Abiodun escrita por Ahelin


Capítulo 4
Epílogo


Notas iniciais do capítulo

Olha eu de novo!
Dessa vez pra semifinal, trazendo o último capítulo de Abiodun :3 obrigada a todo mundo que leu até aqui e me incentivou.
E, mais uma vez, agradecimentos especiais à Anna!

O tema dessa rodada é o poema Recuperação da Adolescência, da Ana Cristina César. Boa leitura e boa sorte pra mim!



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Ituri sempre cantava a mesma música de ninar para seus filhos. Todos ali a aprendiam na infância e levavam suas lições consigo por toda a vida. Falava da antiga história de um prisioneiro de batalha numa tribo inimiga que, após muito esforço, conseguiu escapar. Sua única chance de fuga estava ali, bem ao seu alcance. Porém, olhando para trás, avistou seus amigos que por tantos anos foram seus únicos companheiros. Ali, naquele momento, tomou uma decisão: desistiu de seus próprios anseios para dar a eles a liberdade, tornando-se um grande herói.

A doce voz da mulher emocionava tanto as crianças quanto seu marido, pois ela conseguia transportar à melodia toda melancolia de um homem que abriu mão de sua felicidade para salvar aqueles a quem amava. Por vezes, Abiodun também adormecera embalado pela canção.

O homem despertou assustado. Tinha pego no sono por um instante e, agora, o cenário evaporava lentamente, deixando apenas a névoa de sua saudade. A fria brisa da madrugada ajudou a anestesiar sua mente do cansaço por tanto desejar reviver aquilo.

 Por ora, tinha outros assuntos a resolver. Uniu suas forças para se levantar e repassar seu plano mentalmente, para que conseguisse sair antes dos primeiros raios de sol. Era simples, deveria chegar à costa e entrar num dos navios e então chantagearia ou mataria os comandantes; o que fosse mais fácil.

Conhecia o percurso, levaria, no máximo, um dia de caminhada. Passaria por duas propriedades e um pequeno pedaço de terra que antecedia a praia onde ainda haviam árvores nativas, mas era preciso ter um enorme cuidado. Porém, nada que pudesse lhe parar.

Esgueirou-se pelas plantações, suplicando aos deuses para não ser visto por ninguém. Chegaria ao mar logo após anoitecer, quando os barqueiros já estivessem dormindo.

Munido apenas de uma pequena faca, iniciou sua jornada. Seus pés descalços eram maltratados pelas pedras no chão e seus braços nus, castigados pelas folhas de cana conforme corria exasperado através da primeira propriedade.

Não temia a possibilidade de deparar-se com algum escravo durante a fuga, pois eles protegiam uns aos outros. Até onde sabia, nunca um homem negro fora recompensado por seus esforços, nem se ajudassem a capturar um fugitivo.

Quando o sol atingiu seu ápice, Abiodun parou abruptamente. O cansaço não lhe incomodava, nem mesmo os cortes espalhados por seu tronco; estava acostumado a condições muito piores que aquelas. Fechou os olhos e escutou.

Outra vez, o grito que o detivera ressoou, mais alto e desesperado que o primeiro. A voz infantil que o proferira era inconfundível, tal qual o assobio do chicote rasgando o ar e seu estalo ao bater num corpo.

Durante o pequeno silêncio que se seguiu, o homem ponderou. Até então, seu objetivo era claro, mas ali surgiu a dúvida. É fato que, numa vasta gama de opções, é sempre mais difícil ater-se a apenas uma; ainda mais se todas parecem certas aos olhos. Para ele, ouvir a tortura daquela criança foi como ouvir seu próprio filho; o filho que, talvez, nunca tornasse a ver se desviasse seu caminho naquele momento.

Pressionando os dedos em torno do cabo de sua faca, rumou em direção ao som, que agora não passava de um engasgo, um choro doloroso preso na garganta. Não demorou a chegar sorrateiramente ao fim do canavial e encontrar um garotinho no chão, aos pés do branco que estalava seu chicote no ar, como que desafiando qualquer um dos escravos à sua frente a intervir.

— Isso vai ensiná-los a nunca mais roubar da cozinha! — gritou ele; olhando com desprezo para o garoto. Preparou-se para golpeá-lo outra vez.

Por ironia do destino, ele estava de costas para Abiodun. Não o viu surgindo, é claro; só percebeu a presença atrás de si quando uma fina lâmina cortou-lhe o pescoço.

Sua mão largou o açoite, talvez pela surpresa, espanto; talvez pela fraqueza causada pela rápida perda de sangue. Aspirava fundo, buscando ar que não conseguia. Caiu de joelhos, ainda lutando, porém o último sopro de vida lhe deixou antes que seu rosto tocasse o solo.

Todos ali encaravam seu herói com um misto de admiração, incredulidade e medo. A maioria o achava louco, mas Abiodun não sabia, ou talvez não se importasse. Olhou para a arma com a qual acabara de tirar a vida de um homem e salvar a de um menino.

Naquele momento, ele entendeu; recuperar seu passado seria impossível. Tão difícil quanto ancorar um navio no ar. Seu lar agora era aquela terra, e sua missão talvez fosse ajudar os que eram mais fracos que ele.

Aceitando seu destino, correu de volta ao canavial e nunca mais foi visto. Porém, aquele branco não foi o último a morrer...

Qualquer um que ousasse fazer mal a seus protegidos, não veria outro nascer do sol. Durante muitos anos, mais de mil escravos fugiram ancorados em uma esperança, outros mil desapareceram durante a noite. Navios foram roubados, portos foram saqueados, fazendas foram tomadas, e tudo isso partira da iniciativa de um só homem.

Seu nome tornou-se santo e sua vida tornou-se lenda.

Por décadas e décadas, as mães contaram a seus filhos a história daquele que, sozinho, levou esperança e liberdade a tantos deles. Até hoje, os descendentes daqueles que retornaram às suas casas graças a este salvador, entoam cânticos de gratidão que eternizam seu espírito.

E, mesmo com a mais dedicada busca, nunca se encontrará em livros a história de um herói mais determinado do que esse, cujo nome era Abiodun.

 


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Notas finais do capítulo

Eu usei duas interpretações desse poema ao longo do capítulo:
("É sempre mais difícil
Ancorar um navio no ar")

. A noção de que, quando existem muitas possibilidades, uma vastidão de escolhas, é sempre mais difícil escolher apenas uma.
. Assim como recuperar a adolescência, voltar ao passado, é [quase] impossível ancorar um navio no ar.

Bom, espero que tenham gostado e que eu passe haha coloquei todo o meu amor nessa história.
Câmbio e desligo.



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