Crônicas das terras arrasadas: O sentimento algoz escrita por Abistrato


Capítulo 2
Capítulo 2 - Willian West




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Capítulo 2 – Willian West 

 
 
 

O pequeno problema de logística foi rapidamente solucionado quando Jenny encontrou duas hastes de madeira e amarrou suas extremidades com seu cinto as prendendo em formato de V para que fosse possível arrastar o animal com menos atrito contra o chão. Após ter colocado o gorilão sobre a estrutura, levantei a parte aberta do V e nos pusemos a caminhar. 

Uma hora depois do imprevisto, já chegávamos ao acampamento. Era possível ouvir os resmungos da fome se tornarem suspiros esperançosos conforme me viam arrastando a gigantesca fera. Era ao mesmo tempo feliz por ter nosso trabalho reconhecido e triste por ver que carne eram algo escasso. Quando entramos no galpão-refeitório, os cozinheiros comemoraram e, enquanto a desossavam começaram a planejar como a fera seria preparada. Toda essa comoção era fruto do grande sucesso que nós, caçadores, conseguimos hoje, algo que não se repetira nos últimos três dias.  

A verdade é que os animais procuravam evitar as redondezas do Acampamento percebendo que a predação só aumentara nessa região. Quando a carne se tornava insuficiente, o pouco encontrado era enviado para o hospital ou distribuído entre as crianças. Nesses períodos, cardápio se resumia a vegetais plantados em nossa horta e aos doces industrializados e cheios de açúcar encontrados pelos exploradores, normalmente em estoques subterrâneos de antigas fábricas e lojas, raramente em caminhões destruídos. 

Ah... Os exploradores eram os seres mais ágeis e graciosos que se pode encontrar nas terras arrasadas, se movendo silenciosos e rápidos, passavam despercebidos por entre todas as aberrações, trazendo tudo que achavam para o acampamento.  

Jenny era fora exploradora assim como seus pais, mas as lâminas e as roupas leves não superavam o rifle e o couro. Para ela, a adrenalina estava em enfrentar os inimigos e não em se esconder deles, então pediu transferência para os caçadores e rapidamente se tornou a melhor atiradora do acampamento, com apena Carl em seu encalço. 

Muito cuidadosa com seu rifle, Jenny gastava quase todas as moedas que ganhava na manutenção da sua arma, sendo assim que eu a conheci. Meu pai era um artesão de armas e minha mãe uma cozinheira. Em um dos dias em que eu aprendia o ofício do meu pai, uma bela jovem semianoréxica surgiu reclamando que seu rifle estava puxando um pouco para a esquerda e bem... no dia seguinte eu havia sido transferido para os caçadores 

— Ei, Will — chamou Jenny estalando os dedos. —, você tá acordado? 

— Tô, tô, só me perdi nos meus pensamentos — eu respondo tirando minhas roupas de couro e as pondo em nosso armário. 

— Então é bom você se encontrar bem rápido porque o “caridoso” Coronel Dulcan acabou de achar mais um serviço para nós. 

— Sério? Que maravilha... Era tudo que eu precisava depois de sete quilômetros carregando uns trezentos quilos. Será que a companhia não vê isso? 

— Claro que veem, mas não se esqueça de que quem manda aqui são os militares e o Coronel é só o cabeça que manda e desmanda como um maldito senhor feudal e a companhia dos caçadores não vai se meter a besta com ele só por causa de nós. 

— “Senhor Feudal”? — Este me era um termo novo. 

— Sabe, Will, você devia ler um pouco, ia ser bom pra sua cabeça — Jenny diz preocupada — por que você não passa na biblioteca, hein? Fica perto de casa. 

— A mulher de lá, ai, eu esqueci o nome dela. — Eu estalo os dedos tentando lembrar. — Eu acho que é Isa... 

— É, tá certo, Isabella com dois Ls 

— Então, essa aí, ela me dá muito medo! 

— Deixa de ser bobo, ela tem aquela cara fria e jeito cortante, mas ela não faz nada pra ninguém, fora que você já namora a pessoa mais temida do Acampamento, você aguenta ela. 

— Tá bom... Você sabe o que o coronel quer? 

