Dhyosis escrita por Bia Nascimento


Capítulo 5
Capítulo 4 - Dona Zefa


Notas iniciais do capítulo

Yoo galera 0/
Primeiramente mil desculpas pela demora para atualizar, fiquei super ocupada nesse fim/começo de ano e foi difícil atualizar, mas agora voltamos para o nosso ritmo normal!
Por enquanto esse é o último PoV diferente, os próximos capítulos serão de personagens que já conhecemos ♥



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Todos os dias desde que a calamidade se instalara no bairro haviam sido de caos, mas a última estava quase conseguindo superar as primeiras. Primeiro uma garota misteriosa aparece desacordada, então um dos nossos cai moribundo e é preciso uma incursão de emergência, suportar todos aqueles acontecimentos era algo difícil, principalmente para mim, que era para onde todos os problemas vinham primeiro. Algumas vezes acordava xingando meu já falecido filho Marcos pela ideia de abrigar pessoas em nossa casa, mas quando percebia o bem que isso fazia a elas e também a mim resolvia que todo esforço realmente valia a pena.

     Meu marido havia sido militar e trabalhado para diversos casos que foram segredo de Estado, logo uma casa bem protegida nunca foi um problema. Além disso, apesar de velha eu aprendi algumas coisas com meu cônjuge que também estava morto, e assim que soube da primeira notícia de infectados, quando eles ainda estavam do outro lado do mundo e poucas pessoas sabiam que realmente existiam, estoquei comida e água suficientes para um ano caso estivesse sozinha com meu filho. Marcos também fizera seus planos, apesar de no começo pensar que tudo o que eu dizia eram delírios de uma velha caduca, então em pouco tempo tínhamos quase uma brigada militar, com armas, comida e segurança o suficiente para aguentar a calamidade que viria.

     Quando tudo começou, apesar de toda segurança que desfrutávamos eu senti medo como nunca em meus então 60 e poucos anos de existência, e foi então que Marcos agiu. Ele me acalmou, como sempre fazia, e de algum modo me convenceu que a casa era grande demais para apenas nós e que deveríamos abrigar aqueles que precisassem. Passamos as primeiras horas do caos no portão, recolhendo aqueles que conseguiam chegar até nós. Algumas vezes infectados tentaram nos atacar, mas sempre conseguíamos nos livrar daquelas pragas. Estávamos prestes a lacrar a varanda, apenas para não correr riscos desnecessários, mas ele ouviu gritos na casa do lado e resolveu ajudar. Bem, nunca mais o vi depois disso, tudo o que voltou da varanda foi uma garota assustada.

     Depois que todos chegaram, de algum modo acabei me tornando a líder do local, mesmo que não tenha sido exatamente uma decisão própria. A primeira coisa a fazer foi dividir os cômodos e as tarefas entre os refugiados. Começamos com cerca de 40 pessoas, mas algumas chegaram, assim como outras partiram. A casa era grande, espaço nunca foi um problema, mas ainda assim vivíamos todos meio abarrotados. Nunca importou, afinal o realmente importante era sobreviver, coisa que fazíamos muito bem. Aliás, continuamos fazendo.

     Estava pronta para dormir, já quase deitada na cama, quando vi uma figura pequena correndo ao meu encontro. Era André, um pequeno garoto que perdera seus pais para a doença. Ele dizia que a garota que havia chego ao abrigo havia acordado e que estavam me chamando. Pacientemente agradeci a ele e me dirigi a nossa enfermaria improvisada. André foi correndo e saltitando a minha frente de maneira que eu não conseguiria acompanhar a menos que tivesse alguns bons anos a menos. Admirava a vigorosidade da juventude.

    Quando cheguei a enfermaria vi vários curiosos na porta, mas eles não se atreviam a entrar e eu via o porquê. Sempre que alguém tentava entrar Juan lançava um olhar fuzilante, o que deixou bem claro que ninguém deveria se aproximar até segunda ordem. Ao entrar percebi olhos ansiosos sob mim, não apenas do lado de fora, mas também vindos dos que estavam no cômodo improvisado. Sem dizer nada, Juan e sua "enfermeira" Alice se afastaram da maca, me dando visão do que estava acontecendo: A garota realmente havia aberto os olhos, mas era como se nada tivesse mudado, ela permanecia inerte em sua maca, a única diferença era que agora respirava com mais vigor e piscava algumas vezes, mas mesmo para mim que não entendia nada sobre o assunto, menos vezes do que deveria.

