Temari

Abri os olhos lentamente por conta da claridade que atravessava as janelas. Havia esquecido de fechar as cortinas antes de dormir, estava cansada demais, apressada demais. Tudo que fiz quando voltei para o quarto foi trancar a porta e me esconder por baixo dos cobertores.
      Durante a madruga eu ouvi os passos trôpegos, as risadas embargadas e a fala arrastada dos dois melhores amigos inseparáveis. Apertei os olhos com força e tentei me concentrar em qualquer coisa que não fosse a voz deles. A maçaneta da minha porta mexeu várias vezes, alguém tentava abri-la de modo frenético, meus ombros tensionaram e meu corpo se encolheu involuntariamente. Graças aos céus a voz de Gaara não tardou a se fazer presente e repreender os bêbados que chegaram há pouco. Lembro-me de ficar um bom tempo encolhida espreitando qualquer som emitido do lado de fora do quarto e o quanto minha mente badalava, impedindo-me de dormir.

 Nesses momentos eu morria de medo de Hideo. No começo do nosso relacionamento, eu os esperava, ajudava-os com o banho gelado, com um chá quente e os colocava para dormir, mas logo isso se tornou repetitivo e exaustivo e eu não os esperava mais. Hideo me acordava quando chegava e se jogava ao meu lado, desenhando as margens do meu corpo com as pontas dos dedos antes de me apalpar. Era incômodo. Eu pedia para que ele parasse, mas nunca era ouvida e, quando era, ele sempre me dava respostas atravessadas, como: “Deveria me agradecer por te querer” ou “Se não for por mim, quem mais vai aturar você?!”. Aquelas perguntas me atingiam mais dolorosamente que as suas mãos.

 Após essa situação se repetir algumas vezes, eu passei a trancar a porta do quarto. Aquilo só aumentou a ira de Hideo, que aproveitava quando Gaara não estava em casa e esmurrava a minha porta, gritando sobre eu ser ingrata e que me arrependeria. A manhã seguinte era sempre imprevisível. Algumas vezes ele não estava lá quando eu levantava, outras ele estava à minha espera, pronto para me prensar contra alguma parede e direcionar suas mãos atrevidas por todo o meu corpo. Aquilo sempre me trazia um nó na garganta e meu corpo ficava estático, isso só o irritava mais e o discurso continuava: “Como você acha que pode escolher se me quer ou não? ”, “Quem mais iria querer você? ”, “Os homens de Suna gostam de mulheres femininas e você não agrada a nenhum deles”, “Sabe que estou fazendo isso porque Kankuro me pediu para não te deixar sozinha, não é? ”. Hideo tinha razão em cada uma dessas palavras. Eu não tinha nada de feminina, o que alguém poderia ver em mim? E Kankuro apoiou tanto esse relacionamento, ficaria bravo comigo se eu não fosse capaz de agradar a Hideo.

As lágrimas brotaram no meu rosto. Eu estava com medo. Não sabia o que me esperava na manhã de hoje. Os meus ombros doloridos me recordaram que havia passado a noite toda encolhida com medo de qualquer coisa que Hideo pudesse fazer contra mim. Minha vontade era passar o dia em baixo dos cobertores, abraçando meus joelhos e me sentindo protegida, mas infelizmente Gaara precisaria de mim no escritório. Respirei fundo várias vezes antes de jogar de lado o que me cobria. Sequei o rosto com as mãos e me levantei. Essa era a minha rotina. Deitar assustada, não dormir por conta das inúmeras memórias que invadiam meus pensamentos, desmaiar com o cansaço extremo e acordar em prantos. Cada dia de todos esses meses. Eu vivia essa rotina insegura e assustadora cada dia da minha vida nos últimos meses. E eu merecia isso. A culpa era minha de não ser boa o suficiente para ninguém mais, de ter rejeitado tantos pretendentes, de ter dado oportunidade para Hideo entrar na minha vida. Se não fosse por ele, Gaara e Kankuro estariam decepcionados comigo, por não ser capaz de arrumar alguém para casar. Eu não deveria reclamar. Quantas pessoas já haviam espalhado por aí que Hideo apenas aceitou a sair comigo porque eu havia o ameaçado? E ele sempre me defendia, dizendo quanto as pessoas estavam erradas e que ele gostava de mim. Quando começamos a sair juntos várias pessoas me disseram que pensavam que eu morreria sozinha. Quem suportaria ficar ao meu lado senão Hideo?

