Dhyosis escrita por Bia Nascimento


Capítulo 3
Capítulo 2 - Samuel


Notas iniciais do capítulo

Aqui um segundo capítulo. Faz algum tempo que o escrevi, mas relendo gostei tanto dele, espero que gostem tanto quanto eu ^-^



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A primeira coisa que ouvi foram as vozes, depois o tossir incessante. Automaticamente meus pés seguiam a direção dos sons, apesar de muita gente, a casa em geral era quieta, sons demais nunca eram bom sinal. Cheguei lá a tempo de ver Paulo desfalecendo no chão e o Doutor o acudir. Paulo já tinha certa idade, provavelmente beirando seus sessenta ou setenta anos, apesar de dizer não se lembrar de que ano nascera. Era baixo e uma pequena corcunda despontava de suas costas. Apesar de mau humorado e resmungão, sempre ajudava no que precisava e todos nutriam certo respeito por ele, assim como a maioria ele tinha perdido tudo, inclusive as pessoas que mais amou.

    Pessoas começaram a se aglomerar e o semblante preocupado de Juan era perfeitamente visível, mesmo que tentasse se manter frio e alheio enquanto médico. Ele levou o paciente até a pequena enfermaria onde a estranha residente estava, deu alguns medicamentos e aos poucos a respiração do mais velho normalizava, os acessos de tosse paravam e ele parecia estar sedado. Saindo da enfermaria, o médico não trouxe boas notícias, disse que Paulo iria morrer, já que dessa vez a complicação em seus pulmões agravara e não tínhamos os medicamentos necessários para ajudá-lo. Foi então que eu levantei a mão e me ofereci a buscá-los em uma incursão de emergência. Não pensei duas vezes antes de tomar tal atitude, simplesmente agi, não podia deixá-lo morrer e estava certo de que outros se juntariam a mim e me ajudariam.

    Em poucos minutos já havia uma equipe para a incursão e equipamentos, nada além do básico, uma mochila com algumas coisas úteis e qualquer coisa que pudesse servir de arma. Alguns tinham pistolas e revólveres que portavam desde antes da calamidade, outros se muniam com coisas que encontraram em outras incursões, mas tudo que eu tinha era um canivete doado por Dona Zefa assim que entrei para os "outsiders", como se auto intitulavam os que saiam.

     Antes que saísse senti uma mão me puxando pelo ombro e me virei, vendo Alice atrás de mim com um olhar preocupado. De todos no abrigo, Alice era com quem eu mais me preocupava, ela era tão forte quanto qualquer um de nós, mas era tão pequena e aparentava tão frágil que tudo que eu queria fazer era protegê-la de tudo de mal que pudesse vir a acontecer, por isso virei um outsider, para me tornar mais forte e cuidar de minha pequena amiga.

      "Você sabe que nunca concordei com isso, não é?". Ela disse com a preocupação estampada em sua voz.

      "Não se preocupe, eu vou voltar bem, prometo. Você também sabe que eu nunca deixaria alguém sofrer e assistir a isso sentado. Em poucas horas eu vou voltar com o medicamento. Cuide dele enquanto isso, senhora enfermeira."

      "Irei dar meu melhor, e já que vai continuar com isso, dê seu melhor também. Boa sorte". Alice disse e então me abraçou.

     Se eu ainda tivesse algum medo ou preocupação teria desaparecido naquele momento, o calor que emanava do corpo dela e se juntava ao meu me acalmava, me fazia sentir capaz de fazer tudo, e como essa confiança me juntei ao grupo e sai em direção ao mundo exterior.

      Era minha segunda vez, e depois de anos preso com o medo dentro da casa ainda não havia me familiarizado com o que havia do outro lado. Era fim de tarde e o clima era de um calor agradável, o céu alaranjado e poucas nuvens, a paisagem seria linda se tudo ao seu redor não estivesse destruído. As ruas cheiravam a carne podre, casas completamente arrombadas, quebradas ou mesmo desmoronadas. As residências, antes com cores vibrantes e coloridas, agora tinham sua pintura gasta e a única cor que se mantinha vívida era o escarlate do sangue, o que não era pouco. Tudo estava deserto como nos últimos anos, mas ainda assim a tensão, ansiedade e adrenalina percorriam não só pelo meu corpo, mas nos dos meus companheiros.

