O Céu Continua Azul escrita por Just a writer


Capítulo 1
Capítulo 1




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O vento assoviava em seus ouvidos. Era estranho. Ela não se lembrava de ter saído, ou não se lembrava de qualquer outra coisa. O frio percorria sua pele como um cobertor, se estendendo, implacável e lentamente. Estava difícil abrir os olhos, a força do vento não deixava. Precisou esfregar os olhos para conseguir realizar essa empreitada. Verde e cinza. Formas não muito nítidas, era tudo o que ela conseguia enxergar. Ela. Não havia lembranças ou um nome a qual recorrer, apenas uma certeza. Sabia que apenas era “ela”. Mas quem realmente se lembra de alguma coisa quando se está caindo. O açoite da ventania em suas pernas e braços não deixava ela se estabilizar em uma posição fixa. Mas realmente, não sabia qual posição deveria tomar naquela situação. Estava caindo, não sabia como, mas estava. Forçou o braço a frente de seus olhos, uma tez branca, um pouco pálida, mas o que a assustou não era a proximidade do chão. Mas que seus braços, assim como todo seu corpo, eram envolvidos numa dança de chamas e labaredas. E assim ela caiu. Rasgando os céus como uma estrela cadente carmesim.

A noite não estava sendo uma das melhores. Eram relatórios atrás de relatórios. Com um pouco de sorte, teria uma advertência disciplinar com o nome de Jim nela. Já havia se tornado comum. Os Juízes não gostavam muito de como Jim exercia sua função como Senhor do Tempo. E ele não atribuía nenhum afeto ou respeito ao modo que os Juízes tratavam seus assuntos. O homem que Jim trombou era apenas mais um qualquer em meio a sua crise de meia-idade, ninguém se importaria se ele chegasse 30 minutos atrasado para o trabalho. Uma bala no pé não iria matá-lo. Jim era um dos Senhores do Tempo mais jovens já recrutados e aprovados, coisa que para ele, era no mínimo desagradável. Atraía olhares demais e perguntas demais. Achava que os Juízes o importunavam por algum tipo de inveja.

Ele remexeu mais um pouco nos papeis, e lá estava. Azul e cheio de assinaturas. Jim não deu muita atenção à advertência. Uma olhada rápida nas assinaturas e ele estacou. O Juiz-Mor Valladar também assinara a advertência. Era um mal sinal. Se até a autoridade máxima prestara atenção em Jim, estava na hora de começar a dançar conforme a musica, pelo menos até a poeira abaixar. Nada de incidentes ou qualquer coisa que chamasse a atenção de Valladar. Afastou a cadeira em que estava sentado da mesa, e caminhou até a porta, bocejando. O vento estava bom, fazia o cabelo do rapaz voar suavemente, e o céu límpido, sem estrelas. Esticou os braços para cima. Ele teria o dia seguinte de folga, isso era bom. Sem relatórios, ou qualquer outra coisa que o aborrecesse. Tocou a cicatriz na palma da mão direita, e sentiu um leve arrepio. Três anos já haviam se passado. Machados nunca mais. Aprendera a usar as suas pistolas por isso.

Conforme se aproximava do chão, percebia que sua velocidade diminuía. Isso estava errado. Se ela seguisse as leis da física, deveria se transformar em uma massa disforme de carne, sangue e ossos no solo. Mas estava desacelerando. As chamas acompanhavam o ritmo e lentamente iam se extinguindo. Seu corpo se enrijeceu, e assumiu uma forma ereta, como uma flecha. De uma queda desengonçada, ela mergulhava em um rasante. Ela não tinha mais controle sobre seu corpo. Se esforçou para movimentar os braços, e quando conseguiu, os colocou em posição para proteger o rosto. Não que aquilo fosse adiantar alguma coisa. Sua visão ficou aguçada, e ao longe, avistou uma casa solitária no campo. Mais adiante uma cidade, que não se parecia com nada com que já tenha visto.

Algo assoviava no ar, Jim notou. Em alta velocidade, mas gradualmente ia diminuindo. Era estranho. Ele vasculhou a sua volta, mas o brilho das estrelas ocultavam o que ele procurava. Demorou cerca de um minuto, para que ele a avistasse. Chamas que logo iam se extinguindo rodopiavam em volta dela, seus braços nus, bem como seu corpo, estavam numa posição defensiva contra um impacto vindouro. Jim fez cálculos rápidos, e determinou o local da queda. De súbito, disparou pelo campo verdejante, correndo a passadas largas. Ele queria chegar lá antes que qualquer um perceba que houve uma queda. Se aquilo que estava caindo era realmente uma pessoa, ele sabia exatamente de onde estava vindo. Ele tinha que chegar lá antes, a qualquer custo.

