Liawë escrita por Vaalas


Capítulo 1
Capítulo I ― Freya


Notas iniciais do capítulo

Tenho grandes planos para esse universo, espero de verdade que gostem. Essa é só uma das dezenas de histórias que já tenho nesse mundo ♥
boa leitura



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― Pare de ser medrosa, Freya. É só um lago congelado com uma história sombria. ― Neo deu o primeiro passo e deslizou por metros, os pés juntos diante do corpo. ― Viu? É só gelo. Se ficar longe das partes onde a camada é mais fina e transparente, vai ficar tudo bem.

Eu não estava convencida. Nunca havíamos ido para tão longe de casa, tão para o Norte, em um ponto onde os Dedos pareciam ainda mais grosseiros e azulados ao leste. Não gostava da ideia de chegar perto demais de Lis oc’Arwan, mesmo que suas águas estivessem congeladas desde que a magia enfraquecera por todo continente. Havia algo naquele lugar que me impulsionava para longe, uma pressão guiando para o lado oposto.

Neo não parecia sentir, no entanto. Movia-se sem leveza alguma no gelo, passo após passo cheio de desequilíbrio.

― Não acho que seja uma boa ideia, Neo. ― conclui, com receio. ― Mamãe nos mataria se soubesse que estamos aqui.

― É por isso que ela não vai saber, idiota. Porque você não vai dar com a língua nos dentes. Agora larga essa sacola e venha até aqui antes que eu lhe arraste pelos pés.

A bolsa pesava levemente no meu ombro, mas não me importei. Me sentia mais confortável com ela ali ― com a ideia de que não patinaria naquele lago ―, cheia de maçãs e tiras de carne seca, para o piquenique que deveríamos estar fazendo.

O céu estava perolado àquela hora, pouco depois do meio-dia, e me sentei na neve com uma tira de carne salgada entre os dentes.

― Não acredito que você está realmente com medo das histórias de Bill, Freya. ― Neo se afastou de mim, tropeçando ― Deveria confiar em mim que sou seu irmão mais velho, não naquele velho cheio de histórias de bruxaria.

― Bill fala a verdade, Neo, você sabe. Lis oc’Arwan era o coração da magia do norte séculos atrás, e isso não é lenda, é fato. Você está pisando bem onde Arwan reinava sobre os seres mágicos em tempos antigos.

Neo parou, encarando o gelo abaixo de si, e acabei fazendo o mesmo. Estremecia só de pensar no que ainda poderia existir lá embaixo, na imensidão congelante e azul, mesmo com a magia agora enfraquecida.

― Arwan! Pode me ouvir?! ― Neo pulou o mais brutalmente que conseguiu, mas parou ao quase escorregar ― Bem, parece que não. Anda, Freya, não tenho o dia inteiro para ouvir essas besteiras. Pare de ser tão criança.

 ― Eu tenho dez anos, Neo. Eu sou uma criança.

― Então seja uma boa criança e obedeça os mais velhos. Venha cá.

Suspirei sonoramente, me levantando e limpando a neve das minhas calças. Desde que ele alcançara a maioridade passou a se achar muito mais velho e sábio do que realmente era.

― Você deveria ter continuado em Böras, idiota.

Ele sorriu para mim quando me viu dando os primeiros passos até o gelo. Mesmo assim, mesmo com aquele sorriso e com aquele ar de fraternidade no ar, como os dois cúmplices que éramos, me sentia mal. Cada célula do meu corpo parecia tentar me avisar para dar às costas àquele lugar ― para voltar para casa, para Prion, para minha cama quente e meus papéis em branco sobre a escrivaninha ―, mas não o fiz.

Pisei no gelo e peguei impulso.

x

Naquele dia ― no dia em que morri ― eu ouvi o gelo cantando sob meus pés. Senti a magia, aquela velha e quase extinta magia, tão frágil quanto uma camada de vidro, me puxando para baixo e para o fundo.

Num segundo, patinava sobre o gelo com Neo alguns metros à esquerda, contando uma piada obscena demais para se contar a uma criança.

Noutro, o gelo trincava, chiando em agonia abaixo de mim, pequenas linhas traçando diversas trilhas finas, como pequenas fraturas e cicatrizes se abrindo.

E muito antes que pudesse gritar, afundei ―, mas ainda consegui ouvir o grito de Neo, distante como em outro plano, em outra vida. As águas me engoliram esfomeadas, e logo era azul escuro e frio, pois não sabia nadar, muito menos Neo.

E afundei, afundei, afundei.

Então morri, com os dedos frios.

Dizem, no Sul, que a morte é apenas o começo de algo novo. No Norte, dizemos que a morte é o fim do começo. Quando abri os olhos novamente, o céu estava pintado de rosa e dourado, com carmesim no horizonte, e me perguntei se já estava no além-mundo.

Já era pôr do sol de algum modo, o mais belo pôr do sol de toda a minha vida ― ou de minha morte ―, e as horas da minha tarde haviam se perdido em algum ponto.

Não sentia nem frio, nem dor, nem fome, nem medo. Não sentia nada, para ser sincera, apenas um leve pinicar na palma da mão e o peso dos meus cabelos ensopados e congelados nas costas. Em volta via árvores ― pinheiros enormes, cobertos de neve ― e o fim de Lis oc’Arwan à minha esquerda. Sem sinal de Neo em lugar nenhum, pois eu estava a milhas de onde afundei, muito mais ao leste.

― Ah. ― então me lembrei, não imaginando como pudera esquecer. ― Eu caí.

Caí no fundo do coração de Arwan, o deus das terras invernais, e morri, pois é isso que humanos fazem ao afundar em gelo líquido. Não, talvez não tenha morrido. Minha vida chegara a ser um fio transparente, se desfazendo na água, quando ouvi sua voz, ressoando em meu consciente. Vi os olhos azuis como um abismo encarando os meus. Senti a pele quente de seus dedos em meu rosto, o frio apertando meu coração com um punho apertado e firme.

Então ouvi o que tinha que ouvir e aceitei o que tinha que aceitar, porque não queria morrer ainda ― e estava tão frio.

Ao leste, os Dedos apontavam para os deuses, mais pertos de mim do que nunca. Tão pertos como sempre imaginei que estariam, e então soube que estava muito, mas muito longe de casa. Lis oc’Arwan enviou-me para mais além do que nunca estive, após me tomar como uma de suas.

“Eu lhe dou a vida, minha criança, pois você já não possui uma” ele dissera, quando aceitei seu trato “E lhe dou o gelo, pois não há como sobreviver nessas terras sem o inverno na ponta dos dedos.”


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Notas finais do capítulo

Obrigada por lerem até aqui e espero que escolham acompanhar :D Até a próxima!



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