     João, o mais velho de nós, tomou a frente da excursão. A farmácia mais próxima ficava a cerca de vinte minutos, mas já estava praticamente vazia, o que nos obrigaria a chegar o mais rápido possível em uma pouco explorada área. Minha vontade era correr, chegar até lá o mais rápido possível, mas correr era perigoso, já que além das passadas se tornarem mais altas não estaríamos atentos ao que acontecia a nossa volta, e esse era o essencial para sobreviver. Com muito pesar, tive de me contentar em dar algumas passadas mais rápidas enquanto o grupo caminhava em bloco, o que dificultaria um ataque e aumentava a defesa. Éramos seis, mas soávamos como apenas um, em uma perfeita sincronia que me surpreendia, principalmente pelo fato dela me envolver também, apesar do pouco tempo e idade.

     Aos poucos nosso bairro habitual ficava para trás e dava lugar a outros igualmente devastados. Algumas vezes me pegava observando as casas com janelas pregadas e me perguntando se em alguma delas havia alguém lá dentro, sobrevivendo de incursões e achando que não havia mais ninguém no mundo, assim como eu me sentia. A paisagem me lembrava alguns filmes da minha infância, quando apocalipses eram apenas ficção, mas ao que parece a vida realmente imita a arte, já que há apenas alguns anos tudo isso não passaria de um set de filmagem ou cenário na mente de um escritor. Andar assim, pelas ruas, era nostálgico. Me lembrou a época em que eu acompanhava minha mãe até o mercado. E me lembrou também o dia em que ela morreu.

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     Eu estava com ela no dia em que o caos se instalou. Estávamos a caminho do mercado, já um tanto distantes de casa quando ouvimos o primeiro grito e a horda de pessoas correndo. Depois de alguns segundos de choque, finalmente entendi o que estava acontecendo, peguei no braço da minha mãe e a puxei para que pudéssemos fugir, mas ela não moveu um músculo sequer, estava paralisada. Ela sofria de síndrome do pânico, por isso eu a acompanhava sempre que podia, e naquele momento ela estava tendo uma crise. Desesperado eu chamei, gritei por seu nome. Os infectados estava cada vez mais perto, tentei carregá-la, mas não aguentei seu peso. Gritei, implorei por ajuda, mas ninguém ao menos olhou para mim. Eu já podia enxergá-los, vi seus corpos em carne viva e não importava o quanto eu me esforçasse, não conseguia tirar minha mãe daquela situação. De repente vi lágrimas caindo dos olhos dela, mesmo que sua expressão permanecesse a mesma, e achei que aquilo era um sinal, ela deveria estar voltando aos seus sentidos. Seus braços se mexeram, suas pernas estavam prestes a andar e eu até cheguei a esboçar um sorriso. Ela começou a andar, eu a puxando para perto de mim, mas então percebi que a direção que estávamos tomando não era a mesma. Um infectado estava olhando fixamente para ela e ela estava andando voluntariamente até ele. Se eu ficasse ali por mais alguns segundos iria morrer. E eu realmente não me importaria se isso acontecesse, eu tinha acabado de perder tudo no momento em que ela começou a ir para aquele pedaço fétido de carne. Não conseguia raciocinar, eu só conseguia chorar e berrar pelo nome de minha genetriz, até que uma mão começou a me puxar para frente. Resisti, não queria sobreviver, queria ir para junto da minha mãe e não queria que nada me impedisse de fazer isso, mas a mão era persistente e continuou me puxando com força crescente até eu não conseguir mais me segurar no asfalto e praticamente ser arrastado para direção que ela me levava. Era Marcos me levando para o que então seria meu abrigo.

