Crônicas das terras arrasadas: O sentimento algoz escrita por Abistrato


Capítulo 1
Capítulo 1 - Willian West




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 Capítulo 1 – Willian West 

 
 
 

Mais um dia começava no acampamento e a rotina se reiniciava. Jenny ainda não havia levantado e rodava o velho colchão resmungando por mais alguns minutos de sono. Vesti minha roupa de couro, que me fazia transpirar como se estivesse numa fornalha, mas era a melhor proteção contra dentes e garras nas terras arrasadas que pude pagar. Carreguei as armas, arrumei as malas e então chamei Jenny: 

— Hora de acordar, amor! Já arrumei suas coisas...  

— Obrigada, Will... — Ela ergueu o tronco se espreguiçando. — Por que sempre a gente tem que ir caçar? Eu quero dormir... — Bocejou. 

— São os ossos do ofício... — Eu odeio ter que ser responsável do casal porque normalmente sou eu quem dá as más notícias e dar más notícias para Jenny nunca é um trabalho fácil. 

— Eu sei... Eu sei... Mas existem outros caçadores no acampamento! — Ela se pôs de pé nervosa como sempre e começou a pôr sua roupa também de couro. — Nossa você arruma tudo errado! Eu já disse a água no fundo, os primeiros socorros na bolsinha da frente, a munição na bolsinha da direita — Então com cinco balas na mão ela veio até mim e passou os braços pela minha cintura. — E cinco atrás do cinto. 

— Você sempre nota todos os detalhes, não é, sua resmungona fofa?! — Eu a abracei e demos um selinho. 

— Se nós não namorássemos eu acho que já teria te matado, agora vai fazer essa barba, gatinho relaxado — ela respondeu. 

Já arrumados, saímos de casa para trabalhar, ou seja, caçar qualquer coisa que tivesse carne comestível e isso incluía uns bichos muito estranhos. Não tão estranhos para mim que já estou acostumado, mas bem estranhos para todos que são alfabetizados com livros infantis da era pré-nuclear e nunca saíram da cidade. Esses livros são usados no galpão-escola que fica no centro da cidade para ensinar as crianças até onze anos a ler, escrever e fazer as quatro operações básicas. Agora, depois de entrar para os caçadores, vejo que eles foram um grande desfavor, pois eu e as outras crianças passamos meses tendo pesadelos com os animais das terras arrasadas. Outros livros ficam na biblioteca não muito longe da nossa casa. Palavras como leão, girafa, onça, águia, elefante, urso, lagosta e lobo são apenas animais que enchem a literatura infantil e o imaginário de seus leitores. Desde que os homens decidiram inconsequentemente se destruir, há mais de três séculos, muita coisa mudou no planeta entre elas a fauna e a flora, que agora parecia algo vindo diretamente dos filmes de terror que Jenny tanto gostava. 

Existem muitos rumores sobre o que aconteceu aqui, onde um dia foi a América. Todos envolvem uma grandiosa guerra que deveria ter posto fim em todas, mas por um motivo, há muito já esquecido, não pôs. Muitos aventureiros já tentaram descobrir o que aconteceu, mas via de regra a única coisa que voltava eram suas histórias que rapidamente se espalhavam. Alguns morreram pouco depois de entrar no centro das crateras nucleares à procura de destroços dos mísseis. Outros se perderam por meses dentro dos vários bunkeres espalhados pelo país na busca de informações e os raros que voltavam estavam loucos. O resto desistiu por medo da radiação, da loucura ou do sobrenatural que permeava o mundo dos homens antigos. Por mais que tivesse curiosidade meus pais nunca deixaram me aproximar desses aventureiros que via de regra eram arrastados para além da grande porta corta-fogo do hospital para nunca mais serem vistos. 

