastada e rouca fez com todos os sentidos de Delia entrarem em estado de alerta. Soltando a massa que tinha em mãos de imediato, seus pés se prepararam para correr, mas já era tarde demais. — Desse jeito, faz até parecer que está me convidando para uma brincadeira sórdida.

Atrás de si, o filho mais velho da Família Chevalier tinha os braços firmemente apoiados na bancada em que a jovem trabalhava, deixando-a encurralada num espaço apertado e escuro. Subitamente, ela sentiu um vazio em seu estômago, que levou um arrepio de pânico subir sua coluna.

Aquela não era a primeira vez que isso acontecia. O rapaz já a havia cercado em duas outras ocasiões. Na primeira, teve a sorte da Baronesa chamá-lo insistentemente até que fosse obrigado a deixar sua presa em paz. Na segunda, nenhum dos moradores se encontrava em casa, mas ele acidentalmente esbarrou e quebrou uma das esculturas de sua mãe. Sabendo que logo alguma criada seria atraída pelo barulho, ele foi obrigado a fugir antes que pudesse ser pego em flagrante.

Agora, o rapaz parecia ter encontrado a situação perfeita para abordá-la sem que houvesse margem para fugas.

— Julian, por favor...

— Shh, não diga nada. Não queremos fazer um escândalo aqui. Até porque sabemos o quanto você precisa dessa oportunidade — ele proferiu, com palavras sussurradas e num tom assustadoramente ameaçador. — Sabe, toda essa espera tem me deixado bastante ansioso, e impaciente também. Sou uma pessoa cheia de deveres e naturalmente preciso de alguém que me ajude a aliviar a tensão. Tenho certeza de que compreende a minha posição.

Delia aguardava o momento adequado para pudesse empurrá-lo e escapar de suas mãos nojentas. Contudo, o primogênito parecia ser capaz de ler seus pensamentos, pois não tardou a segurar-lhe forçosamente pelos cabelos, de modo a impedir sua fuga. Ali, seu último resquício de esperança se esvaiu e não lhe restaram alternativas senão aceitar aquela situação degradante.

Podia sentir uma mão pesada e indelicada explorando seu corpo, ainda que por cima de seu vestido, de maneira desinibida. Julian tinha o rosto enterrado em seu pescoço, explorando a região com seu hálito quente, o que apenas servia para deixá-la ainda mais enojada. De olhos fechados, ela apertou com força a beirada da bancada e engoliu seco, rezando para que aquele tormento terminasse o mais rápido possível.

— Seu cabelo tem cheiro de canela — ele comentou, após alguns instantes de diversão silenciosa. Ria enquanto falava, apossado de uma gloriosa sensação de vitória. — É um aroma bastante estimulante. Será possível que você o faça propositalmente, apenas para me atiçar ainda mais?

Os músculos de Delia travaram de imediato e ela sentiu o ar faltar em seus pulmões. Ele não mentiu quando disse estar ansioso e impaciente. Nem bem havia começado a perturbá-la com seus toques indesejados e já podia senti-lo pressionar o quadril contra suas costas. Imaginar a situação em que se encontrava lhe causava ânsias de vômito, as quais ela tentava controlar a custo.

— Olá, meu irmão — a voz usualmente presunçosa e de ar irônico se manifestava desta vez com seriedade, além de uma fúria contida. Delia abriu os olhos apenas para assegurar-se de que não estava delirando. — Faria-me a gentileza de soltar esta moça, que encontra-se visivelmente perturbada com a sua presença, para que possamos conversar por um instante?

— Estou um tanto ocupado neste momento, caso não tenha reparado — Julian respondeu de imediato, sem se incomodar com a presença do mais novo, parado diante da entrada da cozinha, com uma expressão descontente em seu semblante.

— Eu tentei ser gentil, mas você obviamente não compreende este tipo de abordagem. Estou avisando-o, afaste-se dela imediatamente.

Delia o observava sem compreender como aquilo lhe poderia ser útil. Phillip era consideravelmente menor, para não falar em seu porte franzino se comparado com Julian. Dirigia-se a esse último com um ar desafiador, mas ela duvidava que pudesse vencê-lo no que quer que fosse. Era, sem sombra de dúvidas, o membro mais inteligente de sua família. No entanto, não conseguia vislumbrar como seu conhecimento poderia ajudá-los numa situação como aquela.

— Se não o quê? Vai recitar uma poesia para nós dois? — O mais velho atiçou, em meio à uma risada zombeteira. — Não tente agir como o homem que você não é. Está sendo ridículo, além de estar a séculos de aprender qualquer coisa nessa seara.

— Você que está a séculos de aprender como tratar alguém de maneira decente — Phillip cuspiu aquelas palavras, adentrando no cômodo com passos vagarosos, como se quisesse dar tempo para que o outro repensasse suas respostas e ações. — Falando em aprender, temo que você seja obrigado a buscar um novo ofício, um de verdade desta vez, quando não for mais sustentado por nossos pais.

— Por que algo assim aconteceria?

— Estou certo de que irão reconsiderar sua condição de herdeiro legítimo quando descobrirem que seu primeiro neto é um pequeno bastardo com raquitismo. — De imediato, a arrogância de Julian se transformou em pavor, sendo visível sua tentativa frustrada de esconder seu próprio receio. — Toquei em um ponto sensível? Bem, não importa. Se deseja manter seu pequeno deslize oculto, sugiro que se afaste dela imediatamente e não torne a importuná-la novamente.

— Não teria coragem — o primogênito balbuciou, sua voz entrecortada pelo nervosismo. Delia escutava a tudo atentamente, podendo sentir que seu algoz encontrava-se trêmulo e hesitante. — Eles não acreditariam em você. Além disso, não existem provas de que ele seja meu!

