A gata borralheira. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 1
Ratos e cenouras.


Notas iniciais do capítulo

Eu achei divertido!

Aproveite!



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Era uma vez uma garota escravizada pela própria madrasta para servir de empregada depois que o pai dela morreu. E eu tenho certeza que você já conhece essa história, certo? Mas não importa, eu vou contar mesmo assim e, se você não quiser ouvir, sinta-se à vontade para cair fora... Vai ficar? Ótimo! Vamos nos divertir então!

Pois bem, vamos voltar no tempo: bem antes dessa bagunça toda de madrasta malvada, escravidão, filhas mimadas, etc. Havia um rico comerciante e sua esposa e filha, eles eram a família perfeita dos comerciais de margarina, daqueles que todo mundo aparece sorrindo em volta da mesa e tenta vender a imagem de que margarina traz felicidade, não problemas cardíacos e pressão alta. Por que eu trouxe o assunto de problemas cardiovasculares à tona? Bem... Deixe-me lembrar... Ah, sim! A mulher dele morreu disso.

Que triste, não? Te dou trinta segundos de luto.

Acabou? Beleza! Vamos prosseguir!

O comerciante foi deixado sozinho no mundo com uma filhinha para criar e um negócio para manter. Não é tão difícil, é? Não perca o negócio, continue vendendo, não deixe sua filhinha cair no mundo das drogas e prostituição, lembre-se do aniversário dela de vez em quando... Bem, aparentemente, isso era muito difícil para ele, então ele decidiu fazer a coisa mais lógica na cabeça dele: casar de novo e deixar a mulher se preocupar em criar um ser humano decente enquanto ele se livra da responsabilidade.

Ele conheceu uma mulher extremamente confiável e que se apaixonou verdadeiramente e à primeira vista assim que soube que ele era rico. Obviamente, era amor de verdade e não apenas interesse. Essa mulher já tinha duas filhas, mas isso não impediu nenhum dos dois de se casar por impulso sem nem pedir uma segunda opinião. E então foi “comercial de margina: a reprise”, dessa vez estrelando três filhinhas em vez de uma só.

Então o comerciante morreu.

Triste, trágico, tétrico, tenebroso e outras palavras com T.

Dessa vez te dou só dez segundos de luto porque a história precisa fluir.

Bem, a garotinha órfã ficou sozinha com sua madrasta e, adivinhe só? Ela não era tão boazinha quanto parecia! (Sério mesmo? Não me diga!).

Enfim, a guria começou a ser criada como uma mini empregada doméstica e, é claro, não havia uma fiscalização decente de trabalho infantil, ou de trabalho escravo, ou uma fiscalização decente de qualquer coisa. Então a garotinha foi criada como uma mera serviçal e teve que se submeter a humilhações diárias de suas “irmãs” e de sua madrasta.

E assim a jovem Cyndaquearelleyr cresceu... Ah, sim, o nome da garotinha era Cyndaquearelleyr. Motivo? O pai queria “Cyndaquill” para homenagear sua infância, a mãe queria “Aquarela” para homenagear sua paixão e não me pergunte de onde saiu o “eyr” do final. Enfim, agora você entende porque eu não falei o nome dela até agora, certo? Isso enrola minha língua!

Cyndaquearelleyr era chamada apenas de “Cindy” pelos seres humanos razoáveis que a rodeavam. Já que esse apelido é muito mais pronunciavam que Cyndaquearelleyr. Entretanto, durante a época de transição do nome para o apelido, surgia a inevitável pergunta:

— Quem é Cindy?

E a resposta, invariavelmente, era:

— Cindy? É ela.

Essa resposta foi dita ao padeiro, ao carteiro, ao dono da vendinha da esquina, à vizinha fofoqueira... E foi “Cindy é ela” pra cá, “Cindy é ela” pra lá, até que a menina passou a ser conhecida como “Cinderela”.