Por sorte, ela havia caído num monte fofo de folhas e gravetos. Estava difícil de se manter a respiração compassada. O ar ia e vinha num ritmo errático. Tudo o que ela enxergava era o céu escuro, pontilhado de estrelas. Constelações. Ela conhecia constelações. Vasculhou o céu, mas não havia achado nenhuma constelação que conhecesse. “Calma. Respire. Organize as idéias”, ela pensou. Nome, primeiro o nome. Laura, o seu nome era Laura Barnes. Puxou mais um pouco de ar. Tinha 19 anos. Tinha um pai, uma mãe, mas estavam separados. Lugar. Num impulso com os cotovelos, ela sentou e soltou uma golfada de ar. Olhou em volta, estalando a língua. Árvores logo as suas costas, uma pequena casa estava no limite de sua visão. Não fazia a mínima idéia de onde estava. Como. Ela estava no banho. Isso explicava a sua nudez. Um escorregão e depois, nada. Simplesmente nada. Enquanto tentava determinar a ultima data que conseguia se lembrar, Laura ouviu passos. Alguém vinha correndo para aquela direção. Olhou em volta, pensou em sair em disparada pelas árvores, e despistar quem quer que seja. Péssima idéia. Melhor o conhecido do que o desconhecido. Os passos estavam mais próximos, ela tateou o chão em busca de algo com que se defender, e esbarrou num pequeno pedaço de madeira. “Pesadinho, mas vai ter que servir”, ela pensou. Achando que estava ridícula, numa pose de defesa tosca, segurando um pedaço de madeira com as duas mãos, como se fosse um bastão de baseball. Sem contar que estava sem roupas. Era o cúmulo do absurdo para Laura.

Ela estava esperando qualquer coisa, menos um rapaz de cabelos prateados e olhos verde claros. Jim a olhou da cabeça aos pés, e não se impressionou. Ela era apenas mais uma garota comum, sem graça, que ele se habituara a ver.  Ela segurava um pedaço de madeira como se fosse um porrete, e seu corpo estava em uma posição de defesa desengonçada. Jim nem se esforçou para disfarçar o sorriso. Dois movimentos bastavam para derrubá-la. Era automático para ele imaginar maneiras de neutralizar possíveis adversários. Ele a estudava, Laura percebeu. Aquele sorrisinho debochado dele apenas a irritava. Arrastou a perna direita para trás. Seria um arremesso certeiro, se tudo colaborasse com ela. Um golpe certeiro no meio da face. Laura fez menção de retesar os músculos, em preparação para o lançamento. Em questão de meio segundo, Jim já estava sobre a garota. Ele imobilizava Laura segurando seus dois braços com as mãos, e suas pernas se debatiam debaixo do peso do corpo do rapaz. Dois movimentos foi superestimar ela. “Nem todos são soldados, Graham” ele pensou. Os olhos castanhos escuros de Laura encontraram os verdes de Jim. Ele era de uma calma pura, leveza e controle. Ele não era nem dez centímetros mais alto que ela, e mesmo assim, ele não podia acreditar que ele estava exercendo tanta força. E aquela velocidade de reação foi fora do comum. Parecia ser resultado de varias repetições desta mesma situação, até atingir a perfeição.

— Me solta! – ordenou Laura a Jim.

— Só se ficar quieta. Eu não vou te machucar – ele tentou acalmá-la.

Jim sentiu os pulmões da garota se expandirem, adquirindo oxigênio, e seus lábios se abrindo para um grito. Ele realmente estava gostando menos dela. Em outro movimento rápido, segurou os dois pulsos de Laura com uma mão e com a outra, abafou o grito.

— Eu falei para ficar quieta! Ou você não me entendeu?

Se debater e gritar não ia dar certo com ele, Laura percebeu. Ela semicerrou os olhos, escrutinando o rapaz. Se ele fosse fazer algo, já teria feito. Laura acenou positivamente para Jim.

— Ok, vou te soltar agora, está bem?

Cumprindo a promessa, Jim saiu de cima dela e se levantou. Estendeu a mão para ajudar ela a se levantar, num gesto amigável, mas ela o dispensou. Laura posicionou as mãos em volta das partes intimas, e olhou para o lado, embaraçada. Uma situação adversa. A única frase que vinha a sua mente.

— Onde eu estou? – Laura perguntou.

— Hm? Ah, estamos na divi... – não houve tempo de responder, pois Laura estava caindo, por conta de um desmaio. Antes do corpo cair no chão, Jim a encaixou entre os braços – Agora vou ter que te carregar – resmungou.

Whelm não perdoaria Jim por acordá-la no meio da madrugada. “Extrema urgência uma ova”, ela pensou. Não importava para ela se eram amigos de infância, simplesmente não se acorda alguém no meio da madrugada. Deu duas batidas rápidas na porta de Jim, e esperou ele atende-la. O rapaz continuava com a mesma seriedade no rosto de sempre. Quando ele iria relaxar, para variar? Ele transformava o trabalho em sua única vida. Vez ou outra, ela sentia falta de sair e passar um tempo com ele. Sempre apreciara as conversas entre eles. Jim não falou nada, apenas apontou para dentro da casa, requisitando sua entrada. “Grosso”, Whelm pensou. Sem pensar muito, a aristocrata entrou na casa. Deixaria ele explicar tudo, ou também seria grossa e o repreenderia sendo o mais rude o possível? Ponderou rapidamente. Escolheu a segunda opção.

