Time Web escrita por Mabée


Capítulo 14
Capítulo 14 - Trilhos




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/732537/chapter/14

Ela já sabia o que Peter diria. Algo, provavelmente, entre "você mandou bem" ou "eu sabia que você faria isso". E o pior de tudo não era saber exatamente o que seu amigo diria, mas saber que ele estava certo.

Peony nunca havia se imaginado em situações como aquela, defendendo alguém — perdão, humilhando Zara — e sentindo-se ótima em relação a isso. Não que ela não tivesse usado o poder antes, até porque ela usou, e muito. Na mesma noite em que descobriu sobre a manipulação, desceu as escadas para buscar um copo d'água e encontrou seu pai sentado no sofá, fazendo algumas contas e acabou derrubando a garrafa de cerveja ao seu lado em todos os papéis. Antes que ele pudesse xingar, a garota esticou sua mão e tudo havia voltado ao normal, então ela afastou o perigo das contas, dizendo um simples "cuidado com isso".

Fora as pequenas ajudas que ela dava para Gwen, quando ela derrubou o sanduíche do Delmar's; para si mesma, quando acabava cometendo erros ­— muito poucos, já que Peony não errava com frequência — e até para Peter, quando ele tropeçava na rua ou errava experimentos químicos; ou das poucas vezes que ela soltava palavras que se arrependia.

Mas com tanto poder, também vinha um certo custo que não havia a feito desconfiar muito de suas origens; as dores. Mesmo quando Peony só podia prever algumas cenas futuras, ela sentia leves pontadas na traseira de sua cabeça, e era a mesma sensação de quando voltava no tempo, mas sempre algo pequeno, não tão incômodo. O único problema, era que, agora, sua cabeça parecia explodir.

Não era a mesma pontada inicial, mas uma dor que fumegava da traseira até o fundo dos olhos, queimando inclusive a garganta e ouvidos. A jovem caminhou cambaleando até o banheiro, ainda em suas roupas de ginástica, e procurou uma das cabines para que ninguém a visse em tal estado. Suas mãos tremiam e ela sentiu sua boca secar, procurando por ar desesperadamente. Bastaram alguns segundos sentada, controlando a respiração enquanto a cabeça repousava sob as duas mãos, para que ela voltasse um tanto ao normal.

— Seu dom não é um brinquedo, querida — soou uma voz.

Peony levantou-se no mesmo instante, alarmada, e deixou a cabine como uma tempestade, procurando quem havia dito. Não é possível que alguém tenha lido minha mente, certo?!

               — É bem possível, Peony — soou a voz novamente e a garota deu um giro de 180°, procurando a dona do tom.

Olhando para trás, Peony encontrou uma figura estranha, encapuzada, parecida com o sujeito das chamas verdes, mas que trazia uma sensação… diferente. A garota encarou a pessoa com desdém e curiosidade, tentando entender o que se passava ali; foi então que tudo tornou-se ainda mais estranho, todas as paredes, pias e cabines sumindo, tornando-se um cenário inteiramente negro, como uma vastidão, igual àquela que Peony deparou-se no encontro com Halztroc.

O traje era parecido com o dele também, sendo o fundo preto com bordados vermelhos, como se fossem flores, mas flores em chamas vivas. Peony analisou bem, não conseguindo enxergar o rosto da tal.

               — Não se preocupe, querida, eu não estou aqui para te fazer mal — a mulher abaixou o capuz, revelando o rosto. Peony surpreendeu-se, pois havia esperado uma imagem horripilante, tal como a face de Halztroc ou do sujeito que explodiu o refeitório, mas essa mulher era linda, não tão jovem, mas não tão velha. Cabelos loiros até os ombros, caindo em ondas douradas e enquadrando o rosto liso de pele que parecia seda, brilhante como o sol. Seus olhos foram o que mais captaram o foco da garota, sendo verdes como esmeraldas, verdes como a natureza, verdes como os dela.

               — Quem é você? — Questionou a garota. E por que não é tão feia como os outros?

               — Obrigada — a mulher abriu um curto sorriso. — Meu nome é Daisy. Eu sou… amiga, de Halztroc. E mantenho essa aparência por alguns motivos pessoais.

Você está de brincadeira.

               — Certo, Daisy, eu já fechei negócios com o Halztroc e esperava não ver mais ninguém por perto, então… quer explicar?

A mulher prensou os lábios juntos e seus olhos focaram no peito da garota, encontrando o cordão que ali pendia, então voltou a sorrir.

               — Você está usando sua relíquia — a mulher apontou, fazendo com que a garota olhasse para baixo e encontrasse o cubo brilhando em luzes azuis. A jovem já estava confusa, agora havia piorado a situação. — Sua mãe lhe deu?