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     Voltando a realidade, senti meus olhos marejados e decidi voltar minha mente para o problema maior: Encontrar o medicamento de Paulo. Estávamos nos movendo mais rápido do que calculei, faltavam poucos quarteirões até a farmácia abandonada e tudo parecia correr bem, se mantivéssemos o ritmo chegaríamos vinte minutos antes do esperado. Lembrei dos acessos de tosse do mais velho, a careta que fazia a cada novo "cof" e o quanto parecia doer e de repente me perguntei se já não seria tarde demais. Eu sabia que tínhamos um pequeno estoque de morfina em casa, o suficiente para amenizar a dor... Ou acabar com ela de uma vez por todas. Sei que Juan não faria isso se não fosse necessário, mas que se fosse não hesitaria.

     Olhei ao redor. Tudo parecia tranquilo, mas as vezes me pegava desejando que algo acontecesse. Não que fosse um louco viciado em adrenalina ou quisesse ver a morte de perto, mas aquele silêncio era insuportável, principalmente quando acabara de sair de uma casa repleta de movimento. Eu só conseguia ouvir o "tap tap" de nossos sapatos gastos e as mochilas balançando, não conversávamos para não chamar a atenção e minha vontade era simplesmente gritar. Então, no meio do silêncio um som rasgou o ar e penetrou em nossos ouvidos, arrepiando cada pelo existente em meu corpo, até os que eu sequer sabia que tinha. Era um gemido, longo, arrastado e sombrio, não como alguém sendo apenas morto, mas como alguém sendo morto lenta e dolorosamente. E o pior de tudo era não estar distante de nós.

     Mantivemos nossa formação para que não estivéssemos desprotegidos de nenhum lado, todos pegaram suas armas e em meio a revólveres e escopetas, me senti impotente com meu pequeno canivete. Não demorou para ouvirmos outro som: Gritos frenéticos, não de alguém morrendo, mas de alguém se divertindo. Era a coisa.

     Nunca fui muito religioso mesmo que levasse minha mãe a igreja todos os domingos de manhã, porém me peguei rezando todas as orações que havia aprendido no catecismo. Parecia ser tudo que eu conseguia fazer, rezar para que ele estivesse sozinho e não nos dizimasse. Não havia visto uma daquelas coisas desde o incidente com minha mãe e não sabia que me sentiria assim quando visse uma novamente. Continuamos a andar, lenta e cautelosamente até que avistamos o que estava acontecendo e a cena foi a coisa mais perturbadora que já tinha visto na vida, por mais que os rostos ao meu redor só se contorcessem por nojo, não parecia ser a primeira vez que se deparavam com tal cena. Era um infectado, com sua carne exposta, seu cheiro fétido sentido a metros e seu resquício de razão perturbados com uma garota que parecia ser alguns anos mais velha que eu. Ele não estava a matando, o que com certeza seria melhor que estivesse fazendo, ele estava sobre a menina, estuprando-a violentamente, gritos estéricos saindo de sua face contorcida em prazer enquanto usava aquele corpo que parecia mais com uma boneca inflável. O rosto da garota estava paralisado, não demonstrava nenhuma emoção, provavelmente controlada pelo monstro que a abusava. Aquilo era horrível, senti o gosto de bile em minha boca e por pouco meu ralo almoço não fora regurgitado no asfalto devastado. Não fiquei mais que alguns segundos olhando antes de me virar bruscamente, mas pareceram horas.

     O líder fez sinal para que seguíssemos em frente e parecendo ler meu olhar que dizia "não vamos ajudá-la?" ele sussurrou "Ela já está perdida, controlada por ele, não podemos fazer nada, mas ao menos enquanto estiver se divertindo ele não nos perseguirá". Faltava pouco para chegarmos a essa altura, já até podia ver a farmácia a alguns metros, mas minha cabeça estava cheia de dúvidas e não sabia quanto tempo conseguiria ficar sem saná-las. Chegamos a farmácia que, felizmente, ainda parecia estar cheia de medicamentos, mesmo que muitos estivessem vencidos ou prestes a vencer. João mandou que cada um fosse a um lugar da farmácia procurar pelo famigerado remédio, mas não me dera qualquer função. Vendo meu olhar confuso, ele me levou até um canto afastado do estabelecimento, disse que precisava conversar comigo.

