O Juiz da Verdade escrita por Goldfield


Capítulo 11
Capítulo 10: Auto-reconstrução




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Capítulo 10

Auto-reconstrução

Sentir-se do mesmo modo de sempre com nenhuma pessoa no apartamento só fez Carlos entender o quanto já havia condenado a si mesmo à solidão.

Jéssica fizera as malas e partira à casa da mãe – e, depois do namorado golpeá-la de modo tão covarde, seria compreensível ela nunca mais voltar. Só torcia para que todo o tumulto que causara não prejudicasse sua admissão na Stelix Corporation: ela merecia ser feliz bem mais do que ele. Todos naquela droga de planeta mereciam, afinal – com a exclusão, unicamente, de seu pai.

A noite chegava com o movimento nas ruas atingindo o horário de pico e os prédios iluminados sendo embalados por um céu inexpressivo sem estrelas, ainda carregado de nuvens azuladas. No alto do apartamento, Carlos, sentado no chão da sala, sentia-se pairando acima da desordem de buzinas enquanto encontrava meios de devorar a própria alma.

Para além de todo o misto de raiva e arrependimento que persistia em dominá-lo, uma dúvida crescia em seu peito, convertendo-se cada vez mais em preocupação: não ter sentido, ou ao menos ainda não ter associado, efeito algum do comprimido que engolira.

Estava certo que as últimas horas haviam sido marcadas por intensa sede. Visitara a geladeira diversas vezes para esvaziar três garrafas inteiras de água gelada, e mesmo assim não se sentia plenamente saciado – porém sabia que o sintoma estava mais relacionado à desidratação causada por seu surto de Perestroika, efeito já bem conhecido, do que algum reflexo da nova droga. Além disso, a primeira era famosa por suas consequências imediatas, intensificadas conforme se criava uma rotina de consumo. Se não estava alucinando, a segunda devia ter um funcionamento diferente; ou então aquela própria realidade que julgava verdadeira já seria seu efeito, e ele teria de lidar com simulações de uma vida solitária ao invés de animais coloridos ou dimensões sem leis da física dali em diante...

Embora com frequência se questionasse a respeito de já viver numa ilusão desde o dia em que nascera.

Grandiosíssima bosta essa "X-Mind"!

Bufando impaciente, jogou-se sobre o sofá. Queria de algum modo livrar-se do vácuo interno que o impedia de prosseguir, dar jeito em sua vida. Alguma maneira pela qual pudesse se auto-reconstruir por inteiro... quando ouviu um grito.

No começo moveu-se inquieto, incerto sobre ter sido um som real ou a X-Mind finalmente fazendo efeito. A cabeça percorreu cada canto da sala, o olhar demorando mais tempo sobre a janela, para então o berro se repetir – criando confiança suficiente em Carlos para crer ser verdadeiro.

OK, os dois gritos não tinham vindo de dentro do apartamento, mas ainda assim foram próximos. E a voz com certeza era de mulher.

A origem provavelmente fora um apartamento vizinho, naquele mesmo andar ou algum perto o bastante, senão um dos corredores. Algo atípico para aquele prédio, quase sempre quieto e ausente de distúrbios, habitado por "gente de bem" de classe média alta para cima – ou o juiz Castro certamente não o teria escolhido como moradia ao filho todo problemático.

Carlos levantou-se. O impulso de saber o que acontecia lá fora enfrentava uma incrível vontade de continuar largado no sofá; mas o primeiro, ao menos naquele momento, vencia. Os pés pisaram trôpegos e descalços até a porta, sujando-se de queijo seco de pizza pelo caminho, e a mão direita do rapaz levou algum tempo vistoriando os bolsos até encontrar seu cartão de acesso. Depois de um piscar da tranca e dois deslizes da porta, ele estava no corredor.

Nunca fora de interagir muito com os vizinhos, até porque sabia que eles o olhavam com preconceito. E conhecer alguém envolvido com drogas significava manter a máxima distância possível para não se entranhar em problemas com a polícia, conforme ditava o senso comum. O governo tivera sucesso em transformar viciados em párias sociais, mas era escancarada a ironia de agora justamente um deles procurar ajudar quem quer que estivesse em apuros naquele prédio – mesmo que Carlos não soubesse explicar direito o que o movia a agir.

As fileiras de portas fechadas de cada lado do corredor compunham enigma a ser decifrado, os números inscritos em suas superfícies embaralhando ainda mais os pensamentos do jovem. Ansiou por mais algum indício sonoro de onde vinham os problemas, quando repetidas batidas causadas pelo que parecia uma pessoa golpeando outra se fizeram ouvir, provindo claramente do apartamento 77, às costas de Carlos.

Então havia ali um clássico caso de violência doméstica contra uma mulher. O rapaz pensou em voltar atrás, fazer valer a máxima do "Em casamento ninguém se intromete e nem a PU introduz o cassetete" que ouvia desde os tempos da escola; porém sua cabeça estava definitivamente travada em seguir adiante, como se fosse um sonâmbulo acordado que, embora tivesse total controle de seus movimentos, não podia conter aquela forte e repentina força de vontade.