               — Não. Ela morreu. Eu encontrei em uma caixa — respondeu a garota, sua expressão neutra, tentando disfarçar a dor que sentia quando falava da outra mulher. — Como você conhecia minha mãe?

O olhar de Daisy caiu para o chão, suas mãos entrelaçando-se acima do peito, com o cenho franzido, como se vários pensamentos rodopiassem sua mente naquele instante. Talvez ela tenha lido a mente da jovem, quem sabe?

               — Era uma pessoa que já esteve presente em minha vida — respondeu a mulher, seu sorriso era triste. — Mas chega de enrolação, estou aqui para te ajudar.

               — Certo… o que é agora?

               — Eu vi o que você fez lá fora — disse ela, torcendo a boca. — Você descobriu parte do dom, mas ainda não sabe como usá-lo. Halztroc não mostrou como?

               — Ele deveria? — Peony estava confusa enquanto brincava com os dedos, encarando os olhos persistentes da mulher em sua frente.

Ela fechou a expressão no mesmo momento, seus olhos verdes brilhando ainda mais e tornando-se escuros, de repente. Foi então que algo mais estranho ainda ocorreu; a mente de Peony começou a correr em memórias do dia em que ela havia encontrado com Halztroc, e logo, parou. Era a mesma coisa como quando você passa um filme no modo "avançar", só que 1800x mais rápido.

               — Aquele… então ele não te ensinou nada?! — A mulher disparou de modo agressivo, o que alarmou a jovem, dando um passo para trás. — Perdão, eu… eu só não estou conseguindo aceitar o fato de ele ter cortado a ligação.

               — A ligação era muito importante?

               — A ligação era o que ajudava você a se camuflar. — Daisy disse, mas sem olhar para a garota, como se ela estivesse em discurso consigo mesma. — Agora ele pode te encontrar.

Peony franziu o cenho de imediato, assustando-se com o tom preocupante que a mulher em sua frente havia usado ao dizer um simples "ele". Por que toda vez que esses caras me visitam eu termino com um problema a mais?! Sério?!

               — Ele quem? — Questionou a garota, não obtendo respostas. — Sério, Daisy, legal e tudo mais esse lance que vocês praticam, magia, dons, presentados, tanto faz; mas eu realmente não quero fazer parte desse mundo.

               — Nós nos vemos outra hora, Peony — disse a mulher, voltando a olhar para a jovem. De repente, elas estavam no banheiro novamente e tudo se tornou mais confuso. — Cuide-se.

Com isso, a mulher foi embora, sumindo entre milissegundos.

[…]

Após o aparecimento da mulher que Peony nunca havia visto antes, mas que sentia que a conhecia de algum lugar, a garota resolveu que precisava de uma grande caneca de café e enfiar a cabeça no notebook, corrigindo reportagens até seus dedos caírem das mãos. Como a educação física era a última aula do dia, ela correu para o vestiário e trocou-se para as roupas antigas, calçando as botinas que eram sua marca enquanto quase cambaleava de pressa.

Logo que chegou no editorial, jogou-se na cadeira e colocou o blazer sobre o encosto, respirando fundo enquanto deixava a cabeça pendendo no ar. Após vários pensamentos correndo sua cabeça, tentando ligar os pontos ou formar uma curta linha de raciocínio com tudo que havia visto de sobrenatural. Foi quando ela revirou os olhos, exalou todo o ar de seus pulmões, estalou os dedos e focou no seu trabalho.

               — Srta. Seagha? — Chamou uma voz da porta, encontrando a Sra. Carson com um curto sorriso, só então a garota notou que havia deixado a porta aberta, sem perceber.

               — O-Oi, Sra. Carson, como vai?

               — Bem, bem — a mulher adentrou a sala, encostando-se à uma das poltronas. — Vim para lhe dizer que as cartas estão prontas, quando decidir, eu as enviarei. Mas se me desculpa, enviei uma cópia da reportagem para o Clarim Diário.

Peony ia responder normalmente, mas sentiu um caroço do tamanho do mundo se formar em sua goela, permitindo apenas que saísse de sua boca um som esganiçado.

               — O que?! Sério?! Obrigada! — A jovem abriu um largo sorriso, abaixando a tela do notebook enquanto encarava a mulher com olhos cheios de alegria repentina.

               — A senhorita fez por merecer — afirmou a mulher, sorrindo de volta. — E ainda mais notícias; comuniquei seu pedido ao conselho e eles aprovaram, você será a capitã da arrecadação de fundos para Winterville. Marcamos sua palestra e busca de voluntários para ser anunciada nos anúncios matinais e ser realizada semana que vem. Está bem para você?