— Um pau-mandado dele disse que os exploradores encontraram uma menina e adivinha com quem ela vai ficar até arranjarem uma família para ela? — ironizou Jenny com tom de revolta. 

— Ué, mas por que não entregam para os camponeses? 

— Eu vou saber?! — Jenny ficou vermelha de raiva. 

— Que palhaçada... 

— Eu já não gosto de crianças, mas eu odeio o aquele coronel de merda! — Ela explodiu e logo depois se acalmou dizendo em uma suave voz baixa: — Eu ainda mato aquele filho da puta. 

— Tem alguém que você não odeia? — eu brinquei 

— Cala a boca... — Ela ficou em silêncio por alguns segundos então segurou minha mão. — Você. — Jenny não é muito romântica, mas se esforça e é isso que eu gosto nela. 

Então fomos para o centro administrativo. 

...________... 

O centro administrativo é o único edifício feito de concreto com exceção da muralha e onde eram tomadas todas as decisões do Acampamento. Sua aparência era a de um enorme casarão com uma fachada enorme que servia de suporte para uma varanda no segundo andar de onde o Coronel Dulcan observa a praça central. Essa aparência logo sumia quando se nota quatro peças de artilharia antiaérea que, junto de outras ao longo da muralha, vigiavam o céu e reafirmavam o poder dos militares. A construção era a mais alta com três andares e a terceira maior construção do acampamento perdendo apenas para o galpão-refeitório e o hospital comunitário. Dentro dela há uma divisão que separa a área civil da militar e entre as duas fica o escritório do coronel. 

Chegando lá uma secretária mandou que um soldado nos acompanhasse até o escritório, onde encontramos Marcus, um jovem negro muito alto, magro e forte que é o marido de Emily, a melhor amiga da Jenny, ambos exploradores. Ele estava apoiado do lado da mesa de escritório desocupada do Coronel Dulcan e abriu um largo sorriso quando me viu. 

— E aí, Will! Quanto tempo. Como vão as coisas? — perguntou Marcus que logo cumprimentou a Jenny e a mim. 

— Tudo certo, parceiro! E você? A Emily tá bem? — Nesse momento vi uma pequena menina, que muito parecia com uma caloura de alguma oficina, agarrada na cintura do rapaz se escondendo. 

O som de botas ecoou da sala ao lado anunciando a entrada do Coronel Dulcan. O Coronel era um senhor perto de seus 70 anos muito elegante que sempre trajava a farda de gala e cultivava um grande bigode branco. Seu caráter culto e sério lhe garantiu o comando do Acampamento muito antes do meu nascimento, o qual administrava com a ajuda dos seus subalternos na hierarquia militar e as companhias de ofício. 

— Boa noite, senhores e senhorita — Os olhos de Jenny viravam com raiva. O velho caminhou até sua cadeira com passos largos e lentos quando se sentou — O motivo que exige vossa atenção hoje é a guarda da criança encontrada pelo explorador Marcus Lewis em um covil de Draugs abandonado a leste daqui. Vós, senhor Willian West e senhorita Jennifer Wagen, foram escolhidos para tutelar a jovem até alguma família decidir adotá-la, compreendido?  — Jenny e eu ficamos atordoados com a notícia, isso nunca tinha acontecido antes, ou pelo menos nunca ouvimos falar no Coronel entregando crianças a ninguém, mas com certeza Dulcan tem algum plano por trás disso. Ele quer atrapalhar Jenny em suas disputas contra Carl a fazendo cuidar da menina não podendo ficar tanto tempo fora de casa como ficávamos ou faltando alguns dias no trabalho por causa dela. Somado ao fato que a maioria das crianças gostava dela e ela nunca havia sido agressiva contra uma criança, ele havia matado dois coelhos com uma cajadada só. Sem dúvidas ele só não mandou um soldado jogar a criança na nossa casa por que este com certeza voltaria com ela. 

— Senhor, não há nenhuma chance de ficarmos com ela! Não há a menor condição de cuidarmos de uma criança agora! 

— E por que não poderia, senhorita Jennifer? — perguntou calmamente o Coronel. 