     "O que houve com ela, Juan?" Questionei o jovem doutor, curiosa pela situação da garota que não devia ter mais que 20 anos.

     "Bem, fiz todos os testes que foram possíveis, ela não está infectada, pelo menos não nos níveis de infecção que conhecemos. Também está viva, quando ela acordou desse jeito pensei em morte cerebral, mas quando a alimentamos ela respondeu todos os estímulos, inclusive tentou mastigar o alimento. Ainda assim não se mexe e não disse uma palavra desde que os olhos foram abertos. Talvez seja decorrente de algum trauma que ela tenha passado ou uma sequela passageira, vamos ter de esperar para conclusões mais precisas."

    "E quanto ao Paulo? Alguma melhora vinda dele?"

    "Apenas murmúrios febris durante o sono, mas parece ficar mais consciente aos poucos, logo estará acordado e conosco."

    "Tudo parece relativamente bem, então acho que podemos dormir. Juan, está dispensado. Você também Alice, assim como seus amigos."

     Todos saíram rapidamente, pareciam exaustos, principalmente o jovem Samuel que partira na incursão. Eu era uma das únicas da casa que dispunha de um relógio que continuava funcionando, e ele marcava quase duas da manhã. Quando estava prestes a fechar nossa enfermaria improvisada percebi que Alice continuava lá, velando os moribundos.

     "Alice, sei que gosta de ajudar, mas ficar acordada a noite inteira não vai fazer com que eles melhorem. Você sabe que sempre há plantões noturnos pela casa, mesmo de madrugada caso algo aconteça alguém vai perceber, e se for preciso eles vão nos acordar."

     "Mas Dona Zefa, e se..."

     "Nada de mas, já passou da hora deu desligar o gerador, não podemos desperdiçar energia assim, você sabe disso, não é? Vá pra sua cama e descanse, é notável o quanto você precisa de algumas boas horas de sono."

      Relutante, a garota de cabelos cacheados obedeceu e foi em direção a seu dormitório. Eu fui em direção ao porão da casa, normalmente a função de desligar o gerador era de quem ficava com a vigia da noite, mas como pareciam ter esquecido resolvi ir eu mesma, não se podia desperdiçar energia, encontrar gasolina para manter a máquina era algo cada vez mais difícil, mesmo com alguma reserva guardada.

     Mesmo o porão era repleto de gente. Era pequeno, úmido e seu cheiro de mofo era muito mais forte do que o resto da casa, então lá foram colocados aqueles que ao longo do tempo na casa se mostraram menos propícios a adquirir doenças. Antes de abrir a porta já se escutava o feroz som do gerador, me impressionava ver como aquelas pessoas conseguiam dormir feito pedra mesmo com aquele som incessante. Ele ficava no fundo da sala, o que me obrigou a saltar vários corpos estendidos em colchões ao longo do cômodo, tomando muito cuidado para não esbarrar ou pisar em ninguém, coisa que o escuro tornava quase impossível. Eu sempre precisava esperar um bom tempo para que meus olhos se acostumassem à escuridão. Finalmente cheguei no imponente maquinário e o desliguei. Poucos segundos depois o som que reinava no porão parou e tudo o que restava era o silêncio. Não o silêncio pacífico e bem vindo, mas um silêncio incômodo, quase perturbador.

     Era por isso que nunca gostei de desligar o gerador, uma casa repleta de gente em silêncio se tornava algo terrível. Ainda que eu não tivesse idade para temer monstros ou criaturas que se escondessem nas sombras, quando aquela casa ficava completamente quieta era como se parte da essência dela morresse, como se algo colhesse a vivacidade, a vitalidade que ali estava.

