Time Web escrita por Mabée


Capítulo 8
Capítulo 8 - Passando tempo




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Ele está à sua procura, ecoou a voz novamente, vinda de todas as direções possíveis e adentrando seus ouvidos. A jovem sentiu seu coração pulsar cada vez mais forte e saltou na cama em susto, acordando. Os pelos de seu corpo inteiro estavam arrepiados, a voz ainda clara e límpida em sua mente não a abandonava.

Ela olhou ao redor para encontrar os rastros de sol passando pelo tecido da cortina e pousando em sua cama. A brisa gélida matinal beijava sua pele com cuidado para não causar tanto contraste. A garota espreguiçou-se e passou as mãos pelos braços na intenção de mandar os arrepios embora, mas não surtiu em muito efeito. Seus olhos caíram na penteadeira, encarando o cubo luminoso que não perdeu nada de sua luz desde a noite anterior. Sentando-se na cama, respirou fundo e levantou-se por completo.

Caminhando descalça pelo carpete, aproximou-se do lugar e tocou o colar com cuidado, um tanto receosa de que a voz voltasse, mas ela não recebera qualquer outro sinal desde o primeiro.

O mais estranho de tudo foi a cena que ela tinha certeza de ter presenciado, para depois descobrir que esteve desmaiada o tempo todo. Aquele ritual, o ouro queimando em chamas bizarras, a rosa, a voz, ele está à sua procura. Ela sabia que aquilo fora real, como uma transição de sua alma para outro lugar, mas era real, de alguma maneira ou outra. As vozes soavam por direções de onde estavam as pessoas e o calor das chamas estava próximo de sua pele, mas não a queimava.

Peony bocejou e decidiu que não treinaria naquela manhã. Seu corpo doía nas laterais e o cansaço a dominava mais do que nunca, até porque sua noite fora péssima e cansativa por causa dos pensamentos que não a abandonavam. Ela caminhou para o banheiro e tomou uma rápida chuveirada para voltar ao quarto em seguida e procurar por roupas para usar. Acabou colocando jeans pretos com as botas de cano curto no mesmo tom, tendo pequenos saltos que a deixavam com um ar de seriedade; uma blusa branca que era dois números maior que o dela e um suéter azul da NASA, que era de seu pai anteriormente, mas por ser confortável, a jovem acabou por declarar seu.

Voltando para a penteadeira, pegou uma escola e passou pelos fios já secos, ajeitando-os delicadamente. Seus olhos caíram do espelho para o cordão, gelando sua espinha novamente. Um tanto incomodada por ter um medo bobo de um simples colar, a garota revirou os olhos para si mesma e pegou o cordão de ouro velho, jogando-o por cima da cabeça e o deixando pendurado sobre o peito. Nenhuma diferença.

Pegando a mochila e descendo as escadas, a jovem saiu um tanto da rotina ao trocar as barrinhas de cereais por uma maçã que pendia na fruteira. Lavando-a, fez o café e colocou-o na garrafa, caminhando para fora da casa.

[…]

Chegando no colégio, Peony seguiu o caminho para o editorial e notou estar vazio, nem mesmo Betty e Jason estavam ali ainda. A garota pegou o celular e olhou o horário, vendo que ainda eram 7:22, faltando quase quarenta minutos para o primeiro período. A jovem deu de ombros e trancou-se em sua sala, ligando o notebook e bebendo longos goles de café enquanto acessava os arquivos que havia recebido por e-mail. Inúteis, não conseguem nem imprimir um artigo por conta própria, pensou.

A garota aprofundou-se tanto no trabalho que não prestou atenção que já havia passado vinte minutos. Ela encarou pela parede de vidro, vendo o movimento começando a crescer no editorial, e quando foi abaixar o olhar, algo prendeu sua atenção, e ela voltou a levantar o rosto.

Peter Parker adentrava o lugar com passos lentos. Seu corpo estava desengonçado, e ele parecia cair para frente a cada movimento que seus pés faziam, como se estivesse sendo controlado por uma máquina, e não por ele mesmo. Seu rosto a surpreendeu, tendo uma grande mancha roxa abaixo do olho direito e as pálpebras parecendo pesadas para se manterem abertas. Ele estava bem vestido, em comparação à última vez que ela o vira, agora usando um suéter azul por cima de uma camisa xadrez verde que só aparecia nas mangas e gola, e seu topete estava no lugar.

