O Juiz da Verdade escrita por Goldfield


Capítulo 12
Capítulo 11: Oferta irrecusável




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Capítulo 11

Oferta irrecusável

O hovercar parou na frente do vistoso condomínio da zona oeste, tornado imponente estrutura luminosa em meio à noite. Os dois cientistas, entregando as chaves do veículo a um pouco polido manobrista robô que por centímetros não esmagou os dedos do motorista com suas garras de pinça, dirigiram-se até a portaria.

— Essas geringonças... – o pesquisador quase ferido pela máquina murmurou, um olhar raivoso dirigido a ela enquanto se afastava sobre seu flutuador.

Talvez seja vingança do universo por você falar tanta besteira...— o colega pensou consigo.

Enquanto se aproximavam da cabine blindada junto à porta de entrada do edifício, toda erguida em vidro, o mesmo indivíduo viu-se tomado de receio. Perguntou ao parceiro:

— Como vamos entrar?

— Deixe comigo, tenho algo preparado... – o tom do outro foi de completa despreocupação.

Subiram alguns degraus. O cientista confiante foi o primeiro a se colocar diante da guarita, sem achar parecerem nem um pouco estranhos andando em público com seus jalecos de trabalho. Sob os visores de câmeras, detectores de movimento, sensores de calor e toda parafernália que sabia auxiliar o porteiro humano a identificar más intenções, o recém-chegado debruçou-se sobre a parte exposta do balcão da cabine e, encarando tanto o vulto sem feições do outro lado do vidro quanto a face hesitante de seu colega refletida nele, iniciou conversa:

— Boa noite. Será que poderíamos passar?

— Identificação, por favor – a voz abafada e mecânica do funcionário percorreu o caminho entre o microfone e a caixa de som no exterior.

— Doutores Martins e Ferreira, do IML. O juiz Pedro de Castro requisitou nossa presença para debater pessoalmente um laudo médico.

Um silêncio se estendeu por vários segundos, o cientista sabendo que o porteiro checava a agenda compartilhada dos moradores em busca da visita programada com antecedência. Tamborilou os dedos sobre o balcão algumas vezes antes de ouvir a resposta:

— Podem entrar. O juiz Castro os aguarda.

A porta de vidro deslizou para liberar passagem, o pesquisador agradecendo num aceno enquanto, reunindo-se ao seu embasbacado parceiro, dava os primeiros passos no interior do prédio.

— Como conseguiu? – a pergunta dele era mais que prevista.

— Por favor, hackear o sistema do prédio e inserir um compromisso na agenda é nível básico. Além do que, as identidades de Martins e Ferreira nos servem bem há algum tempo, por mais que não saiba. É como ficamos realmente conhecidos quando prestamos aqueles serviços à PU, ano passado. Se checarem o banco de dados, encontrarão dois médicos legistas com esses nomes e nossas caras.

O outro bufou. Não podia dizer que o agradava alguém criar identidades falsas suas a torto e a direito, porém já estava tão perdido naquele oceano que melhor seria respirar fundo e nadar.

Chegaram ao elevador e seguiram nele até o trigésimo sétimo andar. O cientista que driblara a portaria tinha todas as coordenadas – visivelmente espionava a vida do juiz Castro há tempos. Cruzando o corredor seguido pelo companheiro, logo se deteve diante do apartamento 909. Encararam a porta por instantes antes que o acompanhante finalmente tomasse alguma iniciativa e pressionasse o botão do interfone, mesmo a contragosto. O aparelho chiou, ao mesmo tempo em que ativava seus sensores luminosos e varria a área diante da entrada, enviando hologramas dos dois visitantes ao interior do apartamento. O pesquisador relutante olhou diretamente para um dos feixes e teve a visão ofuscada, queixando-se num gemido enquanto abaixava a cabeça e protegia com a mão a retina atingida.

— O senhor Pedro de Castro está? – o cientista mais ousado indagou junto ao interfone.

— Quem deseja? – a voz do outro lado foi de mulher, fazendo com que os dois visitantes se entreolhassem.

— Dois cientistas a mando do governo. "Ordem e Verdade", senhorita.

Uma pausa de cautela veio antes que a moça prosseguisse:

— Como posso confiar em vocês?

— Ora, com a PU nas ruas, como poderíamos ser bandidos?

Dois segundos depois, o estalo da tranca sendo liberada foi ouvido, a porta se abrindo diante deles. Enfiando as mãos nos bolsos, o pesquisador conteve uma risada. A propaganda do governo servia para alguma coisa, afinal de contas.

OK, o apartamento era bacana. Eletroeletrônicos de última geração, móveis todos em vidro. Após meses isolados nas instalações de pesquisa, passar uma temporada naquele castelo moderno com vista ao mar mostrava-se tudo que os dois cientistas poderiam querer. A lembrança de ali estarem a trabalho logo os atingiu, todavia – mesmo quando se depararam com a bela mulher de blusa rendada, saia florida e saltos altos observando-os do centro da sala de estar, seu semblante intrigado ainda assim não perdendo o encanto gerado pelos olhos claros e compridos cabelos castanhos.