— Quer realmente apostar nisso? — Phillip retrucou de pronto, com uma convicção que faria qualquer um acreditar no maior dos absurdos. — Você se surpreenderia com o quão convincente eu posso ser em certas ocasiões.

— Isso ainda não acabou — Julian ameaçou, valendo-se de um tom de voz e um semblante sombrio, antes de abandonar os dois na cozinha, esgueirando-se pela porta dos fundos.

Delia, que até então sequer conseguia respirar da forma adequada dado seu pânico, desabou sobre a bancada ao ser bruscamente empurrada pelo fugitivo. Seu coração parecia dar saltos dentro de seu peito, pulsando num ritmo alucinante que estava deixando-a desorientada. Ainda que ele não tivesse ido longe em seus toques, graças à intervenção de Philip, a jovem sentia-se suja e repugnante, desejando naquele instante um banho quente mais que qualquer outra coisa em sua vida. Seu corpo escorregou aos poucos, faltando-lhe força nas pernas para manter-se devidamente em pé. Devia muito ao seu salvador, mas a vergonha de ter sido encontrada naquela situação a consumia por dentro.

— Aquele porco imundo! — exclamou com evidente revolta, caminhando a passos largos até alcançá-la. — E eu que achava que não poderia me envergonhar ainda mais de fazer parte desta família.

Aproximando-se da ruiva, que continuava curvada sobre a bancada, ainda escondendo o rosto entre os braços, Phillip não soube o que mais poderia fazer para ajudá-la. Sob a luz fraca do candeeiro, ele pôde perceber que a jovem trabalhava numa massa fresca, que descansava ao lado se uma tábua coberta de farinha.

O ambiente estava absorto num silêncio sepulcral, exceto pela respiração pesada de Delia. Queria dar-lhe tempo para recobrar os sentidos e a razão, mas não podia manter-se inerte. Segurando-a pelo braço, ele tentou erguê-la sobre os próprios pés, enquanto tomava sua face em mãos para que pudesse examiná-la de perto. À princípio, ela tentou resistir por puro reflexo, mas logo desistiu e permitiu que ele fizesse o que bem entendesse, ainda que mantivesse os olhos baixos. Sacando um lenço de bolso, o rapaz se empenhou em retirar o excesso de farinha espalhada em seu rosto, e embora o gesto carecesse de gentileza, havia uma necessidade urgente em certificar-se de que estava tudo bem.

— Você não pode permitir que eles a importunem dessa maneira, ou logo este tipo de barbaridade se tornará um hábito — Phillip alertou, sem interromper o que fazia. Observando-o de soslaio, a jovem percebeu uma estranha perturbação em seu semblante. Para alguém detentor de uma expressão usualmente apática, vê-lo com os lábios crispados e o cenho cerrado demonstrava que o rapaz possuía muito mais facetas e emoções do que ousava externar. — Acho pouco provável que Julian volte a incomodá-la, mas não deve abaixar sua guarda por nada.

— Eu preciso desse emprego e eles são responsáveis pelo meu pagamento — Delia retrucou, num sussurro quase inaudível. Ainda tentava assimilar os últimos acontecimentos. Se algum dia tivera orgulho de si mesma, naquela ocasião já não havia nenhum. Sentia abater-se sobre si um misto de vergonha e humilhação. — Não há muito que eu possa fazer.

— Essa cozinha está repleta de facas, de ao menos seis tamanhos diferentes, todas muito bem amoladas. Use isto em seu proveito.

Embora não soubesse precisar se aquela insinuação deveria ser levada a sério ou tratava-se de mais uma de suas ironias, ela reconhecia a tentativa do rapaz de tentar melhorar seu humor e autoestima, ainda que à sua própria maneira. Por um breve instante, o rapaz caminhou até a extremidade oposta do cômodo, retornando logo em seguida com um copo d'água em mãos.

— O que quero dizer é que você é esperta, e muito mais forte do que imagina — Phillip pontuou, observando-a beber o líquido num único gole. — Haverá de descobrir um modo de se defender sozinha.

— O que estava fazendo aqui? — a ruiva questionou, não restando mais que um fio de voz.

— Vim até a cidade resolver alguns assuntos urgentes, e pensei em poupar tempo comendo algo aqui, mas tudo que consegui foi perder o apetite com essa cena infeliz — comentou, de modo amargo, enquanto retirava os últimos resquícios do pó branco de seu rosto.

— É verdade tudo aquilo que disse? — Na medida em que o terror a situação se esvaia, vinha a necessidade de falar, sobre qualquer assunto, apenas para que não tornasse a reviver aquele pesadelo em sua mente. Em resposta muda, o rapaz se limitou a acenar positivamente. — Como sabe dessas coisas?

— Conhecimento é a arma mais poderosa que se pode ter — Phillip afirmou, parecendo estar orgulhoso de suas próprias palavras. Aos poucos, seu semblante voltava a indiferença habitual. — Foi através dele que consegui me proteger de muitos tormentos, que partiam quase sempre dos membros de minha família. Como pôde perceber hoje, seu comportamento acolhedor não se destina somente aos parentes ou amigos íntimos.

Dito aquelas palavras, ele pôs o lenço na mão da jovem, para logo em seguida afastar-se em silêncio. A última coisa que Delia pôde ouvir foi a porta entrada ser fechada com força.

Sua respiração e batimentos haviam voltado ao normal. Embora o desejo por um banho persistisse, vinha agora uma sensação de alívio, pois bem sabia que as coisas poderiam ter acabado de maneira muito mais trágica. “Eu nem ao menos tive a decência de agradecer” ela pensou com tristeza, enquanto comprimia o tecido macio entre os dedos.


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