Todos ao redor pareceram parar o que estavam fazendo para prestar vários minutos de atenção no garoto que se sentou em uma das escrivaninhas e tirou um caderno da mochila, começando a escrever. Sua expressão era de foco e dor, como se ele estivesse se esforçando demais para estar fazendo qualquer outra coisa enquanto os outros cochichavam sem vergonha alguma.

Peony sentiu uma grande fúria percorrer suas veias e levantou-se da escrivaninha no mesmo momento, caminhando até a porta com raiva, fechando os punhos com força. Ela empurrou a maçaneta e encostou-se ao aro, encarando todos do editorial de braços cruzados. Ninguém pareceu notar sua ação, então ela pigarreou duas vezes, ainda não surtindo efeito.

               — Ei! — Chamou, esgotando-se em paciência. Todos os olhares voltaram-se a ela, com exceção de Peter, que ainda tentava focar no caderno. — Vocês não têm nada melhor para fazer?

               — Na verdade, não — disse um garoto ao cruzar os braços de volta, desafiando-a.

               — Você deve ter se esquecido quem manda aqui — a jovem retrucou, sorrindo com calma e indicando a porta de saída com o dedo. — Saiam, vocês não são necessários agora.

Com mais sussurros, a equipe dos cochichos deixou o editorial, fazendo o ambiente aderir-se à uma calma absurda e aconchegante. A garota sorriu para si mesma, adorando estar no comando, e só então lembrou-se do motivo para ter agido de tal modo. Olhando para frente, encontrou Peter com o caderno agora fechado e encarando-a de volta. Ela torceu a boca e caminhou para perto dele, puxando a cadeira da escrivaninha ao lado e esticando as pernas no chão.

               — Devo sair? — Ele questionou, mais com um tom de brincadeira.

Ela sorriu para ele e revirou os olhos, colocando os braços sobre a barriga.

               — Só se você quiser — ela respondeu.

               — Achei que aqui fosse o único lugar que eu pudesse ficar em paz, mas acabei me enganando — o garoto girou o corpo na cadeira e encarou o chão, soltando uma leve risada em seguida. — E achei que você também seria a única pessoa que não me olharia assim.

Peony arqueou as sobrancelhas, confusa.

               — Assim?

               — Com pena — ele afirmou, não estando muito contente.

               — Posso te mandar sair também, se quiser — ela torceu a boca novamente, um tanto incomodada. — Não confunda gentilezas com pena, Peter.

Peter abriu um sorriso e a jovem caminhou de volta para sua sala, voltando ao trabalho. A garota sabia que tinha feito o certo, mas seu peito ainda doía um tanto, como se ainda faltasse algo a ser dito. Não, vocês não são amigos, pensou ela, dissipando o pensamento, mas não se livrando totalmente dele.

Ela ergueu a cabeça novamente e olhou para o garoto que mexia em sua máquina fotográfica com cuidado, como se fosse feita da mais fina porcelana existente. Peony sabia que Peter estava em seu momento mais vulnerável, seu estudo sobre linguagem corporal dizia tudo: o cenho franzido demonstrava os pensamentos incansáveis; as mãos frenéticas demonstravam a indagação; os olhos fixos demonstravam tristeza… era tudo um conjunto para o caos. E ele já parecia ter alcançado o tal nível.

A garota ergueu-se da cadeira em um movimento involuntário, desejando que pudesse voltar para trás da escrivaninha e ignorá-lo por completo, mas sua mente a contrariava, lhe ordenando caminhar até onde ele estava e fazer algo. Pela primeira vez na vida, Peony não tinha nada planejado para dizer, todavia, pensou que não haveria mal algum em aparecer ali novamente. E então, quando piscou, já estava ao lado de Peter, quieta, sem qualquer pensamento fazendo rondas pela mente. Quando o garoto percebeu sua presença, olhou para a jovem que entrou em um leve estado de pânico.

               — Você gosta de pizza? — Disparou ela sem pensar. Em seguida, arrependeu-se profundamente de ter deixado a escrivaninha.

