Crônicas das terras arrasadas: O sentimento algoz escrita por Abistrato


Capítulo 4
Capítulo 4 - Jennifer Wagen




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Capítulo 4 – Jennifer Wagen 

No final das contas eu paguei um absurdo e ainda tive que ver Angel ensinando Rachel a desfilar corrompendo a menina a virar algum tipo de amiga se é que os ricos têm amigos.  

Depois que saímos do hospital nós fomos comer o café da manhã no galpão-refeitório que estava muito melhor do que eu esperava, repleto de frutas, pão, sucos, chás, cereais, bolachas e carne salgada. Rachel comeu até não aguentar mais a ponto de me dar ânsia. A mesma ânsia eu sentia quando via Will comer. 

Vinte minutos depois, ela finalmente terminou de comer e então decidimos ir comprar a roupa para a pequena lenda que queria se tornar algum tipo de musa com o menor orçamento do mundo. Por sorte a praça principal, onde a maioria dos mercadores ficava com suas caravanas, não estava muito longe. Normalmente eles tinham coisas que não eram produzidas aqui, entre elas roupas íntimas, que eram nossa prioridade, já que essa pentelha a qualquer momento podia menstruar, se já não tivesse o feito. 

— Ei, Victor! — eu gritei a um mercante já conhecido. 

— Jenny! Há quanto tempo! Precisa de um coturno novo? Ou um short jeans? Eu tenho uma jaqueta de couro que é a sua cara! — Ele sorriu com aquele nariz enorme dele. 

— Não, na verdade eu preciso de uns sutiãs e calcinhas para essa mocinha aqui, fora que seu coturno era uma bosta! Não durou nem duas semanas. — Eu apresentei Rachel que disse “oi” do jeito fofo e tímido dela. 

— Nossa! Ela é sua filha? 

— Claro! Eu tive ela com onze anos e consegui escondê-la por doze — ironizei. — Ah! E eu também preciso de umas balas para essa criança. — Mostrei minha S&W 500. 

— Nossa! Essa vai ser difícil, mas acho que eu tenho. Como você conseguiu uma dessas? 

— O Will conseguiu pra mim. 

— O que ele não faz por você, hein, garota? Quantas você precisa? — Ele tinha apenas uma caixa cheia delas. 

— 20. É verdade, ele é fantástico — disse revirando os olhos, apesar de ser a mais pura verdade. — Não me amola, eu sei que você sabe onde fica cada coisa, eu ainda tenho muita coisa pra fazer, então acelera. 

— Ainda sem paciência para um bom papo? Bem... Não seria você se tivesse paciência pra alguma. Essas aqui são as peças que eu tenho. — Ele expôs uma série de calcinhas e sutiãs sobre seu balcão retrátil. 

Enquanto eu analisava e negociava as melhores peças de Victor (não que de fato tivesse alguma boa) percebi algo diferente em Rachel. A menina olhava vidrada para uma jovem asiática que negociava alguns tecidos do outro lado da praça. 

— Rachel, nunca te ensinaram que encarar é feio? 

— Mas ela é tão bonita! Olha como ela para! — De fato, eu tenho que admitir, o jeito que ela parava era bonito, pernas esticadas, quadril requebrado para um lado, mão na cintura e rosto virado para outro. — E olha aquele vestido! — Eu até descreveria o vestido, mas eu sou uma caçadora não uma artesã e muito menos alfaiate. 

— Tô, te estranhando, hein, primeiro a Angel, agora a Aline... 

— Não, ela é diferente da Angel... Ela não é mais bonita que a Angel, mas chama mais a atenção. — Os olhos verdes dela brilhavam como se tivesse encontrado sua alma gêmea. 

— Claro que chama! Ela é uma artesã estilista, chamar a atenção é como ela ganha a vida! Fora que as roupas que ela faz são as mais caras da região, muita gente rica vem aqui só pra fazer roupa com ela. Ei! Victor, eu vou levar esses nove jogos e agora, o que você tem de roupas pra menina, por favor. — Victor fez sinal de positivo e se pôs a procurar as roupas. — Nem pense em querer ser artesã, eu não tenho dinheiro pra comprar nenhum dos materiais que você vai precisar — alertei a garota. 