Outra grande mudança ocorreu na organização do mundo. Uma vez que nossos ancestrais saíram de seus bunkeres, depois cem anos ausente de contado com o mundo exterior, se encontraram em um mundo novo onde teriam que enfrentar uma outra realidade confiando nas informações de livros e improvisando ferramentas com a tecnologia da era antiga. A maioria construiu vilarejos que logo se tornaram cidades cada qual independente uma da outra. Outros vagavam entre as cidades se tornando comerciantes, poucos decidiram virar grandes fazendeiros sem pátria, mas um grupo em especifico, os cruéis Draugs, não seguiu nada disso e se dedicava assaltar comerciantes, fazendas e pequenas aldeias como os bárbaros que eram.  

A cidade onde eu nasci e vivi minha vida inteira já sofreu muito com ataques dos Draugs, mas sempre fomos protegidos dúbios pelos militares, desde a primeira migração até sua fundação oficial, perpetuando-se no poder mesmo depois que os ataques pararam.  

Qualquer informação de onde provinham os primeiros habitantes da nossa região foi perdida, mas reza a lenda que uma cidade pequena do Norte, provinda de um bunker como a maioria das cidades, foi atacada por outra muito maior. Vendo que a vitória era impossível os homens armados da época prepararam uma escolta para fuga dos civis. Esse comboio veio para o Sul onde montaram um acampamento que deveria ser provisório, mas acabou nomeando a cidade. Muito tempo se passou, mais pessoas vieram de fora, a cidade cresceu e os homens armados se organizaram num exército profissional tomando o todo poder sobre o Acampamento como os protetores da cidade. Pelo menos era isso que ensinavam na escola, mas na minha opinião foram os Draugs que legitimaram a posição deles. 

Essa lavagem cerebral na escola é um dos vários motivos que fazem a população do Acampamento quase que cultuar o coronel Dulcan, chefe dos militares e, por consequência, o manda-chuva da cidade. Mas Jenny não gosta dele, na verdade, ela não gosta de ninguém, salvo eu e Emily, sua melhor amiga. Ela diz que ele abusa dos caçadores por cobrar nosso principal produto, a carne, como imposto, nos restando apenas o couro cujo valor não é alto. Eu acho que os impostos são bem pagos, pois todos têm direito a três refeições por dia, segurança, saúde, educação entre outras coisas de graça, mas é claro que apenas sobe na vida quem eles permitem.  

Lado a lado nós caminhamos lentamente pelas vielas claustrofóbicas, escuras e tortuosas que se abriam até a via principal que leva até portão leste. Quando vim morar na casa de Jenny eu ficava amedrontado sempre achando que seria assaltado na próxima esquina, mas pouco a pouco perdi o medo especialmente quando andava com Jenny que se movia com naturalidade pelas vielas fétidas, mas repletas de pessoas simpáticas e humildes. Tanto a nossa casa quanto a dos nossos vizinhos eram feitas de uma madeira feia, porém resistente com telhados de placas de amianto ou aço que as deixava especialmente quentes no verão. O chão de terra batida sujava meu coturno de barro e estressando Jenny cujo o All-Star afundava.  

— Eu te falei que tinha chovido durante a noite... — eu disse já esperando uma bronca. Não sei se isso faz de mim um masoquista, mas a Jenny nunca teve um temperamento calmo o que tornava suas demonstrações de amor ainda mais especiais 

— Não adianta você me falar se eu não tenho um coturno! — Ela estava claramente estressada. 

— Se você parasse de economizar para gastar com esse fuzil e comprasse coisas de qualidade, você teria um coturno agora... 

— Bem, então você já sabe o que me comprar no dia dos namorados... — Sorriu brincalhona enquanto tirava a lama do tênis apoiada numa casa, esquentando meu coração.  

— Eu devia te comprar uma focinheira isso sim! — brinquei. 

— Mas você sempre gostou quando eu mordo... — Ela me olhou maliciosa — Além do mais você sabe que eu melhorei muito. 

— Por minha causa... — Tomei o crédito. 

— É claro que foi por sua causa, por mim eu continuava brigando com todo mundo, mas eu tinha que escolher em brigar com todo mundo ou só com você todo dia! — Dentro da cabeça dela essa frase era algum tipo de declaração de amor. 