O garoto torceu a boca e voltou a franzir o cenho, pensativo.

               — Eu nasci no Queens — respondeu ele, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.

Peony cruzou os braços e sentiu-se um tanto ofendida pela arrogância, mas deixou passar, tentando não tornar a situação ainda pior. Ela lembrou-se o porquê de estar ali, inicialmente.

               — Eu conheço um lugar que tem uma pizza de aspargos ótima! Sério! Se você topar, podemos passar lá depois, não é muito longe e eu pago…

               — Obrigado pelo convite — Peter interrompeu-a, não querendo nada com o assunto —, mas eu preciso estudar.

Com isso, ele levantou-se da cadeira giratória e pegou a mochila, jogando-a nas costas e deixando o local. Peony permaneceu ali, congelada e indignada com o que havia acabado de acontecer. Ela entendeu que o garoto estava machucado, e ela podia ser a última pessoa que ele gostaria de ver no seu primeiro dia de volta à escola, mas a garota só estava tentando ajudar. E ela não desistiria tão cedo da ideia.

[…]

Peony esgueirou-se na janela, olhando adentro à procura do garoto. Seus pequenos saltos se equilibravam no parapeito do vizinho debaixo, completamente silenciosos. Os olhos esverdeados analisavam o local com precisão, tentando encontrar o sujeito, até que ela avistou a porta se abrir e a luz ser acesa.

Peter caminhou até a escrivaninha, onde sentou-se e ligou a luminária, focando em seu caderno enquanto rascunhava algo com rapidez, quase que raiva. A garota passou a equilibrar a caixa de pizza em uma das mãos enquanto levantava a outra para bater na janela, tentando chamar sua atenção. O garoto desgrudou o olhar dos cadernos e olhou para o vidro, encontrando a jovem que indicava a pizza. Naquele momento, ela só tentava não cair do parapeito.

O moreno puxou a janela para cima, abrindo-a para que a jovem adentrasse. Peony deslizou para o lado de dentro e cambaleou até conseguir o equilíbrio devido entre a pizza, os pés e o restante do corpo. Peter encarou-a com confusão no olhar, mas sem a irritação de antes.

               — Como você subiu até aqui? — Questionou ele, fechando a janela.

               — Pela escada de incêndio — Peony retirou sua mochila, colocando-a no chão, apoiada à cama.

               — Nós não temos escada de incêndio — afirmou Peter, passando a mão pelas ondas castanhas bagunçadas e cruzando os braços acima do suéter bege.

               — Não?! — Peony torceu a boca e sentou-se na cama, abrindo a caixa de pizza. — Podemos comer?

Peter encarou a cena com mais confusão do que nunca, seu olhar expressando tudo. O garoto deu um passo para frente e olhou para a caixa de pizza, em seguida, olhando para a jovem que tentava sorrir, receptiva.

               — Peony, você não pode chegar do nada na casa de alguém, isso é…

               — Tarde demais, já estou aqui — a garota retirou as botinas e cruzou as pernas sobre o edredom arrumado da cama dele. — Aspargos e pepperoni, porque eu não sei seu sabor favorito.

O garoto hesitou, parecendo querer discutir sobre a presença inadequada, mas após algumas balbuciações sem sucesso, cedeu, sentando-se ao lado da jovem e pegando um pedaço com pepperoni.

               — Quem come pizza com aspargos? — Observou ele, enojado enquanto mordia a ponta do triângulo.

               — Pessoas com amor à vida — Peony mastigava o aspargo, sorrindo. — Você tem que provar.

A garota esticou o braço, oferecendo-lhe seu pedaço de pizza. Peter arqueou uma sobrancelha e tocou logo abaixo da crosta, seus dedos roçando levemente aos dela e seu corpo estremecendo ao toque. Os dois jovens aderiram-se à pigmentação avermelhada na região das bochechas, ignorando os olhares completamente. O garoto levou o pedaço à boca e mordiscou um dos lados, afastando-se enquanto saboreava, sua face sendo uma máquina de expressões.

               — É estranho, mas não é ruim — afirmou ele e a garota sorriu, voltando a comer. — Mas cara… aspargos.