— Você pode pedir pra ela! 

— Rachel, você tá louca?! Ela não vai deixar! Sabe quanto custa um desses tecidos?! 

— Vamos lá! — ela disse puxando minha calça. 

— Da onde você tirou toda essa coragem? — Estranhei. — Vai você lá. 

— Eu não... — Sua voz sumiu e seus olhos foram ao chão e os puxões que dava viraram apoio. 

— Vai você lá, eu tô olhando — encorajei-a passando a mão em suas costas em um leve empurrão. 

Ao se aproximar lentamente da jovem asiática, com as bochechas rosadas e cheia de uma timidez que nunca tinha visto nela antes, Rachel olhou mais uma vez para mim e esperou meu aceno de cabeça para então puxar levemente a saia do vestido até ser vista. O que ela disse foi inaudível, mas a reação de Aline foi mais do que favorável. 

— Meuuuuu Deuuuus! Você é muitooo fofaaaaaaaaaa! — Ela se agachou um pouco para abraçar Rachel que travou como uma estátua. A menina falou mais alguma coisa e apontou para mim, que acenei envergonhada. 

— É eu percebi — disse Aline olhando para nossas roupas e para nossos pés descalços com desgosto — Ei! Você está comprando roupa? 

— Tô, por quê? — respondi. 

— Não compre nada! Eu vou ser a tutora dela e ela vai fazer roupas pra você! — Aline se aproximou de mim. 

— Ah não! Pode ir procurar uma daquelas patricinhas da zona sul, porque não tenho dinheiro pra comprar as ferramentas muito menos os tecidos — neguei enquanto Aline me olhava com a mão no rosto movendo a cabeça negativamente desesperançosa. 

— Sem problemas, eu vou dar minhas tesouras, réguas e agulhas da época que eu era aprendiz e pago até os tecidos se você quiser. Se você soubesse o quão difícil é pra arranjar um aprendiz. — Aline começou a desabafar movimentando um “ok” com a mão pelo ar. — Sabe, eu achei que seria fácil, mas todo mundo ou quer fazer um curso de quatro anos pra virar uma artesã comum e ganhar dinheiro rápido ou quer fazer esses cursos de rico folgado pra trabalhar 8 horas por dia com direito a folga ou desiste depois de uma ou duas semanas do curso. — De fato as olheiras nela eram bem perceptíveis de perto. 

— Só pra saber, quanto tempo dura o curso? — perguntei. 

— Uns oito anos, por baixo. 

— Oi?! — disse indignada. Não é à toa que ninguém queria fazer esse curso. 

— Pelo amor de Deus! Essa menina linda é a única criança nesse fim de mundo que viu beleza em algo além do mínimo necessário para sobreviver, ela TEM que ser minha aluna, se não a moda e a alta-costura vão morrer comigo. — Ela olhava no fundo dos meus olhos, falando como se fosse a guardiã de algum grande segredo do universo. 

— Tá bom, tá bom — eu disse, na esperança que aquele ser saísse de cima de mim. 

— Eba! — as duas falaram ao mesmo tempo dando pulinhos de alegria. 

— Então começaremos hoje de tarde, eu vou receber uma cliente e enquanto eu tiro as medidas dela você observa e anota os pontos importantes e de lição de casa você faz um vestido pra sua mãe e amanhã você traz pra eu ver, ok? 

— Ok! Mas eu vou conseguir fazer um vestido de um dia pro outro? — perguntou Rachel. 

— Consegue... Se você usar aquele período da meia-noite até às seis da manhã que você não faz nada — ironizei. 

— Magina, se fosse assim ninguém aguentaria o curso — disse Rachel. 

— Exatamente... — Aline confessou constrangida. 

