Não floresça escrita por Yuui C


Capítulo 1
Efêmera flor


Notas iniciais do capítulo

Depois de um longo hiatus, eis que apareço com mais uma história. É muito difícil eu resolver escrever ou postar originais, justamente por ter dificuldade em trabalhar minhas próprias personagens — elas são um eterno laboratório pra mim. Parece que nunca estão no eixo; mas quem pode dizer se elas estão no eixo, senão eu?

Espero que vocês amem esses dois tanto quanto eu os amo. Eles tem uma relação complicada, para não dizer delicada. É justamente por essa razão que eu decidi falar deles antes.

Esse universo é extenso, mas eu não alinhei absolutamente nada dele aqui. Se ficarem dúvidas, podem perguntar. Eu vou esclarecer mais sobre esse lugar em outras histórias — futuramente.



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Gostaria de saber

O que Deus queria

Ao colocá-lo em meu caminho.

        Deixei que a água escorresse lentamente pelo meu rosto, respirando fundo. O som do riacho inundava meus ouvidos, mais alto que o farfalhar das copas das árvores.

        Sentei-me com um banque mudo sobre as pequenas pedras na beira, o colar de contas grossas balançando com o movimento do corpo. Permiti-me aproveitar o sol gostoso do início da tarde, piscando vagarosamente.

        Foi só quando o som de pequenas lambidas por sobre a água chegou aos meus ouvidos que eu fitei-o, curioso. Agachado à beira, o corpo quase rente ao chão, as orelhas apontadas para trás, a cauda balançando em curtos intervalos.

        Observei sua figura miúda da cabeça aos pés; sabia que ele percebia meu olhar sobre si, mas parecia não ligar. Quando começou a se endireitar foi que perguntei:

        — Você não sabe beber água como gente?

        Ele parou um momento, virando-se para poder me olhar — aqueles olhos negros como a noite. Ficou alguns bons minutos me encarando, a água escorrendo por seu queixo, descendo displicentemente por seu pescoço, quando não caía direto ao chão.

        “Não sei do que está falando”, gesticulou por fim, a expressão séria.

        Soltei uma risada contida.

        — Foi uma pergunta idiota. — Ele pendeu a cabeça para o lado, duvidoso, o rabo inquieto. — Ren, esqueça. Era só um pensamento imbecil.

        “Você não costuma sonorizar pensamentos inúteis”, atestou.

        — Às vezes sim. Como agora. — Sua expressão continuava duvidosa, as orelhas postando-se para trás, um bico enorme tomando conta de seu rosto. Conti o riso novamente. — O quê?

        “Você está mentindo para mim”, seus dedos pareciam inquietos conforme ele falava.

        — Não, não estou.

        Foram longos segundos em que nos fitamos. Por fim, Ren baforou, desistente. Em seguida, caminhou — com certa dificuldade devido às pequenas pedras — até meu lado, sentando e atirando-se sobre minha coxa.

        — Então? — Questionei, arqueando as sobrancelhas. Ren encolheu-se em uma bola, aninhando-se contra meu corpo. — Ren. — Chamei, incisivo.

        “Estou com sono.”, os dedos eram vagarosos para formar a frase e, seguindo-se dela, um bocejo, preguiçoso como o dono.

        — Era uma parada rápida. Eu disse isso a você.

        “Cinco minutos. Por favor.”.

        — Tudo bem. — Suspirei em desistência, apoiando o cotovelo na outra perna e o queixo na mão. Ren bocejou uma vez mais, voltando a aninhar-se como antes.

Talvez Deus

Quisesse me testar;

Um teste de fé

Ou mesmo de paciência.

        — Eu disse um milhão de vezes para você não subir em árvores! — Rosnei, percebendo que Ren se encolheu contra o galho da árvore. — Eu sei que você é um gato. Ou parece um. Mas se não consegue descer sozinho, não suba.

        Percebi que ele queria dizer algo, mas as mãos estavam ocupadas demais para que pudesse gesticular alguma coisa. Suspirei e, sem mais demorar, subi na árvore, o suficiente para alcançá-lo com o braço.

        — Vamos, só vir. — Os olhos negros observavam-me, as pupilas estupidamente dilatadas, demonstrando temor. — Vamos, Ren. Você consegue.

        Ele engoliu a saliva e, lentamente, foi aproximando-se da minha mão. Quando finalmente a alcançou, jogou-se com tudo contra o meu braço.

        Dois fatores evitaram um desastre: minha força e o seu peso irrisório.

        O trouxe para próximo do meu corpo e escorreguei pelo tronco até encostar no chão. Fitei Ren, vendo-o de orelhas baixas, a cauda com pelos espichados e os dentes fincados nos lábios.