     João era grande e forte, mas facilmente batia 50 anos apesar de muitas vezes parecer mais novo que todos nós. Ele se sentou em um amontoado de caixas e me disse para fazer o mesmo nas caixas a sua frente. Apesar de não muito longe, a caminhada me cansara e o obedeci.

     "Você está cheio de duvidas, não é mesmo?". Me perguntou, mais uma vez aparentando decifrar meu olhar.

     "Sim, mais do que achei que teria". Respondi com sinceridade

     "Irei tentar responder todas, começando pelo que aconteceu hoje. Não é certo, assim como tudo que imaginamos saber sobre os infectados, mas cenas como a que viu hoje acontecem com mais frequência do que gostaríamos, principalmente nessa época do ano. Nossa função, além de conseguir os elementos básicos para sobrevivência, é aprender sobre os que foram infectados pelo vírus, descobrir pontos fortes, fracos, hábitos, entre outras coisas. Durante o tempo que partimos em expedições descobrimos que, assim como animais, eles sentem o período do cio instintivamente, faz parte da nova natureza deles, e nessa época simplesmente precisam de algum buraco ou saliência onde possam se aliviar. Mas como deve saber, não são de todo animais, um resquício de razão humana ainda persiste na mente deles, e é esse resquício de razão que faz com que eles sintam prazer. Alguns sentem prazer com os da própria espécie, mas outros, como o que você acabou de ver, sentem mais prazer fodendo humanos com toda voracidade e violência que tiverem. Como animais, isso é mais frequente em uma época que em outras, então felizmente daqui a alguns meses cenas assim serão raras, não terá com o que se preocupar." Ele falou calma e quase didaticamente, como um professor. “Algo mais que queira saber?”

Mesmo que tivesse medo da resposta, eu resolvi perguntar o que me assombrava desde que a calamidade se instalara, por viver nas ruas há tanto tempo ele deveria estar mais certo do que qualquer um, não importa qual resposta fosse.

“Você acha que já encontraram a cura? Que algum lugar se livrou da infecção?” Questionei, hesitante.

“Vou ser sincero com você, garoto”. Sua voz se manteve impassível. “Com certeza você já ouviu falar de Darwin, evolucionismo e seleção natural, e por mais estranho que pareça para você, eu acredito que eles sejam nossa evolução. Ninguém esperava por isso, claro, um processo tão repentino é novidade para a humanidade, mas quando você pensa sobre é quase o mesmo que aconteceu com o Homo Sapiens e o Homem de Neanderthal, o mais forte extinguindo o com menores chances de sobrevivência. Não acho que a humanidade aguentará por mais que uma centena de anos, e isso sendo otimista. Duvido que algum país tenha fronteiras fortificadas o suficiente para impedir a doença e mesmo que tenhamos alguns cientistas sobreviventes, faltariam recursos para a criação de uma cura ou vacina, além da dificuldade enorme que seria exportar ela para o resto do mundo, em lugares tão devastados quanto esse fim de mundo.” Vi um lampejo passar por seus olhos nesse momento. Era quase uma expressão de tristeza, mas imperceptível demais para se ter certeza, além de ter durado apenas alguns segundos.

João fez menção de dizer mais alguma coisa, mas então ouvimos vozes avisando que encontraram a medicação que poderia salvar a vida de Paulo. Não demorou para que batêssemos em retirada, saindo dali o mais rápido possível e indo em direção ao abrigo. O líder nada mais disse no caminho, e eu não conseguia pensar em mais nada além de suas palavras. Não consegui largar a ideia de que aquele era o veredicto final da humanidade.


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Notas finais do capítulo

Bem, agora rumamos para o próximo capítulo, que vai ser sobre o ponto de vista de uma personagem diferente 0/
Críticas e elogios são sempre bem vindos ♥



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