— Eu também te amo — Ela corou e segurou minha mão e voltamos a caminhar. 

— Eu gosto de como você me entende.  

O portão leste era um dos quatro portões da grande muralha que protegia o Acampamento sendo guardada vinte e quatro horas por militares bem treinados. Eu e Jenny moramos perto do portão leste assim como a metade dos caçadores, a outra metade morava na região oeste sendo essas as duas partes mais pobres e feias do Acampamento, onde não há eletricidade e as casa são feitas de madeira e telas de amianto. A região sul era a parte mais rica onde as casas tinham eletricidade e eram feitas de alvenaria. Já o centro era onde a maioria dos serviços públicos ficavam em galpões próximos das paradas dos comerciantes itinerantes. Na ala norte ficavam as casas, oficinas e lojas dos artesões que eram de madeira, mas muito mais bem-feitas. 

Enquanto andávamos eu admirava os movimentos suaves da cintura de Jenny. Ela era alta, magra, muito magra, o que a tornava mais ágil e silenciosa. Os longos cabelos pretos com alguns fios loiros se espalhavam pelas costas como uma cortina indo até sua cintura. Sua pele era muito branca, mas as mãos, rosto e pescoço o sol já havia queimado. Seu rosto era alongado, com olhos marrons que sempre se fechavam como de uma raposa observando e mirando. O único defeito no rosto de minha amada era seu nariz levemente torto para a esquerda que ela adquiriu depois de anos apoiando-o do lado de seu fuzil. Este era carregado amarrado por cordões na mochila nova, mas aparentemente velha e surrada de tanto ser lavada, a faca ia na sua bota e sua pistola 9 mm dentro da calça na frente. 

O fuzil e a faca eram seus xodós. O primeiro era uma herança da família Wagen passado para a irmã gêmea de Jenny, Dakota, quando ambas se tornaram órfãs por razões que não me foram reveladas, mas logo foi para as mãos de Jenny quando a irmã despareceu junto com seis militares num mistério que custou a vida do detetive e nunca foi resolvido. A faca tinha sua lâmina decorada com as nossas iniciais e um coração entre elas sendo um presente do nosso primeiro aniversário de namoro que eu havia feito para Jenny numa época que ela queria muito uma baioneta que encaixasse devidamente na ponta de seu fuzil. O propósito principal desse acessório era ser uma alternativa a recarregar e a disparar permitindo que se use o fuzil como uma lança, mas Jenny dizia que também ajudava ao mirar. 

Eu sou o extremo oposto da minha namorada. Sensivelmente menor e mais largo que ela. Eu não tinha a mesma harmonia e destreza nos movimentos, mas era muito mais simpático, carismático e sensato que Jenny, o que não é muito difícil. Eu preferia usar coldres para as mesmas armas e uma fita presa nas duas extremidades do rifle chamada bandoleira que me permite pendurá-lo no meu ombro, pois, como sou o responsável por esfolar e salgar, tenho que trocar constantemente de ferramenta.  

Ao nos aproximarmos do portão leste avistamos um grande número de crianças com pequenos rifles nos ombros, aprendizes de caçadores, que todo ano decidiam encontrar uma das maiores lendas dos caçadores e a detentora de cinco dos dez recordes da oficina de caçadores. Todas tinham cerca de doze anos, que é quando se termina a escola primária e começam as oficinas, onde mestres ensinam seus ofícios para as novas gerações. Jenny já bufava ao me ver rindo da situação previsível.  

— Eles não cansam? Eu faço isso todo ano — Jenny disse já puxando o ferrolho do seu velho fuzil. Essa parte comum em fuzis de precisão permite o carregamento de cinco balas e a substituição da cápsula já disparada por uma nova. Fuzis de precisão e escopetas eram as ferramentas de praxe dos caçadores. Nesse caso tanto eu como ela preferíamos a primeira. 

— Todo ano tem uma turma nova que quer ver... Quem mandou fazer para um? Agora vai ter que fazer para todos. — Ela deu uma risada forçada pondo um pente na minha mão. — Mas é melhor do que os assustar como você fazia, não é? — Eu me preparo para um beijo, mas ela dá dois tapinhas na minha bochecha. 