Assim que a conversa acabou, eu paguei 2 dólares pelas balas e 90 centavos pelos quatro jogos de peças íntimas para Rachel e dois pequenos panos que ela usaria quando menstruada. Victor, que ficou chateado de não conseguir me vender as roupas, prometeu voltar com linhas, tecidos e até uma máquina de costura. Não me impressionaria se ele trouxesse um tanque de guerra se eu pedisse. Mercadores... Sempre querem arrancar até nossa última moeda para saciar sua avareza. Mas o que realmente me impressionou foi a Rachel e a Aline, se eu tivesse apostado, eu perderia, mas estou feliz pelo menos ela vai poder ter uma vida melhor que a minha e do Will, fora que eu vou ganhar roupas boas e de graça! Pobreza? Sim... Isso que dar ser caçadora... Ser a ralé da ralé... Eu devia ter continuado nos exploradores, pelo menos eles são só a ralé. 

Voltando para casa, Rachel foi direto para o banheiro tomar um banho a fim de provar seus novos sutiãs e calcinhas enquanto eu tentava achar um lápis e um caderno para ela que eu tinha da minha época de aprendiz. Quando achei, me lembrei de todas as armadilhas, técnicas de camuflagem e até equação de segundo grau! Ah, bons tempos, era muito mais fácil calcular a trajetória de uma projétil do que fazê-lo acertar o alvo... Foi nessa época que eu conheci o Will... Bem, tinha que apressar Rachel para a primeira sua aula. 

Chegando ao local, notei algo estranho. Havia quatro guardas provavelmente armados e de terno, duas caminhonetes velhas com metralhadoras pesadas nas caçambas com homens também armados em vestimentas militares parados na frente da porta, mas esse não era o mais estranho. O mais estranho era que lá estava ele: o caminhão de guerra. Rapidamente Rachel se escondeu atrás de mim num quase pânico enquanto segurava meu braço firme. Tentamos entrar, mas fomos barradas pelos brutamontes bem-vestidos. Pouco tempo de espera Aline apareceu, agora com uma roupa totalmente diferente, um cinto com várias tesouras e linhas de diferentes cores e uma pulseira com muitas agulhas presas. 

— Vocês já chegaram! Que ótimo! Meninos, podem deixá-las entrar — Aline disse fazendo os armários nos darem passagem. 

Entrando lá notei tecidos e linhas espalhados por todos os cantos e muitas, muitas máquinas de costura, até uma lâmina enorme para contar os panos. No fundo da sala havia uma estrutura mais alta onde uma silhueta feminina estava, novamente, cercada por mais dois guardas de terno. Aline deu um banco para Rachel e começou sua aula no vestido negro que fazia para a cliente enquanto sua aprendiza anotava tudo e treinava num vestido velho em um manequim ao lado.  

Cansada de andar pra cima e para baixo decidi falar com a tal cliente em um momento que Aline trabalhava nas costas do vestido. 

— Então como vai aí em cima? — perguntei para a mulher que deveria ser pouca coisa menor do que eu. 

— Tudo bem. Eu adorei sua filha! — Ela estava animada, mas algo em sua voz e em seu rosto, parcialmente coberto por longos cabelos negros ondulados e brilhantes, me fizeram ter uma sensação muito ruim. Eu não confiava nela. Eu já a odiava, mas como ela estava sendo simpática, eu contive minha fúria injustificada — Ela é linda! E é sempre fofa assim? — disse o ser de face bela, porém dúbia, com uma voz alegre. 

— É sim! Um amor de pessoa — respondi desconversando já irritada. 

— Ela cairia superbem em uma ideia que eu tô tendo para um negócio novo que eu fui contratada. 

— Falando nisso, eu vi os homens e os carros lá fora, você deve ser alguém bem importante pro Império, alguma dona de minas ou de petróleo, senhora de terras ou só da nobreza mesmo? 