Cinderela estava resignada com sua vida. Em grande parte porque ela começou a ser serviçal muito cedo e não conhecia outra vida. Ela cozinhava, limpava, passava, arrumava, polia, areava, esfregava, varria, dobrava, guardava e todas as outras coisas que as “boas donas de casa recatadas e do lar” fazem. Além dessas tarefas comuns, ela precisava arrumar o cabelo de suas irmãs e madrasta, costurar e remendar roupas, lixar calos nos pés delas, elogiá-las a cada 15 minutos, depilá-las e ser a manicure delas. Infelizmente para a garota, ela não era uma manicure talentosa e sempre borrava tudo, o que a rendeu o apelido de “borralheira”.

E, como ela era inegavelmente bonita e nem mesmo as suas megeras “parentas” conseguiam dizer o contrário, além de ser extremamente caseira (por livre e espontânea pressão) ela conseguiu o pequeno feito de ser chamada de “gata”. Portanto, “a gata borralheira”.

E, se alguém te contou a história de outro jeito, a pessoa está mentindo.

Falando em gatos, a madrasta tinha um gatinho, o pequeno Lúcifer. Nome adorável, não? A pior parte é que a madrasta tem um gosto melhor para nomes que os pais da Cinderela pelo simples fato de o nome “Lúcifer” ser pronunciável. E, deixando os preconceitos de lado, é um nome bonito, vai.

Mas Cinderela e Lúcifer não se davam muito bem. Não era pelo fato de Lúcifer ser um gatinho demoníaco (sem trocadilhos), nem pelo fato de Cinderela se ressentir um pouco por Lúcifer ser mais bem tratado que ela, nem por qualquer outro motivo razoável ou não que você possa imaginar. O motivo dessa “inimizade” era que Lúcifer, como um bom gatinho, caçava ratos. E Cinderela, a despeito do apelido, era amiguinha dos ratinhos.

Estranho? Talvez. Mas dá um desconto, a garota cresceu sozinha e sem contato com outras pessoas da sua idade além das irmãs malvadas. É compreensível que ela quisesse alguém para conversar. Nem que fossem ratos!

Cinderela gostava dos ratinhos, os ratinhos gostavam de Cinderela protegê-los de Lúcifer e alimentá-los... Era uma amizade como qualquer outra, baseada em vantagens e interesses.

Um dia, todas as damas da cidade foram convidadas para um grande baile da realeza, porque, aparentemente, não havia dinheiro o bastante para fiscalizar o trabalho infantil e maus tratos, mas havia de sobra para uma grande festa extravagante. Se bem que eu não tenho certeza se Cinderela ainda se enquadraria em “trabalho infantil”, afinal, ela já tinha dezenove anos... “Trabalho escravo” seria mais adequado.

Enfim, a moça ficou sabendo do baile e implorou para sua madrasta deixá-la ir. A mulher, obviamente, disse “não”, mas a garota implorou e pediu e insistiu e repetiu até que a madrasta acabou concordando só para calar a boca dela e ficou acordado o seguinte: se Cinderela conseguisse faxinar a casa inteira, cozinhar, lavar a louça, aparar a grama, regar as plantas, arrumar os quartos, passar esfregão, lustrar os móveis, calcular os impostos que pagavam as festas da realeza, tirar o pó do sótão, encerar o chão e dar um banho em Lúcifer antes da hora do baile, ela poderia ir.

Cinderela, é claro, ficou muito feliz com esse acordo super justo e completamente razoável e se apressou a cumprir todos os itens da lista. De algum modo, ela conseguiu e, ao entardecer, a casa brilhava de limpa e o chão e os móveis brilhavam tanto que pareciam porcelana. Depois disso, ela ainda teve que ajudar suas meias-irmãs a se ajeitarem para o baile: forçou uma cinta a caber nelas para que a silhueta fosse a mais fina e elegante possível (respirar era só um detalhe desnecessário afinal...), conseguiu, de algum jeito, fazer com que sapatos de salto dois números menores que o ideal entrasse em seus pés, porque pés delicados e pequenos eram mais bonitos, pintou suas unhas (e depois repintou porque borrou tudo na primeira vez), arrumou seus cabelos num penteado alto e espalhafatoso típico dos nobres, as maquiou (ou, na minha sincera e humilde opinião, rebocou a cara delas), enfim, as tornou irreconhecíveis.