     Me senti grata ao chegar no meu dormitório, tão cheio quanto todos os outros. Lá estavam as pessoas com mais idade, logo entrar no quarto a noite era como entrar em uma caverna cheia de ursos, roncos preenchiam todo o local. A maioria dos que estavam na casa tinham pavor de dormir com companheiros que roncassem, eu mesma reclamava algumas vezes, mas depois de sair do silêncio absoluto do porão o que mais me alegrava eram ouvir pessoas roncando. Era quase como ouvir a vida.

     A noite passou tão depressa quanto chegou, tive um sono profundo e sem sonhos — como era praticamente todos os dias, não conseguia me lembrar da última vez que havia sonhado, o que talvez não fosse algo tão ruim assim — e quando acordei e olhei no relógio preso ao meu pulso eram quase seis da manhã. Não havia dormido muito, mas o suficiente, talvez a velhice estivesse tirando de mim a necessidade de dormir, já que na juventude eu costumava pensar que dormir era a melhor coisa que havia para fazer. Agora dormir era quase um fardo, algo que eu tinha que fazer enquanto poderia estar fazendo milhões de coisas mais úteis.

     Lavei minha boca com um pouco da escassa água que tínhamos no banheiro. Desde que os serviços públicos caíram para a doença a água encanada não era mais segura e em alguns lugares sequer chegava, então tínhamos que buscar galões perdidos ou mesmo usar o velho carro - que era nosso último recurso, já que mantê-lo era difícil - para nos abastecer com a água de represas nos arredores. A água jamais seria tão limpa quanto era antes, mas era o que tínhamos. No banheiro havia uma garrafinha de um litro que deveria ser utilizada com bastante sabedoria, logo alguns hábitos de higiene tiveram de ser abolidos para a nossa sobrevivência. Banhos eram recursos raros, escovar os dentes passou a ser um rápido enxágue, dejetos ficavam por dias no vaso antes de termos reutilizado água o suficiente para os jogarmos ralo a baixo. O cheiro da casa e nosso cheiro não era dos melhores, mas continuávamos vivos e com o tempo nos tornamos resistentes a alguns tipos de doenças causadas pela falta de saneamento. Ainda assim todo ano perdíamos alguns bons companheiros para doenças que jamais teríamos contraído se pudéssemos nos manter limpos. De todos os prazeres que a calamidade me privara, o que mais me fazia falta era um bom e longo banho.

     A casa se encontrava razoavelmente quieta, o gerador ainda não havia sido ligado e eram poucos os pés que se ouvia nos corredores, no geral não se acordava cedo a não ser que tivesse alguma tarefa específica que se designasse a isso, não haviam muitas coisas a fazer em uma velha casa repleta de infectados ao seu redor, logo dormir era um bom passatempo. A cozinha não trabalhava de manhã, cafés da manhã eram um luxo que não podíamos manter, mas como a última incursão havia trazido pó de café, resolvi fazer um pouco e deixar ao dispor de quem quisesse.

     Quando começou a ferver, um cheiro que não sentia há meses inebriou o local, nada era melhor para despertar do que aquele cheiro delicioso de café. Ao que parecia eu não era a única a pensar assim, parecia que o cheiro atraira todos os que estavam a acordado e, inclusive, acordado muitos, que aos poucos preenchiam a cozinha para uma dose de café preto, gosto que raramente teriam a oportunidade de sentir quando o pó acabasse. Quando coloquei os bules com o líquido fervente nas mesas, não demorou mais do que 10 minutos para acabar, mesmo que tivesse ficado aguado e amargo, já que não podíamos desperdiçar recursos. Aquilo pareceu animar a todos, enquanto tomavam percebi risadas vindas de pessoas que não via sorrindo há tempos, vi olhos brilhando e esperanças renascendo. O mais engraçado dos tempos de crise é que em algum momento sempre perdemos a esperança, mas coisas pequenas muitas vezes conseguem trazê-la de volta. Era isso que via em cada rosto naquele momento e também era isso que o gosto do café trazia para mim. Com certeza não era o melhor café que tinha tomado na vida, mas a situação, a falta dele durante tanto tempo fez parecer com que fosse. Saboreei cada gota e enquanto o tomava era como se toda a calamidade tivesse sido um sonho e eu estivesse em um retiro com amigos, todos felizes, saudáveis e de banho tomado. Percebi que lágrimas caíam do meu rosto quando terminei. As vezes a saudade de ter uma vida como antes doía assim, do nada, uma velha como eu não deveria viver uma vida como essa, cheia de saudades, cheia de parentes que nunca voltaria a ver, cheia de pessoas que perdeu antes que pudesse viver tudo o que queria com elas e sem perspectiva nenhuma de um dia voltar a ter a vida pacata de volta.