— Perdoem a desconfiança, mas não sabia que Pedro estava habituado a trabalhar com... – ela levou alguns instantes examinando-os de alto a baixo. – Cientistas.

Um melhor pedido de desculpas seria nos convidar a sentar— o pesquisador mais falante remoeu admirando os arrojados sofás, resolvendo guardar a queixa para si mesmo.

— Quem está aí, Mônica? – foi a vez de uma voz masculina perguntar, aproximando-se por um corredor.

Os visitantes lançaram os olhos ao homem de cabelo semigrisalho vestindo camisa polo e calças jeans, pés calçando sapatos caros e lustrosos. Trajes bem diferentes da toga e todo o cerimonial cercando a figura de um juiz; e os pesquisadores não podiam deixar de se sentir privilegiados em terem acesso à intimidade de alguém tão importante. Ainda mais quando notaram a mesinha com uma garrafa ainda fechada de vinho e um prato de fatias de queijo disposta perto de onde a mulher estava.

— Oh, espero não estarmos interrompendo algo... – o mesmo cientista fingiu constrangimento.

— Esquecerei o incômodo se me contarem logo quem são – Pedro de Castro exigiu com certa autoridade, cruzando os braços. – E como diabos passaram pela portaria.

Eles ficavam rapidamente com a situação comprometida. Certo, naqueles momentos o melhor era sempre jogar as cartas na mesa. A dupla, e principalmente o pesquisador que guiara o companheiro até ali, jamais teria alcançado funções tão importantes se temesse arriscar. Erguendo uma sobrancelha, o referido cientista indagou ao juiz:

— Parece um pouco abatido, senhor Castro. Problemas com Carlos?

Foi a vez das sobrancelhas do juiz se arquearem. Ah, a sensação do sangue fluindo para fora do rosto, a palidez...

— O que disse?

— Ah, nós que trabalhamos com pesquisa para o governo possuímos credenciais para um acesso ou outro aos arquivos da Inteligência... – o cientista mentiu, deixar Pedro encucado sobre o Estado saber do problema de seu filho ao invés de ter descoberto por pesquisa própria sendo útil aos seus planos. – Perdoe a indiscrição. Meu nome é Reinaldo Monteiro. Este é meu assistente, Matheus Brito.

Percebeu que o colega estava tão chocado por ele ter revelado sobre Carlos que caminhava sem sossego ao longo da sala, observado com cautela pela mulher de saltos, a tal Mônica – a qual o juiz por sinal tivera maior êxito em excluir do conhecimento dos outros que o distúrbio do próprio filho. Pedro permaneceu imóvel, embora o semblante já demonstrasse crescentes doses de preocupação.

— O que querem de mim? – perguntou em seguida. – Isto é algum tipo de chantagem?

Reinaldo quase riu, porém vinha conseguindo controlar satisfatoriamente seus impulsos.

— Não, senhor Castro, viemos apenas conversar. Fazer uma proposta, na verdade. Não nos interprete mal...

— Nós desenvolvemos uma nova arma para combater o crime, trabalho de anos – Matheus interveio para ajudá-lo. – Se funcionar, revolucionará o poder judiciário mundial, possibilitando a criação de um sistema de penas perfeito. Inocentes jamais serão condenados.

— É uma tecnologia pioneira, inteiramente nacional – Reinaldo emendou. – Eu e Brito chefiamos a equipe de pesquisadores, e Brasília já autorizou os primeiros testes.

Pedro acompanhava tudo tão sério quanto confuso, suas piscadas assemelhando-se às luzes de um computador antigo enquanto processava os dados. Balançou a cabeça, olhou para Mônica por cima dos ombros de Reinaldo e então questionou:

— E o que eu tenho a ver com isso tudo?

— Bem, decidimos ser você a pessoa perfeita para receber esse dom – Monteiro falou sem mais titubear. – Um juiz infalível e incorruptível, ideal para se tornar o primeiro ser humano capaz de distinguir plenamente verdades de mentiras. De se converter nos olhos da deusa Minerva neste mundo.

Os punhos de Castro se fecharam, assim como as linhas de seu rosto, rígidas feito ferro esmagando papel. Ele não compreendera do que se tratava a pesquisa; na realidade eles nem esperavam que compreendesse naquele primeiro momento. Tudo a ser feito, agora, era garantir que colaborasse da melhor forma possível.

— Então vêm ao meu apartamento propor que eu me torne cobaia desse experimento científico maluco de vocês?

— Senhor Castro, entenda os benefícios à Ciência e ao próprio país... – Matheus tentou argumentar.

— Pedro, eu vou ligar para a polícia! – Mônica soou desesperada atrás de Reinaldo.

O cientista, por sua vez, fechou os olhos. Mantenha a calma, mantenha a calma.