A madrasta da garota ficou surpresa por ela ter terminado tudo a tempo, mas, é claro, não tinha intenção alguma de levar a reles serviçal a um baile, então acabou com suas esperanças em uma única frase: “com que roupa você vai?”.

O sorriso de Cinderela murchou e seu entusiasmo desvaneceu, ela era uma simples empregada e, como tal, não tinha roupas chiques ou elegantes, apenas seu uniforme prático e sem graça e um ou dois vestidinhos simples de algodão e já remendados para quando ela precisava ir à padaria ou à missa ou só dar um passeio. Para um baile? Nada!

A moça até pensou em roubar um dos vestidos das irmãs, mas desistiu da ideia, em parte porque era boazinha e bem intencionada, em parte porque sua madrasta aplicaria punições severas, e, a maior parte, porque os vestidos de suas irmãs eram muito apertados e a garota tinha amor a sua capacidade de respirar. Ela também pensou em usar o antigo vestido de sua mãe, o qual ela acabou “herdando” e, provavelmente, já servia nela. Entretanto, Cinderela lembrou que, pouco antes, havia tentado “arrumar” o vestido antigo com seus amiguinhos ratos e pássaros e, bem, o vestido era velho, não muito resistente... Acabou rasgando por causa das garrinhas dos ratos e bicos dos pássaros no tecido fino. Ela não tinha mais opções.

O que fazer quando não se consegue ir para uma festa de uma pessoa que você nunca viu na vida? Aparentemente, você chora. Ao menos, foi o que Cinderela fez. Ela chorou e chorou e chorou e chorou mais um pouco e continuou chorando. Os ratinhos a observaram com interesse por uns dois minutos antes de resolverem que ganhariam mais indo à cozinha procurar comida. Ela chorou até ser interrompida por uma voz feminina que surgiu de repente:

— Essa não! Ela tá chorando! Fica calma, miga, que chorar deixa os olhos vermelhos e borra o rímel todo! — Disse uma garota que devia ser uns dois ou três anos mais nova que Cinderela.

A moça parou de chorar, mais por choque que por qualquer outro motivo, e olhou a estranha. Ela era baixinha, usava um vestido simples, azul claro e esvoaçante, óculos redondos de armação fina e metálica, tinha cabelos ruivos presos em duas tranças e sardas adornavam seu rosto curioso. O que mais chamava atenção era o par de asas que a mantinha a alguns centímetros do chão.

— Aaahhh!!!! O que é você?! Como entrou aqui?!

— Shh... Calma... Calma... — A ruiva tentou retomar o controle. — Eu sou Boca, fada madrinha estagiária em treinamento. Estou aqui para te levar ao baile, só não grita de novo!

— Ahn... Boca? E eu achando que meus pais eram ruins com nome... — Cinderela sorriu, ainda achando a cena meio bizarra, mas, bem , ela fez amizade com ratos, por que não uma fada estagiária?

— É apelido para “Boca de Leão”, mas pode me chamar de Antirrhinum majus se preferir. E você é...? — A fada ficou satisfeita por conseguir começar uma conversa civilizada e sem berros.

— Cyndaquearelleyr, mas me chamam de “Cinderela”. E eu fico com “Boca”.

— Agora entendo o que quis dizer com seus pais não saberem escolher nomes... Então, Cinderela, vamos te arrumar para o baile? — Ela sorriu animada.

— Baile? Mas eu já estou atrasada e não tenho nem roupa para ir e minha madrasta vai me matar e...