Peony riu novamente, seu olhar pousando no garoto enquanto ela mordia mais um pedaço, seu riso aquecendo o coração do Parker. Ela nunca poderia saber disso, mas sua presença estava sendo uma das melhores coisas na vida do garoto ultimamente. Mais uma vez, os olhares se cruzaram no ar e criou-se uma tensão grande ali, fazendo com que os dois desviassem no mesmo instante. A garota, sem qualquer sutileza, voltou a encará-lo logo que ele havia virado o rosto, preocupada com suas emoções, e acabou encontrando um rastro de molho vermelho no canto da boca dele. Em um movimento rápido, ela pegou um guardanapo de papel e com a outra mão angulou a cabeça do garoto com o queixo.

               — Fique assim — ordenou ela logo que encontrou o ângulo perfeito, passando o guardanapo sobre sua pele com delicadeza.

Peter congelou sob seu toque, mesmo que fosse o movimento mais inocente vindo da garota. Ela colocou a ponta da língua entre os dentes, concentrada, e mal sabia ela que o garoto a observava com cautela. Quando finalizou o trabalho, a Peony abriu um curto sorriso e ele retribuiu em forma de agradecimento. Afastando-se, a jovem pegou outro pedaço de pizza e começou a arrancar os aspargos, jogando-os na boca.

               — Como vão os estudos? — Questionou ela, encostando-se à parede.

               — Dever de cálculo — ele indicou com a cabeça a escrivaninha e a garota assentiu.

               — Eu odeio cálculo — comentou ela, mordiscando a crosta.

               — Mas você é uma das melhores na sala — Peter indagou, lhe lançando um olhar.

               — Isso não significa que eu seja obrigada a gostar — Peony piscou com um dos olhos e voltou a encarar o pedaço de pizza.

               — Faz sentido. Eu não gosto de história.

A garota voltou a rir e revirou os olhos.

               — Humildade é tudo — comentou e ele sorriu, também se encostando à parede. — Ainda assim, você é um aluno de honra.

               — Eu não sou!

               — Você sabe que é, Parker — a morena limpou a boca com a traseira da mão e voltou a encará-lo. — A escola inteira sabe que você é um prodígio.

               — Se eu sou um prodígio, você é um robô — Peony revirou os olhos novamente e fingiu ignorar o comentário. — Sério! Não sei como você aguenta ser editora do jornal, ir bem em todas as matérias e sempre apresentar os discursos de qualquer tipo de ocasião.

               — Não é muita coisa — disse ela. Mentira, eu sou incrível.

               — É sim! — Ele ajeitou sua postura, ficando de frente para ela. — Todos os professores elogiam sua inteligência. Já ouvi a Sra. Carson dizer que você está à frente de Lionel Denzel, e o cara estuda, tipo, oito horas por dia.

               — Já ouvi que você é melhor que ele — a garota respondeu e ele baixou o rosto.

               — Então nós dois juntos acabaríamos com ele — disparou Peter. — Odeio aquele cara.

Peony sorriu e percebeu que Peter voltava a corar.

               — Hm… quero dizer, não juntos no sentido de…

               — Eu entendi, Parker — ela sorriu e acabou com o terceiro pedaço de pizza. — Aliás, a Sra. Carson disse que ganhamos o concurso. Ela até enviou para o Clarim Diário!

               — Sério? Isso é…

               — Peter? Com quem você está falando? — Uma voz soou pelo outro lado da porta e a garota arregalou os olhos, assustada.

Antes de poder responder qualquer coisa, a porta se abriu com um leve ranger ecoando no silêncio que ali havia se estabelecido. Peony esperava lidar com a tia de Peter, a mesma mulher esbelta que ela havia visto semanas antes, mas sua surpresa fora grande quando a divisão entre cômodos revelou a figura.

A mulher que Peony conhecera não tinha nada em comum com aquela em sua frente, por mais que fossem a mesma pessoa. Ela vestia um roupão azul de veludo amarrotado que caía até os joelhos cobertos por uma calça de moletom. Seus fios castanhos apontavam para todos os lados, despenteados e oleosos, precisando de uma chuveirada. Os olhos escuros estavam vermelhos e as pálpebras inchadas, como se tivesse chorado anteriormente. Se o cansaço viesse a ter um rosto, definitivamente seria o dela.