— Só da nobreza... — ela sussurrou irônica como se eu tivesse falado algum absurdo — Sim, como você suspeitou, eu sou do Império, mas, infelizmente, não sou uma nobre, na verdade eu acabei de ser contratada por uma, no ramo de, digamos... — ela pensou um pouco — showbis, sabe? Entretenimento e tals... Mil perdões, como uma apresentadora pode esquecer as apresentações? Eu sou Alexia Bishop, prazer. — Ela estendeu a mão apertando a minha sem força alguma enquanto eu tentava decifrar o que era uma apresentadora. 

— Jennifer Wagen, o prazer é meu. 

— Descendência alemã? 

— Por parte de pai. 

— Percebi pelo nome. Então que tal botar sua filha no showbis? 

— Não, ela gosta do que está aprendendo aqui e eu a quero dentro do alcance do meu rifle. 

— Eu entendo. Queria ter tido uma mãe assim... — Um clima pesado surgiu 

— O que exatamente uma apresentadora faz? — perguntei tentando mudar de assunto. 

— Bem... Muita coisa, na verdade! — Ela riu. — Uma apresentadora é responsável por gerenciar e organizar eventos como shows, esportes, apresentações e também por animar o público preparando-o para o evento. 

— Shows? 

— Ah, desculpe. Eu sempre esqueço que vocês não têm essas coisas aqui no sul. — Ela continuou sua gesticulação. — Lá no norte, os artistas do Império fazem grandes eventos onde eles tocam músicas para vários fãs que pagam para assisti-los. Eu preparo tudo desde equipamento, pessoal contratado, introdução, quais músicas serão tocadas e em qual ordem, fora que distraio o público nos intervalos. 

— Ah... — fingi que entendi, sendo que o maior evento de música que já presenciei foi um par de músicos itinerantes que tocavam por trocados na praça central. Isso, claro, se não contarmos as festas nas casas da zona sul, as quais faziam muito sucesso entre os jovens, mas que eu me arrisquei a ir uma única vez por insistência de Emily.  

A única coisa que me entretinha, quando jovem, eram os filmes projetados durante as noites de quarta-feira na praça central. Eu adorava ver como era o mundo dos homens antigos. Nele tudo era bonito, as pessoas, os animais, as construções e até os carros. Todas as cidades eram grandiosas e nelas haviam mais pessoas do que eu seria capaz de imaginar. Neles era possível ver a trajetória da humanidade, mas o destino foi além da imaginação de qualquer roteirista. Sem dúvidas eu preferia estar numa nave viajando pelo espaço enquanto sou caçada pelo Alien do que nesse buraco de merda torcendo pra não morrer aos trinta de câncer e nem me faça começar a falar sobre a inutilidade de tentar manter uma casa no meio de um deserto nuclear limpa. 

— Pronto! — disse Aline animada. — Agora, pode tirar o vestido eu vou dar uma passada geral nos detalhes e depois mando tudo pra você de moto, é só você me dar o endereço. 

— Não, não precisa, eu vou deixar meus meninos aqui depois eles levam pra mim. 

— Tá bom. — Aline e eu acompanhamos a cliente até a saída e nos despedimos. Alexia gritou algumas ordens e entrou com os homens de terno na caçamba do caminhão de guerra, que minha curiosidade me forçou a espiar resultando numa Jenny boquiaberta com tamanho luxo. Dentro da carreta havia uma sala revestida por azulejos brancos montada com poltrona, criado mudo, lâmpadas, tapete e uma estante de livros. Partiram assim que as portas de aço da caçamba foram fechadas, acompanhados de uma das caminhonetes. Voltando Aline deu algumas ferramentas, tecidos e linhas para Rachel. — Agora que você viu o básico de vestido faça um para sua mãe, amanhã eu vou te ensinar os vários estilos de roupas e aplicá-los em vestidos, aí você vai poder fazer um pra você mesma. 

Sendo assim, Rachel e eu nos despedimos de Aline e voltamos para casa. A essa hora já havia escurecido e, ao chegar, Will já nos esperava com tigelas do jantar. Depois que terminamos de comer, Will foi devolver as tigelas e eu fui para o centro da sala onde Rachel tirou minhas medidas e começou a trabalhar nos tecidos com toda a felicidade da vida.


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