— Calma, miga, respira. Um, dois, um, dois... Melhor? Agora vamos te arrumar!

— Espera! Antes, deixa eu entender uma coisa, por que as fadas se importam se eu vou ou não num baile?

— Na real? Não faço ideia. Mas me mandaram aqui para treinar porque, bem, estagiárias não podem receber missões importantes, principalmente eu. — Boca riu meio envergonhada.

— Por quê? — Cindy repentinamente ficou interessada.

— Bem... No meu último “teste”, me deram uma missão bem simples... Eu só tinha que ser o cupido de alguns animais da floresta durante o acasalamento. Garantir a perpetuação das espécies e coisa e tal, sabe? Na real, eu nem tinha que fazer nada, os animais fazem essas coisas praticamente sozinhos...

— E...?

— Bem... Tinha esse pato e esse castor, e eles ficavam tão fofinhos juntos... Eu não pude evitar... Agora temos o ornitorrinco. — Ela deu um sorriso amarelo. — Desde então, não me dão mais trabalhos de cupido, então eu me inscrevi para fada madrinha e fui aceita! Mas chega de blá blá blá, senão você vai passar de “elegantemente atrasada” para “penetra na festa”.

Dito isso, as duas foram para o quarto da moça. Boca fez Cinderela dar algumas voltas no pequeno quarto para analisá-la e, com sua varinha de condão, fez surgir na garota um elaborado vestido de baile vermelho brilhante com detalhes em seda.

— Então, que tal? — A fada sorriu com expectativa.

—... Muito... Apertado. — Cinderela arfou.

— Ai, miga, tem que aguentar um apertinho para impressionar os boys!

—... Não... Consigo... Respirar...

—Ai, tá bem. Você que manda, chefia. — Com mais um movimento da varinha, o vestido vermelho apertado sumiu e deu lugar a outro, azul, ainda brilhante, e com várias lantejoulas, mas bem mais folgado. — Melhor?

— Ele pinica. — A moça reclamou enquanto se coçava.

— É por causa das costuras das lantejoulas, não pode aturar isso um pouquinho?

Cinderela negou com a cabeça.

— Como eu vou te arrumar se você não tem tolerância a pequenos desconfortos da moda? Nunca vestiu nenhuma roupa chique?

Ela negou de novo.

— Que tal seu vestido? Ele parece bom. — Cinderela sugeriu, apontando para o vestido simples de algodão da fada.

— Essa coisa velha? É parte do meu uniforme na verdade, prefiro roupas mais chamativas, mas tudo bem, pode dar certo. — Ela deu de ombros e agitou a varinha de condão, quando a moça percebeu, estava usando o vestido da fada enquanto essa se encontrava apenas de calcinha e sutiã em sua cama.

O rosto de Cinderela ficou tão vermelho quanto o primeiro vestido que experimentou.

— Você vai ficar assim? — Perguntou envergonhada.

— Que foi? Não gostou? Já sei! Está muito sem graça! Espera um minutinho. — Outro balanço da varinha mágica e a calcinha e sutiã simples e sem estampas foram substituídos por um lingerie de oncinha. — Agora sim!

— Não foi isso que eu quis dizer!

— Tá bom, tá bom... — Boca revirou os olhos e uma camiseta azul e uns jeans se materializaram em si. — Prontinho, completamente decente.

— Bem... O vestido é confortável. — Cinderela tentou mudar de assunto e esquecer a cena esquisita.

— Ótimo. E até que caiu bem em você. — A fada sorriu. — Agora, vamos aos sapatos. Ninguém pode fazer uma entrada triunfal sem um belo par de sapatos! Qual o seu número?

— Hm... Quarenta e um... — A moça sussurrou envergonhada.

— Quê?

— Quarenta e um.

— Você calça quarenta e um?

Ela assentiu.

— Uh, tudo bem, que seja. — Um aceno da varinha mágica e um par de saltos de cristal tamanho quarenta e um apareceram. — Experimenta esses.