               — Oh, você é a…? — Peony passou tanto tempo analisando seus traços que acabou se esquecendo das apresentações.

               — Peony Seagha — a garota sorriu enquanto puxava as pernas perto do corpo —, colega de Peter. É um prazer em conhecê-la!

A mulher ajeitou o cinto do roupão na tentativa de trazer uma aparência melhor enquanto sorria lentamente, trazendo certo calor no peito da garota. Tudo no apartamento de Peter parecia trazer aconchego à vida de qualquer um que ali pisasse.

               — Desculpe, eu não estava esperando visitas — a mulher lançou um leve olhar para Peter, mas não persistiu.

               — Eu que peço desculpas, eu estava passando por perto e acabei fazendo uma visita — a garota afirmou, sorrindo para soar convincente.

               — Acho que não vi você entrar.

               — Ela veio pela escada de incêndio — disse Peter.

               — Nós não temos uma escada de incêndio — a mulher arqueou uma sobrancelha.

               — Não?! — Peter grunhiu e arrancou um sorriso de Peony.

               — Você aceita um pedaço de pizza? — A garota tentou mudar de assunto e a mulher cedeu.

               — Eu já comi — com um sorriso, passou os olhos pela pizza e estranhou. — Isso são…

               — Aspargos — Peter contorceu o rosto e a garota revirou os olhos.

               — Sim, meus favoritos — respondeu Peony. — Peter não quer admitir, mas ele adorou.

               — Então eu vou te parabenizar por ter feito com que ele comesse. Peter não come aspargos nem que eu ou Ben implorássemos de joelhos — a mulher soltou uma leve risada sem perceber que se referiu ao homem no presente. Por um instante, o local aderiu-se ao silêncio e Peter baixou o rosto, como se a memória ainda fosse fresca e dolorida dentro de si, só então a mulher repassou a frase na cabeça e percebeu o erro. — Hm… bem… eu vou me deitar. Boa noite para vocês e não fiquem acordados até muito tarde.

               — Boa noite, tia May, te amo — Peter disse rapidamente e voltou a comer um pedaço de pepperoni.

Com isso, a mulher deixou o quarto e os passos apressados ecoaram abafados do corredor. Peter trocou o sorriso por uma formação reta nos lábios. Inclinando-se para trás, enfiou as mãos nos bolsos da calça, suspirando calmamente. De repente, o mesmo garoto triste que Peony encontrara nos corredores estava logo ali, ao vivo e em cores, segurando o lábio inferior entre os dentes enquanto sua face retorcia em uma mistura de emoções, evitando que as lágrimas que cristalizavam seus olhos rolassem.

               — É a primeira vez em dias que eu vejo a tia May sorrir — comentou Peter, chacoalhando a cabeça. — Ela tenta chorar escondida, para que eu não fique preocupado, mas eu sempre escuto. Sei que ela vai mais cedo para a cama porque assim pode chorar em paz.

Peony o escutava atentamente. A garota fechou a caixa de pizza vazia e colocou-a ao pé da cama, dando mais espaço para que se aproximasse do garoto em seu estado de vulnerabilidade.

               — A morte não deveria doer tanto — a voz do garoto passou a tremer e seus olhos tornaram-se ainda mais brilhantes. — Ele não deveria ter morrido assim. Era para ele estar aqui, reclamando da minha bagunça e fingindo saber consertar o aquecedor, ou… ou cantarolando enquanto saía do banho e tentando se lembrar da letra das músicas dos Beatles… ou… ou…

E com isso, as lágrimas passaram a rolar sutilmente, quase passando despercebidas até por ele. O garoto puxou as mangas do suéter até as palmas e secou as lágrimas precoces, mas não conseguindo evitar os soluços audíveis e dolorosos.

Peony não havia crescido em um meio muito afetuoso. Sua mãe costumava lhe dar apoio nas noites em que os pesadelos eram fortes demais à ponto de lhe arrancarem lágrimas, ou quando ralava os joelhos, mas ela mal conseguia se lembrar do calor de seus braços envolvidos em sua pequena figura. Mesmo assim, vendo Peter daquele jeito, ela sabia que tinha de fazer algo. Respirando fundo, arrastou-se no colchão até ficar ao lado do garoto, e seus braços envolveram o torso dele que se movia fortemente de acordo com a respiração acelerada.