A porta do apartamento parecia uma muralha de pedra, a tranca tendo a luz verde padrão acesa para indicar estar selada e totalmente alheia ao que acontecia lá dentro. Carlos precisaria burlá-la, e também se preparar para enfrentar um provável marido covarde. Ele não tinha muita preparação física, tampouco habilidade em qualquer tipo de luta. Esperava ao menos que, em sua urgência em ajudar, pudesse solucionar a situação de algum modo...

Ou então sair eu pela portaria num saco plástico, ao invés dessa pobre mulher!

Sem saber bem como ou por que, começou a chutar o mecanismo da tranca.

As primeiras vezes foram mais difíceis, a perna sentindo o esforço em ser erguida enquanto ameaçava uma câimbra, mas logo se deixou levar. A sola descalça do pé esquerdo ardeu contra a superfície metálica da trava, e na quarta ou quinta vez notou um filete de sangue descendo pelo calcanhar; isso, entretanto, só motivando Carlos a continuar, tal qual descontasse todas as frustrações naquele obstáculo. A reprovação na OAB, o autoritarismo do pai, a própria idiotice em ferir Jéssica durante seu surto, talvez refletida no presente impulso de salvar uma mulher... Cada alvo, cada motivo de raiva esmagado conforme a tranca era golpeada.

Quando o revestimento já amassava e os dedos do pé se banhavam em vermelho – embora o rapaz, surpreendentemente, sentisse bem menos dor do que imaginaria sentir – faíscas saltaram e a porta deslizou, num tranco, para dentro da parede. Os olhos de Carlos demoraram um segundo para se habituar à escuridão dominando o interior do apartamento, contrastando com a iluminação branca e intensa do corredor.

Assim que conseguiu delimitar o que era o que, notou que o único foco de claridade na sala de estar da residência era o pequeno conjunto de luzes piscando em azul e vermelho num aparelho retangular disposto sobre um armário, bem ao lado de uma imensa TV de tela plana àquele momento desligada. No centro do cômodo, semioculta pela penumbra enquanto, a passos confusos e braços estendidos, tateava o vazio tal estivesse vendada, uma figura movia-se quase em círculo, seu crânio tão grande que remetia a um alienígena ou monstro disforme, perturbado por Carlos no coração de seu covil...

Mas era somente uma mulher, de camisa regata, shorts jeans e pés descalços, com um capacete de realidade virtual à cabeça enquanto jogava algum game novo de terror – a pequena embalagem deixada no chão contendo na capa a gravura de um monstro esverdeado com um machado na mão e uma inscrição que terminava em "...das Trevas", a outra metade não conseguindo ser lida pela pouca luz, revelando a Carlos a real natureza do perigo que o atraíra.

Sem ainda notar o invasor do apartamento – o sistema de áudio embutido no capacete não permitindo à moradora ouvir nada fora do jogo, ainda mais pelo volume dever estar no máximo – e com a respiração ofegante devido à adrenalina causada pela simulação, a moça pisou fortemente o chão, causando o mesmo barulho captado antes por Carlos que imaginara ser de um agressor.

O governo devia exigir licença para alguém jogar essas coisas...— o jovem pensou, logo em seguida se sentindo hipócrita.

Ficou sem ação por alguns instantes, olhando aturdido pela sala e se certificando que a vizinha realmente não o percebera ali; para então recuar e, passando com cuidado pela porta arrombada, notando só então com clareza o estrago feito na tranca eletrônica.

Tendo consciência e nervos trabalhando em conjunto, sentiu as primeiras pontadas no pé ferido. Tudo isso somado à avassaladora conclusão de ter agido feito idiota.

Punhos fechados e cabeça baixa, Carlos saiu mancando pelo corredor, o pouco sangue deixado pelo piso servindo para tranquilizá-lo quanto a não produzir um rastro de volta ao seu apartamento. Com sorte a vizinha só ficaria espantada em como interagir com a realidade virtual podia danificar o mundo verdadeiro ao alcance de seus movimentos; ou terminaria atenta a possíveis ladrões que invadissem sua casa enquanto se distraía com games idiotas, agradecendo por aquele primeiro não ter levado nada.

Carlos, no entanto, só conseguia se questionar a respeito de que impulso misterioso o levara a fazer tudo aquilo, importando-se e arriscando-se em relação aos outros quando seu padrão de vida era tão focado em si próprio – incapaz até mesmo de considerar os efeitos colaterais de suas atitudes sobre aqueles que amava. Tendo o coração pesado e um quê de surpresa, imaginou se tal mudança não teria lados positivos...

E, com a porta do apartamento fechando-se atrás de si, cogitou também se não seria justamente aquele o efeito da droga X-Mind.


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