Cinderela obedeceu e se surpreendeu por ter, pela primeira vez, saltos que coubessem em seus pés. Não apertava demais e a deixava realmente graciosa... Até que ela deu dois passos e quase caiu no chão.

— Opa, cuidado! — Boca a segurou. — Quer um número maior?

— Não, o tamanho está bom. — Cindy deu mais alguns passos experimentais, estendendo os braços para tentar manter o equilíbrio.

— Então por que você está andando feito um pinguim?

— É que eu nunca andei de salto antes.

Mais uma quase queda e Boca decidiu que era o bastante e, com um movimento do pulso, girou a varinha e os sapatos sumiram.

— Acho melhor tentarmos outra coisa... Que tal sapatilha?

— Muito apertada.

— Gladiadora?

— Muito amarrada.

— Pantufa?

— Muito fofa.

— O que é que você usa no dia a dia então?!

— Hm... Em geral? Nada.

— Você fica descalça?

— Aham. É mais confortável para as tarefas de casa.

— Ai meu pai. — Boca olhou suplicantemente para o teto. — Tá bom, já sei algo que é impossível você reclamar.

Dito isso, um par de havaianas floridas número 41 surgiu nos pés da moça.

— Confortável. — Cinderela sorriu, desfilando pelo cômodo.

— Eu sei. Acho que é o melhor que dá para fazer. — A fada estagiária deu de ombros. — Lavo minhas mãos. Agora, deixa eu ver que horas são... Ai, essa não, estamos atrasadas! Corre, passa um batom, faz um coque que não dá mais tempo de se preocupar com isso!

Assim, a fada voou em disparada para terminar os “preparativos” e a moça correu apressada atrás dela enquanto tentava passar um batom vermelho vivo. Obviamente, não foi uma boa escolha, e ela acabou passando batom no rosto inteiro.

— Ai, olha só para você, borrou a cara inteira. — Boca parou a correria e suspirou, limpando o rosto de Cindy com um pano úmido. — Quer saber? Vai de cara limpa mesmo, você é bonita e estamos sem tempo.

Cinderela decidiu, sabiamente, ficar calada e não comentar seu apelido de “borralheira”.

A garota observou curiosa enquanto Boca revirava a plantação do quintal.

— Onde estão as abóboras? — A fada indagou.

— Abóboras?

— É, abóboras, aquela coisa grande e laranja que usam no Halloween.

— Eu sei o que são abóboras!

— Então por que perguntou?

— Não foi o que eu quis dizer! E não tem abóbora nessa época do ano.

— O quê?! Sem abóbora?! E como eu vou fazer uma carruagem para te levar sem abóboras?!

— Você sabe fazer carruagens com abóboras?! Que incrível!

— Bem... “Saber” é uma palavra muito forte. — Ela preferiu não dizer que quase não passou na prova teórica, quem dirá na prática. — Mas não pode ser tão complicado, eu passei na prova!

— Bem, não tem abóbora.

— Abobrinha?

— Não.

— Melancia?

— Não.

— Melão?

— Não.

— Que tal uma berinjela?!

— Nop.

— O que tem então?!

— Hm... Tem bastante cenoura.

— Cenoura? — Boca repetiu devagar, meio incrédula, meio desesperada. O que ela faria com uma cenoura? Ela ia acabar repetindo o ano e sendo estagiária para sempre! — Ai, tudo bem, vai ter que servir. Me diz pelo menos que tem ratos!

— Claro! Meus dois amiguinhos.

— Amig... Quer saber? Esquece, não quero nem saber, já está atrasada. Vá buscá-los.

— Tá bem.

E assim a fada estagiária ficou andando em círculos pensando em como fazer dois ratos e uma cenoura virarem um meio de transporte aceitável.

— Vejamos, vejamos... Transformar ratos em cavalos, eu posso fazer isso. Eu posso. Eu posso. — Ela repetiu como um mantra, tentando recordar o passo a passo da transformação... Essa foi a aula que ela dormiu?