Peter não se arrepiou ou assustou com a pequena mão que deslizava em seu peito, pousando acima do coração que batia cada vez mais forte, de dor. Tudo que lhe ocupava no momento eram as lágrimas incessáveis. Peony segurou seu corpo com cuidado, deitando a cabeça em seu pescoço, ali respirando fundo, inalando a essência que rodeava o garoto, decorando o cheiro suave de limão e cidreira que repousava em sua pele. Após alguns instantes, o garoto deitou os fios castanhos sobre os dela, unindo as duas cores.

À princípio, Peony sentiu-se estranha de encontrar-se em uma posição como aquelas, abraçando e consolando alguém que chorava. Não era de seu feitio, e ela mal se reconhecia, mas o mais estranho de tudo era que ela se sentia bem, sabendo que era o certo a se fazer e lhe trazia o prazer interior. Enquanto isso, Peter deixava as lágrimas rolarem e molhavam o suéter da garota, mas nem isso a incomodava.

Logo, ele afastou-se e passou a controlar a respiração, tentando não voltar a chorar, e conseguiu. Seus olhos agora vermelhos e inchados pousaram sobre os dela enquanto ele limpava as bochechas com as mangas novamente, irritando a pele sensível com a lã velha. A jovem sorriu de canto, tentando trazer-lhe conforto, e o garoto desviou o olhar, suspirando mais uma vez.

               — Desculpe, eu não sei o que deu em mim — ele respondeu enquanto inalava e exalava. — Normalmente eu…

               — Tudo bem, Peter — a garota o tranquilizou. — Não é problema nenhum.

               — Obrigado — ele agradeceu.

A garota levantou-se da cama e calçou as botas novamente, arrancando olhares confusos do jovem que ainda estava sentado. Ela olhou mais uma vez em sua direção para ter certeza de que ele não havia voltado a chorar e sorriu, recebendo outro em troca.

               — V-Você não gostaria de dormir aqui? — Ele perguntou, sua voz um tanto trêmula, mas não pelo choro. — D-Digo, está escuro lá fora…

Peony estava calçando a segunda bota quando ele a pegou de surpresa, então virou-se em sua direção e esticou as costas, analisando os traços de Peter, nervosa demais para ler sua linguagem corporal. Ela sentiu um leve suor frio na nuca e seu estômago se revirou, remexendo todos os aspargos que ali repousavam.

               — Foi uma ideia boba, d-desculpe — o garoto abaixou o rosto e desviou o olhar.

               — Não, não — a garota chacoalhou a cabeça e descalçou os sapatos novamente, sentando-se na cama em um pulo. — Eu posso ficar.

               — Você quer ver algum filme? — Questionou ele e a garota sorriu.

               — Depende de qual.

               — Star Wars?

Com um sorriso, a garota assentiu e observou Peter levantar-se da cama em um salto quase que artístico com um toque de infantilidade e sair correndo em direção à sala.

[…]

O sol pousava sobre suas pálpebras em pequenos fachos que aqueciam todo o corpo. A garota remexeu-se um tanto no lugar e suspirou, finalmente tomando coragem para abrir os olhos. O cobertor estava puxado até seu pescoço enquanto ela dormia sentada na ponta do sofá, com o cotovelo sobre o apoio e o rosto caindo no próprio ombro. Olhando ao redor, reparou que o apartamento estava quieto e com um toque familiar, mas ainda assim, não era sua casa.

Peony sentiu uma movimentação ao lado e ouviu o som da respiração suave perto de si, e então se virou, encontrando o garoto que dormia tranquilamente na outra ponta do sofá. A garota demorou alguns segundos para se lembrar de como havia acabado ali, e as cenas dos dois assistindo Star Wars enquanto comiam chips e bebiam refrigerante incontrolavelmente inundou sua mente e aqueceu seu peito, abrindo um leve sorriso em seus lábios. Peony não se lembrou de ter dormido com cobertores, então só imaginou uma única explicação possível para ter acordado com eles, e o pensamento trouxe uma sensação bizarra no estômago.