               — Sim! Está mais que ótimo — a garota mordeu o lábio inferior. — Céus, isso é o máximo!

               — Suas atitudes foram impressionantes, srta. Seagha. Espero que apareça com ideias para a arrecadação.

Peony apenas sorriu enquanto observava a mulher deixar a sala.

Após a saída da Sra. Carson, Peony pegou seu celular e procurou o contato de Peter, digitando uma nova mensagem antes de ajeitar as coisas para que fosse embora.

"Nós ganhamos cartas de recomendação e uma cópia enviada para o Clarim Diário. Me sinto a chefe da porra toda. Você também deveria, é a melhor sensação do mundo."

Não recebendo uma resposta de imediato — o que era bizarro — Peony continuou a guardar seus pertences em sua bolsa e trancou a sala logo que saiu. Deixando a escola, a garota caminhou rapidamente até a estação de trem, pegando o celular para checar se Peter havia respondido, e, novamente, nada. Com isso, ela adentrou a máquina após um longo suspiro.

Encostando-se ao banco do trem, Peony respirou fundo e depositou sua bolsa logo ao lado, procurando pelos aspargos que sobraram de seu almoço. Logo que estava com o pote em mãos, relaxou os músculos do corpo e decidiu que aquele seria seu momento de descanso. Normalmente, ela não se dava muito tempo para sentar e refletir seus pensamentos do dia, do mês, do ano, mas quando estava no trem, ela mal tocava no celular ou em sua caderneta, apenas com a esperança de que pudesse conectar-se a si mesma — e com tudo que havia acontecido anteriormente, o que era muita coisa.

Por mais que ela nunca teve o problema de não conseguir se concentrar com outras coisas ocorrendo ao seu redor, agora ela estava tendo. Seus olhos caminharam pelo trem quase vazio, encontrando apenas um grupo de garotas que pareciam ser mais novas em um dos cantos do vagão e um senhor da terceira idade no outro extremo, enquanto ela se encontrava no centro. Seus olhos estavam vagando aleatoriamente pelo trem, procurando algo que pudesse tirá-la de seus pensamentos; mas não foi por muito tempo, já que outro acontecimento ocorreu, a trazendo um certo desconforto, como pontadas em sua nuca.

Foi quando o trem parou, em um tranco único, jogando todas as pessoas presentes naquele vagão para longe de seus lugares. Peony agora encontrava-se no chão, sentindo as costas e toda a região femoral queimando em dor. A garota olhou para os lados e encontrou as garotas gritando, mas ela não saberia dizer bem, já que seus ouvidos estavam dominados por um baque surdo. Olhando para a outra direção, encontrou o senhor deitado, suas costas contra o banco da frente enquanto movia os dedos em movimentos lentos.

Peony estava fraca, e sua cabeça doía, só por isso decidiu não voltar no tempo — e porque sabia que ela podia apagar após o incidente. Levanto a mão à nuca, tentando fazer pressão onde doía, sentiu algo molhar os dedos, então trouxe o braço à frente mais uma vez e, mesmo com a visão turva, enxergou o sangue.

Quando ela achou que não podia piorar, sentiu o chão tremer, ouvindo um som que parecia algo rachando. Gemendo de dor, a garota passou a observar o solo e notou que a rachadura se formava logo ao seu lado, quebrando o trem em dois, tombando a parte em que ela estava para fora dos trilhos. Sua consciência pareceu voltar um tanto ao normal e ela usou aquilo para apoiar-se em um dos bancos, segurando com as duas mãos, evitando de escorregar pela rachadura. Com o canto dos olhos, ela notou as mesmas chamas verdes.

O senhor no fundo do vagão havia escorregado até bater contra a parede. Peony queria qualquer coisa, qualquer coisa, menos bancar a heroína naquele momento, mas sua mente a contrariava — talvez porque ela estivesse com uma concussão brava. A jovem procurou todas as forças dentro de si e colocou-se sentada sobre os pés, apoiando-se nas janelas para não cair e escorregar igual ao senhor. Qualquer pena que pousasse ali poderia derrubar o vagão inteiro.

Chegando até o senhor, após quase quebrar todas as unhas com a força que segurava nas janelas, a garota agachou-se novamente e apoiou-se com delicadeza na parede, oferecendo a ele uma das mãos.

               — Venha, apoie-se em mim — ofereceu ela.

O homem apenas assentiu e tomou a mão da garota, jogando toda sua força contra ela para que pudesse se levantar. A garota gritou de dor, sentindo a região femoral arder em dor e subir por toda sua espinha. Naquele momento, ela havia se esquecido da suposta concussão, focando apenas em ajudar o senhor a sair daquela situação.

               — Você está bem? — Perguntou ela, com um esforço quase impossível para que sua voz saísse pela garganta seca. — Dói alguma coisa?