A fada encarou os ratos determinadamente, balançou a varinha mágica, disse algumas palavras esquisitas de feitiço e... BUM! O feitiço deu certo!... Ou quase. A ideia era transformar ratos em cavalos, mas Boca acabou deixando os ratos do tamanho de cavalos. Bem, era perto o bastante.

— Vai ter que servir. — Boca deu de ombros, analisando os ratos brancos gigantes com olhos vermelhos e caudas compridas. Se ela não estivesse tão acostumada a esses efeitos colaterais estranhos, talvez os achasse assustadores.

— Fofos. — Cinderela comentou e acariciou um deles. — Eu vou montar?

— Não, não pega bem uma dama aparecer numa festa montada em ratos. Teoricamente, eles puxariam uma carruagem de abóbora, ou, no nosso caso, cenoura.

Dito isso, ela girou a varinha de condão e, repentinamente, a cenoura adquiriu proporções enormes.

— Aaaahhh!!!! Será que tudo que eu consigo é aumentar as coisas? Eu queria transformar!!!!! — A fada perdeu a paciência. — Ah, tá, que seja, eu nunca vou me formar! Vamos ajeitar isso logo. Deixa eu ver o que dá para fazer...

Ela invocou uma faca, uma colher, uma tesoura e até um estilete. Cinderela a olhou curiosa.

— O que você vai fazer?

— Esculpir um assento nessa cenoura... Por curiosidade, você tem alguma noção de como esculpir num vegetal?

A moça negou.

— É, acho que eu vou ter que aprender na prática... Tudo bem, vamos lá!

Depois de vários minutos, suor, lágrimas, sangue e ataques de raiva, Boca admirava quase satisfeita sua “obra”. Uma cenoura gigante com um assento tosco esculpido no meio e um rato gigante em cada extremidade a segurando com os dentes. Era... Exótico, no mínimo, mas o importante é que se movia, então era um meio de transporte válido.

            — Muito bem, pode subir. Hora da festa!

            E assim, Cinderela foi ao baile montada numa cenoura gigante carregada por dois ratos monstruosos.

            E eu repito: se você ouviu uma história diferente, mentiram para você.

            Cindy chegou ao baile toda animada, já que era a primeira festa que ela ia na vida, desmontou da cenoura gigante, acariciou os ratos rapidamente e saiu correndo até a porta com suas havaianas 41. Pura empolgação. Isso é, até que Boca a parou.

            — Pera aí, miga, uma última coisinha: meia noite você tem que dar o fora. Rápido.

            — Por quê?! Já são onze e meia! Assim eu nem vou curtir a festa!

            — Foi mal, achei que conseguiríamos chegar antes... É que a “amostra grátis” dos feitiços só dura até meia noite. Mas, dependendo do seu orçamento, podemos prolongar a festa. Temos o plano básico, que vai até uma da manhã, o plano plus, que vai até duas e incluiu um drink, o plano mega, que vai até três e incluiu um acompanhante e o plano super mega plus, que vai até seis da manhã e tem cinco desejos incluídos. Então... Qual você prefere?

            — Bem... Eu tenho exatamente zero reais no orçamento...

            — É, saia correndo à meia noite.

            — Tá bom.

            — Arrasa, miga! Faça a meia hora valer a pena! Ah, e mais uma última coisinha.

            — O quê?

            — Faça o que fizer, não diga seu nome completo, vai por mim, vai espantar os boys.

            *

            Assim que Cinderela entrou no grande salão de festa ostentando seu vestido simples de algodão, coque frouxo no cabelo e havaianas 41, todos os olhares se voltaram para ela. Com certeza, era uma figura distinta em meio às damas esnobes e extravagantes e aos cavalheiros com ternos bem elaborados.