— Primeiro. – Ela contava com os dedos nervosa, mas se controlando — Nós saímos todos os dias de casa e não é certo que voltaremos. Segundo: nós não temos experiência nenhuma com crianças. Nem tivemos filhos ainda!  

— Acalma-te, senhorita, não é de bom falar nesse tom com seu superior. 

— Eu não sou uma militar! Eu não respondo a você como seus cães! Eu só respondo à companhia de caçadores! 

— E a quem a companhia de caçadores responde, senhorita? — ele retrucou com ar de superioridade que deixou Jenny louca quase trincando seus dentes de raiva e prestes a pular na garganta dele. 

— Veja, Coronel — eu intervim —, O que a Jennifer está tentando dizer é que talvez fosse mais sensato deixar os cuidados da criança com uma família de camponeses, uma vez que eles têm vários filhos e estão sempre em casa. 

Jenny andava para cima e para baixo tentando se acalmar enquanto move freneticamente a mão como se esmagasse uma bola de borracha como eu havia ensinado.  

— De fato, senhor, eles têm razão — Marcus tentou ajudar. 

— Ok, então está decidido. — A esperança surgiu em nossos corações. — Vós cuidareis dela até uma família adotá-la. 

— O quê?! Você não ouviu nada que dissemos?! Ou simplesmente não se importa?! — Jenny praticamente berrou. 

— Bem, pelo menos vocês poderão treinar para quando tiverem seus próprios filhos, vejam como é ótimo! — O Coronel foi muito sarcástico e cínico para o meu gosto. 

— Senhor, nós mal temos dinheiro pra sustentar nem a nós mesmos. Como vamos sustentar ela se um dia bom de caça rende no máximo dois dólares? Nós vamos ter que comprar roupa, material pras oficinas se ela quiser aprender outro ofício que não o nosso, alguém que cuide dela enquanto estamos fora e uma cama nova, tudo isso é gasto que não temos como pagar agora — expliquei. 

— Bem, de fato... – Ele pegou um saco pequeno cheio de moedas — Vós tereis minha ajuda de cinco dólares para suprirem os gastos iniciais, mas isso é só! — Ele sacou uma nota do bolso fazendo meus olhos brilharem. Nas terras arrasadas notas de papel são muito raras e a maior parte da economia é baseada em moedas sendo possível, por exemplo, comprar uma boa calça com setenta e cinco centavos de dólar. 

Olhei para trás para ver Jenny analisando e assustando a menina que se escondia atrás de Marcus, que mais parecia um poste perdido entre as duas. Então me aproximei de Dulcan me debruçando sobre sua mesa e falei baixinho. 

— Olha, eu não quero ser rude ou parecer que estou me aproveitando, mas sabe a relação entre você e a Jennifer é meio conturbada desde que a irmã dela sumiu e eu não sei se essa menina vai sobreviver muito tempo sem que você de um agrado para a Jenny. Eu sei que você não gosta dela, mas a menina não tem nada a ver com isso. 

A coisa é o seguinte: Jenny tinha certa reputação de encrenqueira, o que ela realmente era, apesar de ter melhorado muito depois de me conhecer. Nesse passado ela já deu muita dor de cabeça para o Coronel, que julga todos os casos criminais da cidade e, por algum milagre, sempre conseguiu se safar. 

— Certo, certo, isso é um fato, tudo mundo conhece vosso temperamento, mas o que tu achas que vai acalmá-la? 

— Bem... Desde que nós saímos da oficina dos caçadores, ela sempre fala que o sonho dela era ter uma Smith & Wesson 500... 

— Não, jamais! Aquela arma é um monstro, eu não posso entregar na mão dela! 

— Ok, então é bom você já encomendar um caixãozinho branco. Fora que ela vai desistir dessa arma depois do primeiro coice ou quando descobrir o preço da munição e se ela quisesse fazer alguma besteira já teria feito com as armas que tem. 

— Faz sentido... — Ele pensou por alguns segundos então concordou. 

...____________... 

Saímos com a pequena menina andando de mão dada comigo tentando evitar Jenny que, por sua vez, se entretinha ao admirar o enorme tambor da sua nova aquisição. 