— É melhor ser um motivo muito bom pra me acordar, seu idiota. Sabe, ao contrario de você, amanhã tenho o dia cheio... – Jim levou um dedo a boca, solicitando silencio  – quieta o cacete, Graham!

— Faça o favor de calar a boca! – o senhor do tempo ordenou – Tem outra pessoa na casa, se não notou.

Whelm enrijeceu e examinou o lugar. Realmente, eles não estavam sozinhos. Uma garota, provavelmente um ano mais nova que Jim, estava desacordada na cama dele. A aristocrata virou-se para o senhor do tempo, com o olhar assustado, mordendo o lábio inferior.

— Olha, eu sei que isso parece estranho, mas você tem que me ouvir! – Jim se aproximou de Whelm com as mãos levantadas.

— Por que tem uma menina na sua cama? E por que eu to aqui?

— Whelm, ela veio do outro lado da Freqüência. Encontrei ela na floresta – ele explicou.

— Ela ta morta? – o tom de voz da aristocrata oscilava. – Você me chamou pra ajudar a enterrar o corpo dela?!

— Não! Por que eu iria colocar um morto na minha cama? – Jim balançou a cabeça tentando achar algum sentido nas palavras da amiga.

Whelm tentou achar algum argumento, mas não encontrou. Caminhou para um canto, e desabou em cima de uma cadeira. Esfregou as têmporas e deixou escapar um suspiro. Fitou mais uma vez a garota, e notou a respiração lenta e padronizada dela. Isso era bom. Jim se pôs ao lado de Whelm, e estralou o dedo indicador da mão direita com o polegar. Ele queria ajuda, isso era o obvio para ela. Não era incomum pessoas do outro lado da Freqüência virem para este lado. Só que na maioria das vezes o sistema de pouso de emergência desses viajantes, não cumpria muito o seu papel. A maioria terminava como um monte confuso de carne no solo. Os que sobreviviam eram mandados imediatamente de volta, mesmo lugar, mesmo horário em que entraram pela brecha. Essa ultima parte incomodava Whelm. Jim sabia desse protocolo, então era apenas trazer a garota para o ministério, que eles assumiam o caso e a deportavam. Ela nem lembraria que veio para aquele lugar.

— Por que você quer manter ela aqui em Blacksteel, Jim? – a aristocrata quis saber.

— Ela talvez seja a minha passagem para o outro lado, Whelm.

Ela lançou um olhar triste para o amigo, que observava a moça deitada.

— Mais uma vez essa historia, Graham? Você sabe que o seu tempo de serviço está terminando. Mais um ano e meio e só. Os Juízes vão manter a promessa – Whelm apelou para a razão de Jim.

Ele ainda observava Laura, com uma expressão impassível.

— E eu ainda não acredito que eles vão cumprir tal coisa, Ronnie. – Jim fitou a amiga.

Ronnie. Ele só a chamava assim quando achava que a sua causa era a certa. Ele sabia quais botões apertar, para ter a cooperação dela. Passando as mãos por sobre o rosto, Whelm suspirou.

Jim era um mestiço, filho de alguém de Blacksteel e de outra pessoa do outro lado da Freqüência. Isso garantia a ele certas peculiaridades. Basicamente, ele era um super soldado nas mãos do ministério. Agilidade e força ampliadas. Tudo isso lhe era garantido enquanto estivesse no lado da Freqüência, nomeada Blacksteel, onde a intensidade de ondas gravitacionais eram relativamente baixas. Se ele estivesse no outro lado, na Terra mãe, ele seria como qualquer outra pessoa, pois as ondas gravitacionais eram mais densas. Não é muito complicado entender o problema de Jim.

— Escute, eu entendo essa sua paranóia, que você é valioso demais para eles te deixarem ir. Mas Jim, confie mais nas pessoas. Confie em mim. Eu posso fazer eles cumprirem a promessa – Whelm tentou alcançar a mão de Jim, que percebeu o gesto e a afastou com um movimento. Ela recolheu a dela, magoada.

— Eu não posso pedir algo assim para você, Ronnie. Sujar seu nome por mim? Um mestiço? A sociedade vai pisar em você e sua família. Lembre-se, você é uma aristocrata, imagem e força é tudo.

Whelm queria dar uma replica para o amigo, mas se viu sem argumentos. Ele era bom. Não deixava furos.

— E como você quer que eu te ajude, Jim? Você não me chamou aqui apenas para ser sua confidente – a aristocrata lançou-lhe um olhar penetrante.

— Documentos. Não deve ser muito difícil você arrumar algo para ela. Não posso manter ela aqui contra a vontade, então vamos ter que fazer ela confiar em nós. Confiar no que cerca ela. Vamos transformá-la numa cidadã de Blacksteel.


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