        — Então? Por que subiu na árvore? — Questionei, esperando ele se acalmar para poder descê-lo.

        “Eu vi um pássaro.”, começou, ainda trêmulo. “Pensei que ele poderia ser nosso almoço, por isso o persegui.”.

        — E? Onde está o pássaro?

        “Fugiu.”, ele agora estava estupidamente envergonhado; era tão visível que suas bochechas estavam rosadas.

        Não me aguentei e gargalhei, recebendo uma mordida de Ren.

        — Instintos, é? — Ele estava ainda mais corado. Acariciei seus cabelos. — Tudo bem. Bom trabalho em ter tentado.

        “Não zombe de mim!

        — Não estou zombando. — Coloquei-o no chão. Ren desviou o rosto do meu, o rabo balançando, inquieto. — Vamos, não fique bravo.

        “Não estou.

        ­— Certo. Vamos continuar, então.

Sentimentos

Eram efêmeros.

        Terminei a reza e levantei, curvando-me uma última vez em respeito à família. A matriarca agradeceu-me infinitas vezes.

        Aquele era meu trabalho. Nada mais, nada menos.

        Era uma rotina.

        Sai, percebendo o vento cortar a pele. Era uma noite gelada — o inverno estava próximo, afinal.

        Fitei a escuridão à frente e pisquei, incrédulo. O olhar brilhoso por entre as árvores era inconfundível.

        — Ren! — Chamei-o. Ele surgiu do breu, os pelos das orelhas e do rabo arrepiados, a pele mais pálida do que de costume. — Você me seguiu? Por que não esperou no hotel?

        “Não me sinto confortável lá.”, disse com dedos trêmulos. Aproximei-me dele, tirando a pele de lobo das costas e o enrolando com ela. Ren prontamente se aninhou contra a pele, parecendo satisfeito com o calor que ela lhe provinha.

        — Não deveria ter saído assim. E se você adoecer? — Peguei-o no colo, ajeitando-o junto com o montante de pelos brancos; ele praticamente sumia entre eles, não fosse pelos cabelos dourados.

        “Kavi... existe uma forma de velar quem já morreu?”, questionou, sem me fitar. Ergui as sobrancelhas, estranhando.

        — Normalmente, vela-se um corpo.

        “Uma alma cujo corpo não foi velado, ficará presa à Terra?

        — Não entendo o porquê da pergunta agora, Ren.

        “Minha mãe...”, percebi sua respiração funda, as mãos ainda mais trêmulas do que antes.

        Ele encostou o rosto contra o meu peito, a respiração cada vez mais pesada. Esperei, mas Ren não manifestou nada — sequer chorar, ele chorou.

        A volta ao hotel foi vagarosa, apesar dos passos rápidos. Estava atento a cada respiração de Ren — ela, porém, estava inalterável. Somente no quarto, quando coloquei a pele e ele sobre a cama, percebi que havia adormecido pelo caminho.

Eram efêmeros

Pois quando duravam

Feriam, perturbavam;

A alma, o coração.

Por isso eram efêmeros

E assim deveriam ser.

Em meu caso, sequer deveriam existir. Quanto mais apego — fosse a coisas materiais ou sentimentos — mais sombra existiria em meu caminho.

No entanto, Deus é curioso;

Seja na forma de se manifestar

Ou no porquê.

— Vamos passar mais tempo aqui do que o planejado. — Comuniquei, olhando a tempestade de neve pela janela. À cama, uma fungada forte, o ranger do colchão.

Fitei a pele de lobo junto às cobertas, percebendo somente a ponta da pequena orelha preta, um ruído em meio ao branco.

— Você não vai reclamar de ficar, não é mesmo? — Uma mexida de orelha. — Ren.

Não me faça tirar os braços daqui, Kavi. Está frio.”, articulou, enfiando novamente os braços na pele.

— Eu sei que está frio. Eu estou com frio também, mas você está manipulando as cobertas. — As orelhas mexeram-se e, finalmente, ele se virou para me olhar.

O preto de seus olhos fazia tanto ruído quanto suas orelhas no branco do lobo. Estavam baixos, quase fechando-se. Ele abriu a boca, expelindo o ar com força. Afundou-se novamente no pêlo, desistente de algo que eu não sabia o que era.

Se está com frio, cubra-se aqui.”, disse por fim.

— Quer que eu te tire daí?

Não.

— O quê, então? — Ri, percebendo a dificuldade que era para ele manifestar algo. Aparentemente, Ren era intolerante à baixas temperaturas.