— Will! Olha o tamanho dessa bala! — Ela me mostra encantada. — Eu queria uma dessas há tanto tempo! — Jenny me abraça e beija minha bochecha me fazendo sorrir. Era raro ver tamanha alegria nos olhos da minha amada. — Brigada, amor, mas como você conseguiu convencer aquele velho a me dar essa belezura? 

— Eu falei que você ia matar a menina se você não recebesse um agradinho pra te acalmar. — sussurrei para não assustar a menina enquanto minha mente suplicava: Por favor, não me mate! Por favor, não me mate! 

— Hummm... Muito esperto... Meu deus, o meu dedo entra no cano — ela se distrai novamente. Ufa! Ela não se ofendeu! 

— Essa é a Jenny que eu gosto de ver!  

— Eu tô com fome — disse uma voz fina e suave ao meu lado. 

— Olha, Jenny, ela fala! — exclamei surpreso e sorridente. — Nós já vamos comer, linda. — Um calafrio sobe pela minha espinha quando me lembro do ciúme cortante de Jenny que surgiu atrás de mim acariciando minhas costas com a boca do cano do revólver. 

— Já entendeu a mensagem, né, amor? 

— Já e o tambor tá vazio.  

— Vai pagar pra ver? — ela ameaça. 

— Ela me dá medo — disse a menina. 

— Então você é uma menina esperta – amedrontou-a, Jenny. 

— Não precisa ter medo, é só o jeito dela. — Então sussurrei: — No fundo não faz nada. 

— Não faço nada, é? — Jenny falou pondo o cano da arma sob meu queixo deixando a menina assustada. 

— Eu sei que só tá fazendo isso pra assustar a menina — a desafiei esticando o pescoço. 

— Eu não teria tanta certeza disso. — Ela sorriu. Eu apenas sorri de volta. Jenny puxou minha cabeça e me beijou quando o click soou. A menina suspirou aliviada. — Você sabe que eu tenho uma reputação a zelar. — Com o braço sobre meu ombro Jenny perguntou: — Qual seu nome, pentelha?  

— Rachel, e vocês? — Rachel sorria agora. 

— Eu sou a Jenny e o corajoso aqui é o Will, quantos anos você tem? 

— Doze anos, eu tô com fome, Jenny. — Ela olhou para a própria barriguinha. 

— Então vamos comer — Jenny disse girando a arma platinada no dedo. 

..._________... 

Rachel só poderia ser descrita como uma sobrecarga de fofura. Enquanto entrávamos na fila que acabara de ser formada para pegar as primeiras tigelas com sopa de gorilão, ela tentava tirar as marcas de graxa do seu rosto e vestido bege, mas sua atenção, perdida nas dimensões colossais do galpão-refeitório, não colaborava muito. Quando uma cozinheira a serviu com uma grande concha, sua parte da sopa, ela deu pulinhos de alegria sujando de terra toda sua botinha de inverno roxa. Ao procurar um lugar para sentar-se, Rachel protegia sua tigela como se alguém fosse roubar dela. Quando encontramos lugares nas longas mesas de aço, ela fez questão de se sentar do lado de Jenny. Rachel começou a comer ignorando a mesa e completamente encurvada sobre a tigela em seu colo e sujando seus longos cabelos loiros enquanto observava seus arredores repetidas vezes com seus grandes olhos verdes-escuros. 

Jenny estranhava o jeito como a menina comia, mas falhou ao tentar ensiná-la como se portar à mesa. Assim que terminou Rachel se pôs de pé sobre o banco e observou o interior do, agora cheio, galpão. 

— É muita gente — disse impressionada. 

— Tá procurando alguém? — disse Jenny a puxando para baixo. 

— Aqueles homens fardados. 

— Eles comem nos quartéis espalhados pelo acampamento, por quê? 

— Eu não gosto muito deles... 

— Nem eu. 

Logo que acabamos de comer, eu peguei nossas três tigelas para devolvê-las às cozinheiras. Na metade do caminho, notei que cometi um grave erro estratégico: eu deixei a Rachel e a Jenny juntas e sozinhas! Meu Deus! Ela vai matar a garota! Rapidamente deixei as tigelas com a primeira moça da cozinha que achei quando ouvi um grito e me pus a correr de volta a elas apenas para encontrar Rachel silenciosamente chorando com o queixo ao peito e o rosto escondido pelos cabelos emaranhados. Jenny parecia espantada e enquanto eu tentava entender a situação: 

— O que você fez com ela? — perguntei. 