            A moça, alheia aos olhares, se dirigiu prontamente à mesa do Buffet e se pôs a devorar os apetitosos quitutes, afinal, era a primeira vez que ela tinha acesso à comida boa de verdade. Enquanto ela comia, um par de olhos específico a observava com curiosidade, os olhos do príncipe.

            Ele nunca tinha visto uma dama se portar daquela maneira. Ela não parecia ter o mínimo interesse em conhecê-lo e se tornar sua noiva, como as outras garotas da festa, e se vestiu tão casualmente como se estivesse em sua própria casa. Vendo a cena quase hipnotizado, a única coisa que o futuro monarca conseguiu pensar foi: “tenho que dançar com ela!”.

            — Boa noite, senhorita. — Ele se aproximou com todo o charme da realeza.

            — Boa noite. — Ela respondeu com a boca ainda cheia de quitutes. — Quem é você?

            — Ah... Eu sou o príncipe e anfitrião desse baile. — Ele sorriu levemente confuso por alguém não o conhecer. — E a senhorita é...?

            — Eu sou Cyndaq... Digo, Cinderela.

            — Cinderela, belo nome. — Ele beijou suavemente a mão da moça. — Me concede uma dança, Cinderela?

            — Ah, tá , claro, vamos! — Ela enfiou um último doce na boca e se apressou a seguir o príncipe ao centro do salão.

            Será que ela devia ter avisado que não sabia dançar?

            Foi uma tentativa de dança bem desajeitada, Cinderela pisou várias vezes nos pés do príncipe, perdeu o equilíbrio várias vezes e, numa delas, ambos acabaram caindo no chão, ela por cima dele.

            — Ops... Desculpe. Eu não sei dançar muito bem...

            — Ora, tudo bem. — Ele riu divertido. — Eu adorei sua performance, foi deslumbrante.

            — Você é doidinho, não é? — Ela riu junto.

            — Vamos tentar de novo?

            — Claro, eu ado... Espera aí, que horas são?

            A moça olhou o grande relógio de ouro na parede que marcava 23h59min.

            — Essa não! Eu tenho que ir! Obrigado por tudo e tchau. — Cinderela gritou apressadamente enquanto corria para fora da festa e, na pressa, tropeçou e uma de suas havaianas ficou na escada, mas ela não voltou para buscá-la.

            Do lado de fora, ela não encontrou nenhum dos ratos gigantes, entretanto Boca a esperava com os braços cruzados e um semblante entediado.

            — Em cima da hora, hein, miga? Vamos logo! — E, num passe de mágica, ambas estavam de volta ao quarto da Cinderela. — Agora me conta tudo! Quero detalhes!

            — Bem... A comida era deliciosa! Tinha cada doce e uns drinks que eu nunca tinha nem ouvido falar!

            — Tá, tá, chega de comida, conheceu alguém? — A fada indagou ansiosa.

            — Bem... Teve um cara doidinho que me chamou para dançar.

            — Que incrível! Qual o nome dele?

            — Não faço ideia.

            — Ahhh... — Ela suspirou repentinamente desanimada. — Você tem que aprender a se comportar numa festa... Tá aí uma coisa que devíamos ter treinado! Sabia dançar pelo menos?

            — Não.

            — Nem um pouquinho?

            —Uhum. Mas ele se divertiu.

            — É, era doido mesmo...

            — Boca, cadê os ratos? Voltaram ao normal? Não vi eles me esperando depois da festa.

            — Eh... Você vai descobrir amanhã. — Boca sorriu sem graça, já imaginando as manchetes nos jornais: “ratos gigantes causam estrago na praça!”... Como ela conseguiu deixá-los fugir? — Acho melhor me acostumar com a ideia de servir cafezinho para sempre, porque, depois de hoje, eu nunca mais deixo de ser estagiária!

            Depois disso, as duas começaram a fofocar outros temas sem importância e, por fim, Boca se despediu e deixou Cinderela dormir.

            Enquanto isso, no baile, o príncipe observava o belo e delicado chinelo número 41 que ele recolheu da escada.