— Nós trabalhamos para o governo. Se chamarem a PU aqui, só garantirão que o senhor Castro seja levado à força ao invés de resolvermos isto como pessoas civilizadas – teve de fazer uso do blefe, até porque ele e Brito seriam realmente presos caso a lei batesse àquela porta.

— Acho que já sei a melhor maneira de resolver este problema!

Quando o juiz assim falou e Reinaldo viu sua mão direita descer até a cintura, os dedos apanhando o cabo da pistola Smithney até então ocultada com sucesso sob uma dobra da camisa, concluiu que teria de recorrer ao plano de contingência.

Sua mão também agiu, dirigindo-se a um bolso do jaleco. Encaixou-a perfeitamente na arma, erguendo-a num piscar de olhos e se arrependendo de todas as vezes em que desmereceu seu período no Exército, principalmente as longas lições de tiro.

Apontou a pistola de cerâmica – invisível a detectores de metal – para Pedro, ameaça mais imediata. A concentração não foi afetada pelo berro da mulher e muito menos pelo cano da pistola inimiga a centímetros de sua cabeça, seu dedo no gatilho conseguindo agir segundos antes. O privilégio de não se ter escrúpulos...

Um estampido e algumas gotas de suor depois, corpo atirado ao chão para escapar do provável disparo de revide, Reinaldo viu o dardo fincado no peito do juiz. Havia tranquilizante suficiente ali para adormecer um cavalo, mas nem na mais fajuta ficção científica o efeito seria imediato.

A previsão se confirmou assim que Castro se jogou sobre Monteiro, derrubando-o enquanto – com a Smithney voando longe e os braços desajeitados começando a sentir o efeito da substância – tentava socá-lo, para logo em seguida mudar de ideia e unir as mãos em volta de seu pescoço, mais imobilizando que estrangulando. O primeiro aperto já veio sem força, e o pesquisador só aguardou poucos instantes até que as mãos do juiz afrouxassem de vez.

Ficar se movendo feito um leão dando bote só ajuda a espalhar o tranquilizante mais rápido por sua corrente sanguínea, idiota!

Pedro passou os últimos segundos de consciência tomado pela raiva encarando Reinaldo, os olhos transparecendo a frustração de alguém querendo fazê-lo em pedaços, mas incapaz de se mexer... até fecharem, os músculos do corpo todo relaxando numa longa expiração.

O cientista simplesmente empurrou o juiz de cima de si e levantou-se, visão percorrendo a sala.

Além de um sofá virado – o encosto de vidro tristemente rachado antes que Monteiro tivesse aproveitado seu conforto – e uma luminária no chão, deparou-se com Matheus, de pé, cara de choro e sua pistola de cerâmica também empunhada, ao lado de Mônica, caída de bruços com um dardo preso à nuca e um dos pés descalços, sapato perdido a meio metro de distância.

— Ora, alguém aqui está com a pontaria melhor que a minha! – Reinaldo aproximou-se dando um tapinha no ombro do colega.

— O-o que f-faremos agora? – Brito tremia, olhar alternando-se entre Pedro e a namorada como se estivessem mortos ao invés de meramente desmaiados.

— O piloto do helicóptero tem nossas coordenadas, e está a caminho do terraço para nos recolher com o "voluntário" – apontou displicentemente ao juiz. – Quanto à mulher, não se preocupe. Levou uma dose concentrada na cabeça e vai levar algum tempo até discernir o que achará ser a lembrança de nossos rostos. E ah, tente se recompor! Se vamos mesmo dar prosseguimento ao projeto, prepare-se para encarar ação novamente...

Coube a Matheus apanhar Pedro desacordado e, com certo esforço, conduzi-lo nos ombros até a saída do apartamento. Reinaldo achava que a subida pelos andares restantes – usando as escadas, logicamente – seria um bom treino ao amigo.

Antes de também se retirar, Monteiro voltou até a mesinha e, num suspiro de satisfação, apanhou a garrafa de vinho.

Um último espólio da vida pregressa do juiz Castro para que, após o experimento, jamais voltasse a invejá-la.

X – X – X

Passou da meia-noite, o relógio de pulso apitando.

— Nenhum movimento suspeito no túnel, a não ser alguns ratos – informou Martinho.

— Ótimo – disse Bernardes. – Contem cinquenta e sete dias.

— Cinquenta e sete dias.

"Eis os oficiais da Polícia Unificada, do comandante Júlio de Almeida. Responsáveis que têm vergonha, eis os oficiais da Polícia Unificada. Corujas de pernas de águia, cara de mau, olhar cruel, que a traficar ninguém se ponha junto aos oficiais da Polícia Unificada. Onde se dê ação medonha agem todos em tropel. Qualquer homem que lhes oponha são semblantes de fel. Eis os oficiais da Polícia Unificada, do comandante Júlio de Almeida".

O som emitido pelos alto-falantes dentro do prédio ecoou até os esgotos.

— Plágio do quê? – perguntou Martinho.

— "Cyrano de Bergerac", de Edmond Rostand – respondeu Bernardes, que sabia das coisas.

E apagaram-se as luzes.


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