— Que história é essa de você já vir me acusando? Eu só estava conversando com ela e ela começou a chorar de repente!  

— Do jeito que você delicada já dá pra saber a causa do choro... 

— Engraçadinho... — Jenny ironizou insatisfeita com a brincadeira depois de uma risada sem graça. 

— Não é isso... — revelou a fina e suave voz da garota que agora timidamente ria com os olhos avermelhados — Ela só parece muito com a Sarah que cuidou de mim. Me desculpa, vocês são engraçados. 

Logo de cara eu não entendi o que ela quis dizer com aquilo, mas pude notar certa comoção na face de Jenny de como quem teve seu coração tocado. Talvez porque Rachel a lembrou de sua irmã ou de como ela era antes da morte de seus pais, mas ela nunca falava sobre isso então preferi não prolongar a conversa e logo voltamos para nosso barraco. 

...____________... 

Chegando a casa preparei uma cama improvisada para Rachel enquanto as meninas foram tomar banho. Assim que terminei de arrumar a nova cama percebi gargalhadas vindas do banheiro e agradeci por finalmente as duas estarem se dando bem.  

— Parece que as meninas estão se entendendo — eu disse batendo com os nós dos dedos na porta do banheiro. — Posso rir também? 

— É coisa de menina! – gritou Jenny rindo, mas então ficou séria. – Ei, amor, você vai ao arsenal pegar nossa munição para amanhã? Eu iria, mas eu tô cuidando de uma mocinha aqui. 

— Tudo bem, eu vou. 

— Pega água lá no poço também, nosso galão tá quase seco. 

— Ok, já volto. 

—Brigada. — E as risadas voltaram. 

...__________... 

Demorei a voltar para casa, as idas ao arsenal eram sempre muito burocráticas. Todos os caçadores trabalhavam em dupla então um sempre ficava responsável de ir até um quartel devolver a munição que não foi usada e assinar o recebimento de um novo lote de munições. Felizmente a munição era financiada pelo Coronel, então só temos acesso a alguns tipos de munição de acordo com nossos ofícios, como eu era caçador eu podia pegar calibres mais comuns, diferente dos militares que tinham acesso irrestrito e dos exploradores que só podiam pegar calibres leves e flechas. 

No acampamento havia uma abundância de munição porque o Coronel havia inteligentemente investido muito nessa área tornando o Acampamento o maior produtor e exportador de munição no Sul em escala industrial garantindo certa imponência nas terras-arrasadas. Todo quartel manufaturava as munições mais comuns, mas uma fábrica dentro do acampamento produzia todos os tipos. 

Essa fábrica era a parte mais controversa do governo do Coronel. Muitos rumores e teorias da conspiração a cercavam, mas a única coisa que era visível e comprovado era que o corpo de trabalho era pequeno demais para o volume de munição produzida além da entrada ser extremamente estrita. Alguns amigos meus diziam que lá dentro haviam androides, outros que eram prisioneiros, mas a teoria mais absurda que ouvi era tão complexa que envolvia os militares os médicos e os engenheiros. Eu nunca tive a oportunidade de falar com alguém que trabalhasse lá, mas acho que devem ser apenas máquinas e computadores. 

Depois de toda a demora no quartel perto de casa, eu fui buscar água no poço. Havia nove poços espalhados pela cidade: o maior ficava no meio da praça central onde as quatro estradas que cortam o Acampamento se encontram, os outros oito ficam dois a dois nas quatro regiões servindo. Pessoalmente eu achava a muito bem planejado, mas Jenny não concordava e vivia falando que a água poderia vir diretamente até as casas por canos. Eu me impressionava com a imaginação dela.  

Enquanto enchia o galão de vinte litros eu observava a movimentação dos militares que com suas caminhonetes armadas e jipes blindados escoltavam as caravanas mercantes que saiam e entravam durante a noite. As duas autoestradas eram exclusivas para movimentação militar e liberadas durante a noite e madrugada para os mercadores que chegavam e saíam.  