Ela se levantou do sofá calmamente enquanto espreguiçava-se ao esticar a coluna, bocejando algumas vezes antes de voltar ao normal. Seu cabelo caiu do coque bagunçado e a jovem passou os dedos abertos para penteá-los em um improviso. Peony virou-se e olhou para o relógio na parede, indicando 12:35, e só assim sua ficha caiu.

Ela não avisou seu pai.

Ela passou a noite no apartamento de Peter.

Ela perdeu a escola.

A garota percebeu que seu celular estava acima da mesa de centro e o pegou com receio de ver as notificações. Tocando na tela que se iluminou em seguida, viu que tinha pelo menos dez ligações perdidas de seu pai e algumas mensagens dele e de um número desconhecido.

Pai: Peony, onde você está?

Pai: Já são 23h, cadê você?

Pai: Eu sei que você sabe se defender, mas por favor, me dê notícias.

Pai: O rastreador mostra que você está em um lugar só, por favor me diga que não foi sequestrada…

Pai: Pey?

Com os dedos tremendo, a garota abriu as outras mensagens.

Número desconhecido: Hey, você não veio para a escola hoje. Tá tudo bem?

Número desconhecido: Tive que fazer dupla com a Tyra no laboratório. Foi péssimo.

Número desconhecido: À propósito, é a Gwen. Consegui seu celular na diretoria.

Peony respirou fundo e decidiu responder Gwen, não antes de adicionar seu contato.

Peony: Sinto muito por você, não deve ter sido nada fácil.

Peony: Eu acabei dormindo na casa de Peter. Ficamos até tarde assistindo filmes e acabei perdendo o horário.

Gwen: Calma, O QUÊ?!

Gwen: Peter tipo o Parker????????

Peony: Merda.

Gwen: O famoso Netflix and Chill?

Peony: Não!

Gwen: Preciso de detalhes. Mas não agora porque estou no meio da aula de física e o Sr. Montgomery não é muito amigável.

A garota riu consigo mesma e revirou os olhos, discando o número de seu pai antes que ele mandasse um drone para detectar sua localização.

               — Peony? Onde você está? — O homem questionou com um grande tom de preocupação.

Percebendo que seria uma conversa difícil, caminhou até o corredor para não acordar Peter.

               — Eu acabei dormindo na casa de um amigo — ela respondeu. — Eu estou bem, pai.

               — Você não sabe o quanto me preocupou. Podia ao menos ter me ligado para dizer que estava bem. Eu quase enlouqueci e… — o homem fez uma pausa antes de voltar a falar — amigo?! Um garoto?

               — Sim, pai. Não é nada do que você está pensando — por que todos os pensamentos eram voltados para outro tipo de situação?, pensou a garota.

               — E por que você não está na escola?

               — Nós fizemos uma maratona de Star Wars e perdemos a hora — a garota afirmou. — Não me traga um sermão agora. Você sabe que eu nunca falto na escola e tenho meus motivos.

               — Às vezes parece que você é minha mãe.

               — É meu trabalho — a garota riu suavemente e suspirou. — Eu já estou voltando para casa. Você está trabalhando?

               — Não. Estou comendo o sanduíche que você me trouxe anteontem. Eu preciso do endereço desse lugar.

               — Eu sei — a garota sorriu para si mesma. — Até daqui a pouco.

               — Cuide-se.

Assim que desligou, ouviu o barulho de grunhidos vindos atrás de si e olhou por cima do ombro, guardando o celular no bolso traseiro. Logo que percebeu Peter se remexer no sofá enquanto tentava se espreguiçar e levantar ao mesmo tempo, sorriu e aproximou-se, pegando as botas e calçando-as.

               — Você está de saída? — Ele perguntou. Sua voz estava rouca por causa do sono e os fios ondulados caíam sobre a testa, bagunçados.

               — Sim, se eu não voltar para casa, meu pai enlouquece — a garota jogou a mochila sobre os ombros.

               — Obrigado por ter ficado — ele sorriu de canto e passou o dedo entre os fios, em uma tentativa de ajeitá-los.

               — Sem problemas — ela afirmou e aproximou-se dele. — Até amanhã?

O garoto assentiu e a jovem tomou isso como uma saída.


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