Divida comigo. Não ocupo tanto espaço.

— Que você não ocupa, isso é verdade. — Ele baforou, revirando-se. Levantei do chão, rumando até a cama. — Mas tenho medo de me virar e acabar te machucando, justamente por você ser pequeno.

Não sou uma pulga. Sou um gato; você consegue me ver.”, reclamou, franzindo o cenho.

— Não disse nesse sentido. — Deitei-me ao seu lado, puxando a colcha grossa da cama e me cobrindo com ela.

Ren ajeitou-se bem com a pele de lobo, se enrolando totalmente nela, a cabeça apoiada no amontoado de pêlos. Apoiei o rosto na mão, para poder observá-lo.

Da maneira como estava, parecia um filhote aninhado à mãe. Levei calmamente a mão até seu rosto, passando com leveza os dedos por sua pele porcelana. Levei-os aos seus cabelos, passeando pelo dourado de seus fios, até chegar à orelha.

Foi quando ele começou a ronronar.

— Para, até nisso. — Murmurei, segurando o riso.

Ele sequer moveu-se. Comecei a acariciar sua orelha, sentindo-a dar pequenos espasmos, o ronronado só aumentar. Seu corpo relaxava mais a cada instante, fazendo-o desaparecer por entre o branco do lobo.

Sentimentos floresciam

E murchavam.

Dessa forma,

Tornavam-se efêmeros.

        Observei atentamente cada traço de seu rosto. A forma como os fios da franja caíam sobre seus olhos fechados, como a boca estava entreaberta, como os lábios estavam vermelhos. Levei a mão até eles, parando na cicatriz que tinha ali próximo, sentindo sua textura com o dedal.

        Quanto tempo ele estava sob meu cuidado? Talvez meses? Um ano?

        Escorreguei o dedo, deslizando-o sobre seu lábio inferior, percebendo ele abrir mais um pouco a boca devido ao meu movimento. Ressonava baixinho, misturado ao ronronado forte.

        Quanto... ou o quê... é necessário para ter um sentimento?

        Fazia anos desde a última vez em que eu havia experimentado tantos deles.

Ainda assim

Naquele momento...

        Foi questão de um instante — efêmero como uma flor — para que eu estivesse sentindo aqueles lábios contra os meus. Estavam quentes, úmidos devido ao seu costume de sempre passar a língua por eles.

Quando movi a boca, foi para poder prendê-los entre os meus dentes, suave para não machucá-lo. Puxei um pouco, até que, por fim, prendi seu lábio superior entre os meus. Suguei-o em uma vontade contida, deixando-o escorregar para longe da minha boca.

Afastei o rosto, abrindo os olhos lentamente — sequer havia notado no instante em que os fechei. Minha surpresa veio justamente das íris escuras ­— era o véu da noite me encarando.

Os segundos arrastaram-se, o som da janela inundando o quarto enquanto ela trepidava pelo forte vento da tempestade.

Seus dedos eram vagarosos ao gesticular, sem abandonar o olhar de mim. Respirei fundo e levantei-me da cama, jogando as cobertas sobre ele.

Meus passos foram pesados até a porta, saindo e a encostando com um banque mudo ante a força e o som do vento lá fora.

Encostei contra a madeira e por ela escorreguei até encontrar o chão. Levei uma das mãos ao colar de contas, a outra até os cabelos, apertando os dedos em ambos.

Sentimentos

Eram efêmeros

Por uma razão

E assim deveriam ser.

Mas Deus é curioso

Nas coisas que faz.

        — Não... era para ser assim, Deus. — Respirei fundo, fincando os dentes nos lábios. — Não era para ser assim.

        O gosto da sua boca na minha ardia; meus lábios, minha garganta. Parecia que ia sufocar.

        Mas o que mais doía era a pergunta para a qual eu não tinha resposta.

Por que me beijou, Kavi?

Não floresça.

Quando florescer

Será efêmero.

Por isso, não floresça.

 

Caso deva florescer

Por favor,

Por favor,

Não seja efêmero.


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Notas finais do capítulo

Por favor, não deixem de opinar o que acharam sobre eles! E podem perguntar o que não foi descrito aqui. Como é um piloto, muita coisa está faltando e eu vou responder com gosto todas as dúvidas que surgirem.

Quero também pontuar que esse é um presente ATRASADÍSSIMO pro Celso, meu querido, meu amado, ME PERDOA. Era pra ter dado isso junto com todos os outros presentes, até antes. Eu juro que tentei, mas nada saía. Aqui está. Não puxa minhas orelhas pelo Kavi, prfv ;3;