Quando cheguei em casa, duas meninas lindas estavam prontas para pôr munição em alguns carregadores dispostos na mesa de centro da nossa minúscula sala. Jenny usava um short e seu sutiã e Rachel usava uma camiseta rosa que nela mais parecia um vestido, ambas descalças e sentadas no chão. 

— Amor, amanhã vamos ter que comprar umas roupas para ela — disse Jenny começando a distribuir as balas entre os pentes dos fuzis. 

— E como vamos caçar se temos que ficar com ela? — eu perguntei fazendo o mesmo. 

— Ela pode ir conosco — ela sugeriu sorridente. 

— Não — Rachel rapidamente retrucou — Eu não volto lá pra fora. 

— Muito bem. Amor, amanhã eu vou caçar sozinho e você fica para comprar o que ela precisar, tá bom? 

— Tá — Jenny respondeu —  vou aproveitar e ver se posso pôr ela em alguma oficina. 

— Beleza. Rachel, por que você não vai dormir? 

— Não! Eu quero ajudar — ela disse batendo o pezinho. 

— Senta aqui. — Entreguei um carregador de 9mm para ela e 15 balas. — Olha, você segura firme com uma mão e com a outra você empurra pra dentro, assim, viu? 

— Sim! — Meio desajeitada e deixando uma ou outra cair, Rachel aos poucos conseguiu carregar alguns pentes o que a deixou com um sorriso de orelha a orelha. 

Essa é uma imagem que nunca iria esquecer: Jenny, Rachel e eu sentados no chão em volta da mesa como uma família, claro que não jantando como uma família normal, mas será que o normal existe? Eu não acho que o normal exista... Ele só existe atrás de máscaras e exemplos imbecis, agora o real é estranho para todo mundo por que a realidade não é perfeita, a realidade é única para cada um e é aí que se encontra a beleza do mundo. A minha história nunca será igual à de ninguém. 

...________... 

Quando Rachel conseguiu pôr todas as balas dentro do pente suas pálpebras já fechavam então Jenny disse para ela ir dormir e ela obedeceu.  

Assim que o lampião à pilha do quarto se apagou Jenny sussurrou para mim. 

— Eu tô preocupada com a pirralha... 

— Por quê? Eu achei que você tinha gostado dela.  

— Não é isso. Quanto eu tava dando banho nela eu encontrei uma marca no interior da coxa. 

— Como assim? Vamos ter que levar ela no hospital? — Fiquei receoso. 

— Não, a marca parece que foi feita a ferro e é antiga, já está cicatrizada, tem um formato de um D. 

— Você acha que ela é Draug?  

— Não... — Jenny duvidou — Draugs sabem se virar nas terras arrasadas desde pequenos. 

— E se ela soubesse teria ido embora, mesmo que ela tivesse sido esquecida pra trás — completei —, mas então o que ela tava fazendo lá? 

— Pode ser que eles a fizeram de escrava, mas isso não é do feitio deles. — Ela pôs a mão do rosto e fechou os olhos como ela sempre fazia quando pensava. 

— Sei lá, isso tá estranho — dissemos ao mesmo tempo. Eu sorri já sabendo que ela nunca chegava à conclusão alguma quando parava para pensar. 

— Você sabe que odeio quando você me imita. — Jenny me dá um leve empurrão que nos leva às gargalhadas, mas mesmo assim o ar não ficou menos tenso. 

Nós sabíamos que coisas assim aconteciam eram praticamente normais além da muralha, mas, apesar de não estarmos impressionados, não conseguíamos deixar de ficar incomodados pela gravidade da tragédia desconhecida que havia atingido a vida da pequena Rachel. Parti de mim queria saber o que aconteceu para poder ajuda-la, mas a outra não queria descobrir e Jenny tinha a mesma opnião. 

Quando terminei de carregar os pentes, Jenny já babava com a cara sobre a mesa. Eu a carreguei para o quarto onde infelizmente Rachel já havia se apoderado do meu lado do colchão então, depois de pôr minha semianoréxica favorita para dormir, eu tive que ir dormir na cama improvisada.


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