     Sequei as lágrimas, não por orgulho, mas eu tinha que inspirar a esperança naquela casa, se um dia a esperança nos deixasse tudo ia por água abaixo, não restaria mais nada e essa seria minha perdição, eu tinha que me manter forte para inspirar a força também. Foi quando percebi Juan ao meu lado com um copo vazio, onde as marcas deixavam evidente que houvera café dentro minutos antes.

     "Dona Zefa" Disse o homem, com um sorriso no rosto. "Boas notícias, Paulo acordou e está bem. Acordei Alice e pedi para que ela a fizesse companhia na maca enquanto pegava algo para ele comer, que era justamente o que estava fazendo agora quando a encontrei. A tosse passou e, mesmo que não tenhamos o suficiente para exames, diria que não voltará tão cedo, além de ter sobrado remédio para o caso de acontecer uma segunda vez."

     "Que notícia maravilhosa!" Respondi, feliz pela saúde do velho e carrancudo companheiro de quarto. "Temos algumas bolachas da última incursão, eu estava guardando para o Festival, mas pode pegar algumas, ele precisa se alimentar bem. Inclusive, vou para a enfermaria visitá-lo também, consegue pegar a comida sozinho, não é?"

     "Consigo sim, vai na paz Dona Zefa, nos encontramos daqui a pouco."

     Fui em direção ao cômodo improvisado o mais rápido que minhas pernas com reumatismo conseguiam, uma notícia boa sempre deveria ser aclamada, já que na maioria das vezes as ruins prevaleciam. Quando cheguei encontrei Alice conversando com o senhor de cabelos brancos e desgrenhados, enquanto ele gritava com ela perguntando da bengala.

     "Calma Seu Paulo, não deveria brigar com alguém tão cedo, principalmente quando essa pessoa cuidou tão bem de você" Disse tentando apaziguá-lo, apesar de estar me divertindo com a cena.

     "É você, sua velha gagá?" Ele disse, sem abaixar o tom de voz. "Aposto que você era outra que tava torcendo pra eu morrer! Pois saiba que vocês não vão se livrar de mim tão fácil não!! Eu ainda vou enterrar pelo menos metade dessa casa!!"

     "Deus te ouça, Seu Paulo." Eu disse enquanto pegava a bengala dele em cima do armário e a entregava para o mesmo, quando Juan chegou. "Aqui a sua bengala, mas antes de ir coma essas bolachas pra ficar mais forte, lembre-se que o senhor não comeu nada."

      "Deus? Não sei que Deus é esse que você fala não, se existisse um Deus e eu encontrasse ele eu ia mandar ele enfiar isso daqui no fiofó dele, ó!" Ele respondeu, mostrando o dedo do meio. "E eu como o que eu quiser, na hora que eu quiser! Não é uma velha igual você que vai me dar ordens!"

       "Bem, acho que devo deixar os cuidados com nossa equipe médica, enquanto vocês terminam o que tiverem que fazer com o Paulo vou chamar o João."

      "Por quê? Vão fazer outra incursão?" Era a primeira vez que Alice falara comigo no dia, e parecia preocupada, mas respondi com um sorriso no rosto.

       "Não, porque nosso querido Paulo está melhor, então hoje vamos fazer nosso Festival. E você sabe, ninguém aqui toca violão melhor do que o João."


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Notas finais do capítulo

Dona Zefa é um amor de senhorinha, não acham?



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