            — Então, filho, escolheu sua futura noiva? — O rei sorriu.

            — Na verdade sim, pai. Quero me casar com a garota que perdeu esse sapato.

            — Uh... Tá bem, qual o nome dela? — Ele decidiu permitir o desejo extravagante de seu filho único.

            — Cinderela.

            — E onde ela está?

            — Bem... Eu não sei. Mas vou procurá-la até o fim do mundo se for preciso!

            E assim o príncipe começou sua busca por sua amada, a qual ele conheceu pelo período impressionante de meia hora.

            Ele foi de casa em casa e fez todas as garotas do reino experimentarem a havaiana. Todas tinham os pés muito pequenos e sempre sobrava demais. Porém isso não o desanimou e, na última residência, ele encontrou a madrasta com suas duas filhas. Ele perguntou por Cinderela, mas elas negaram conhecê-la. A madrasta insistiu para que suas filhas experimentassem, mas ambas tinham pés delicados de princesa número 35/36 e a havaiana ficou enorme nos pés delas. O príncipe insiste em procurar Cinderela no resto da casa, pois não confiava na honestidade da madrasta, e a encontra trancada em seu quarto.

            — Cinderela? É você mesmo?

            — Ah? Doidinho? Você por aqui? — Ela boceja, pois tinha acabado de acordar.

            — Se importa em experimentar esse sapato? — Ele entrega a havaiana.

            — Ah! Minha chinela, você achou! — Ela calçou a havaiana florida. — Mas por que queria que eu colocasse?

            — Para ter certeza que era você mesmo, meu amor! Casa comigo? — Ele a abraçou como se não a visse a séculos, mesmo que a tivesse conhecido na noite passada.
            — E você precisa me ver calçando um sapato? Não bastava olhar para a minha cara? Eu hein... Doidinho mesmo.

            — Então, você casa comigo?

            — Casar? Mas nos conhecemos ontem!

            — Ora, foi amor à primeira vista. Além do mais, eu posso te tirar dessa casa com essa madrasta horrível e você pode ir morar comigo!

            — Morar com você?

            — Sim!

            — Como sua esposa?

            — Sim!

            — E virar rainha?

            — Sim!

            — Mesmo a gente só se conhecendo por meia hora e você nem saber me identificar pelo rosto?

            — Sim!

            — Uh... Tá bom. — Cinderela deu de ombros. Ela tinha uma quedinha pelos doidinhos.

            — Obrigado! Obrigado! Obrigado! Você me fez o homem mais feliz do mundo!

            Infelizmente, poucos dias depois, Cinderela morreu de Leptospirose.

            Lúcifer, o gato, sorriu ironicamente. Ou, ao menos, tão ironicamente quanto um gato pode sorrir, afinal, quem mandou não deixá-lo cuidar dos ratos?

            E, como é tradição, vou deixar morais aceitáveis em vez de uma moral única porque, bem, o conto de fadas é meu e eu dou quantas lições eu quiser. Cabíveis ou não.

            Moral aceitável um: fazer amizade com ratos não é uma boa ideia. Principalmente se as condições sanitárias são duvidosas.

            Moral aceitável dois: Lúcifer pode ser um mala, mas é um mal necessário.

            Moral aceitável três: pessoas que te pedem em casamento um dia depois de te conhecerem provavelmente têm alguns parafusos a menos. Alguns muitos parafusos a menos.

            Moral aceitável quatro: Dinheiro para festas luxuosas de elite tem mais prioridade que verba para fiscalização de trabalho escravo.

            Moral aceitável cinco: estagiários sofrem seja lá qual for a espécie ou trabalho destes.

            Moral aceitável seis: essa não é bem moral, mas eu sou o narrador então eu posso: feliz aniversário, LittleHobbit!

“E todos foram moderadamente felizes por um período considerável de tempo”.

            Fim.


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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero ter agradado!

Até a próxima!