               — N-Não — respondeu ele, seguindo a andar.

               — Apoie-se nas janelas para pegar impulso, ok?

Ele assentiu mais uma vez e fez o que fora pedido. A respiração de Peony parecia falhar a cada passo dado, mas ela precisava seguir, a vida daquele senhor estava em perigo naquela situação. Ela mal teve tempo para pensar nas chamas verdes.

               — Nós vamos pegar impulso e você fique no trilho, certo? — A jovem disse calmamente.

               — E você? — Questionou o senhor.

               — Eu dou um jeito — mentiu ela.

Naquele momento, a garota sentiu seu peito apertando. Ela não tinha forças para voltar no tempo ou para saltar junto do homem. Uma vez que ela o ajudasse, não sobraria nada para si própria, e a jovem tinha pura noção daquilo, por mais que doesse para admitir, então procurou distanciar os pensamentos.

Logo que chegaram à repartição, Peony inalou todo o ar possível, preparando-se para o impulso. Ela o encarou por alguns segundos e o senhor estava com a boca entreaberta, assentindo loucamente. Ele estava tão nervoso quanto ela — por mais que a chance de mortalidade dela fosse mil vezes maior —, mas concordava com tudo que Peony tinha a oferecer. Fechando os olhos rapidamente, a garota soltou o ar enquanto começava a correr, avançando seu braço que segurava as costas do senhor para a frente, o empurrando nos trilhos.

Ela tombou mais uma vez, caindo com todo o corpo para dentro do vagão, apenas suas mãos segurando na rachadura para que não escorregasse até a parede. Seus olhos se levantaram enquanto o peito buscava pelo ar que havia perdido no esforço, e alegria invadiu seus lábios em formato de um sorriso satisfeito assim que encontrou o senhor no meio dos trilhos, sentado em seu traseiro, perfeitamente acomodado. Ele engatinhou na direção da jovem e esticou uma de suas mãos, oferecendo-a para ela, mas assim que os dedos de Peony roçaram aos dele, o vagão emitiu um som rangedor pelo ar, seguido e um frio na barriga por causa da queda.

Peony fora lançada ao extremo do trem, suas costas batendo contra a porta que dividia os vagões, sua bolsa caindo logo ao seu lado. A queda não era tão grande, mas todo aquele papo de tempo fez parecer, e ela controlava a respiração, focando em permanecer calma. Não quero morrer em pânico. Não quero morrer; não quero morrer. Não quero. Não quero.

Ela olhou para o céu se afastando de suas órbitas, as estrelas aparentando estar ainda mais longínquas do que antes, e o vento jogando seu cabelo contra o rosto. Naquele momento, ela sentia o sangue escorrendo de sua cabeça e as dores pareciam sumir aos poucos. É assim a sensação de morrer?

Mas antes que alcançasse o chão, dois fios estranhos grudaram em suas laterais, e um terceiro pegou sua bolsa. Esses fios a puxaram para cima, levantando-a e deixando a garota pendurada logo abaixo dos trilhos, e suas mãos correram até a corda(?) pegajosa, seus pertences pendurados logo ao seu lado, e ela agarrou. Seus olhos caíram ao solo, encontrando a metade do vagão colidindo ao asfalto, levantando chamas normais, quase alcançando seus pés.

               — Segure em mim! — Gritou uma voz um tanto aguda vinda de longe, mas parecendo em sua direção.

Quando ela menos percebera, seus braços já não seguravam mais nas cordas — teias? — e sim, no pescoço do grande amigão da vizinhança. Ela encarou a figura que a segurava e carregava sua bolsa com a mesma mão que enlaçava sua cintura.

               — Você está bem?! Se machucou? Como se sente? V-Você… Isso é sangue?!

A jovem olhou um tanto para trás, o vento dos balanços entre prédios colidindo contra seu rosto, deixando-a mais tonta.

               — Eu vou vomitar… — disse ela, abaixando um tanto a cabeça.

               — N-Não! Eu vou parar em algum telhado.

E o mascarado fez o que disse, parando logo acima do telhado de um prédio aleatório, colocando a garota sobre seus próprios pés, o que não durou muito tempo, já que ela tombou para o lado e quase caiu, se não fosse pelos braços do sujeito.

               — Eu acho que você está com uma concussão! — Disparou ele, parecendo desesperado.

               — Cara, calma, eu estou bem. — A garota soltou um riso prolongado e fechou os olhos por um tempo, todos os músculos de seu rosto relaxando ao mesmo tempo.

               — Vamos, eu vou te levar ao hospital — o sujeito prosseguiu, levantando-a com os braços.

               — Não — disparou a garota. — Nada de hospitais.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!