E era óbvio. Era por isso que ele bebia. Era difícil aturar uma mulher dura como eu, Hideo dizia. Ele precisava daquilo se quisesse continuar comigo. Eu o transformei nisso. “É seu fardo, Temari. Você deve carregá-lo” – disse a mim mesma em pensamento enquanto me encarava no espelho. Se eu estava fazendo a coisa certa em continuar com ele? Claro que estava. Todos amavam Hideo. Ele era um herói para os colegas de equipe, um ninja reconhecido pelos demais jounnins, um grande amigo para Kankuro e Gaara sempre ouvira elogios sobre Hideo. Ele era gentil com as senhoras na rua, era bonito e muitas mulheres da vila o desejavam. Era sempre isso que eu ouvia quando reclamava sobre Hideo. Que eu reclamava de barriga cheia, porque ele era o homem que toda mulher sonhava. “Esse é o jeito dele”, “Você deve o provocar”, “Você nunca arrumará outro tão bom quanto Hideo”.              Se todos são capazes de ver esse lado bom dele, talvez o problema realmente esteja comigo. Talvez eu esteja reclamando demais.

Arranhei a garganta e suspirei. Ele ainda me assustava. Por mais que ninguém fosse capaz de ver. Mas eu merecia isso.

Abri a porta com desconfiança e caminhei lentamente até a cozinha, tentando não fazer barulhos, mas parei subitamente e soltei um som de surpresa logo que alcancei o batente da porta da cozinha. A mesa estava posta para dois, completamente preenchida com diversos pratos que mal pude identificar de imediato. Hideo estava parado em frente ao fogão, colocando um bule de água para ferver. Ele se virou quando me aproximei da cozinha e veio em minha direção com os braços abertos e um sorriso enorme no rosto.

—Bom dia, meu amor. – Seus braços fortes me envolveram e ele depositou um beijo molhado nos meus lábios – Resolvi te fazer uma surpresa, espero que goste.

—Bom dia. – Respondi em voz baixa sem olhá-lo nos olhos. Estava impressionada com a dimensão dos cuidados que ele havia tido para preparar aquilo tudo – Claro que sim.

 Devolvi o sorriso e tive coragem de olhá-lo. Os fundos opacos dos seus olhos me traziam as memórias ruins, mas o brilho superficial presente naquele momento era convidativo. Ele me soltou e buscou um buquê pequeno no outro canto da cozinha entregando-o a mim, eu sorri novamente e agradeci enquanto me sentava à mesa.

E essa é a terceira coisa que pode acontecer quando ele e Kankuro chegam bêbados em casa. Uma surpresa, flores e palavras gentis. Demonstração de carinho. Ele realmente tinha esse lado doce e gentil comigo, mas era sua parte que eu menos conhecia. Sempre que tentava questionar o motivo de tudo aquilo, Hideo se sentia ofendido e dizia como eu era ingrata por não aceitar de bom grado suas surpresas. E a justificativa para que isso não ocorresse com mais frequência era justamente essa: eu não sabia aceitar sem desconfiar e isso o magoava. Mas ele era bom comigo, talvez eu devesse me esforçar mais. E se ele não agia mais assim a culpa era minha. Ele tinha um lado doce, eu é quem não sabia vê-lo. Todos tinham razão então. Eu não deveria mais reclamar de Hideo. Eu deveria me esforçar para ser melhor para ele.