— Hora do show! Vê se não erra, hein! 

— Eu não sou a atração principal. — digo conforme ela se aproxima dos caçadores mirins.  

— Vocês, pirralhos, não perdem um ano sequer, não é? — Ela pôs sua faca como uma baioneta na arma. — Preparados, cotocos? — As crianças gritaram “sim”, tão excitadas quanto eu, enquanto Jenny sorria alegre por fazer aquilo que gostava. Eu ficava feliz tão pela habilidade dela quanto pela felicidade que aquilo a proporcionava. 

Um dos aprendizes jogou uma lata cilíndrica de ervilhas velha para cima quando eu joguei o pente novamente para ela. Antes que a lata chegasse no ápice do seu trajeto Jenny já havia carregado seu rifle com uma pancada sobre o pente fazendo as balas serem engolidas para dentro da arma. Assim que a lata começou a voltar para o chão ela já tinha fechado o ferrolho e deu o primeiro tiro fazendo a lata pipocar erguendo-a no ar e isso se repetiu mais quatro vezes impressionando as crianças enquanto Jenny dava um encantador riso ao passo que girava como quem dança junto do alvo que fazia parceria a ela no ar. Eu não estava impressionado como as crianças, mas admirava os movimentos suaves que ela dava a um objeto tão rústico quanto seu rifle velho e uma lata enferrujada. 

Quando a última cápsula vazia foi expulsa pelo ferrolho ela girou a arma no ar pegando-a pelo cano e preparando uma tacada quando um estrondo muito mais alto surge de cima do portão vaporizando o resto da lata. Enquanto as crianças se perguntavam o que tinha acontecido Jenny olhava com os olhos cerrados e a boca rosnando para a torre de vigia onde as luzes da alvorada ofuscavam a silhueta do seu maior nêmese.  

— Carl, seu filho da puta, você quer morrer? — Jenny berrava assustando os aprendizes. 

— Eu quero ver você tentar! Não se impressionem crianças, ela não chega aos pés do pior militar! — Carl caçoou apoiado em seu enorme rifle .50. 

— Desce aqui seu covarde que eu vou fazer cuspir esses dentes! Me solta, Will! Eu vou quebrar esse filho da puta! — Ela tentava raivosamente se desvencilhar enquanto o militar gargalhava. Eu tinha tanta raiva dele quanto ela, mas eu tinha que me manter calmo e ser muito cuidadoso, pois Jenny poderia fazer alguma besteira. 

— Cala a boca, Carl! Não dá para guardar sua rixa para longe das crianças? — eu intervim. 

— Eles têm que saber quem é melhor! 

— Ninguém liga para a arrogância de um bosta como você! Vamos, Jenny — eu retruquei carregando Jenny para além do portão enquanto os dois rivais ainda trocavam farpas.  

Os dois brigavam desde que Jenny quebrara o recorde de alvo mais longe parado de 600 metros elevando-o para 1050 metros. O problema era que esse recorde era 30 metros maior do que o dos militares, mais especificamente, de Carl. Ambos se desafiavam de tempos em tempos quebrando seus recordes intercaladamente. Jenny era dona do último com 1412 metros, mas já fazia uns três anos que eles não competiam. Não passava de uma briga de egos inflados, mas o fato de Jenny enfrentar alguém que representava os militares de igual para igual me orgulhava muito e também os caçadores. 

Sem dúvidas Jenny era muito mais popular, tanto por sua personalidade intempestiva quanto pelo fato de nunca ter negado ajudar um aprendiz, claro que à sua maneira. Já o rival era mais arrogante, irônico e tão orgulhoso quanto ela, mas ele tinha uma patente que o garantia algumas regalias entre elas um melhor salário, festas e o fuzil calibre .50 que Jenny tanto invejava. Para ambos era uma questão pessoal, mas Coronel Dulcan não pensava assim e fazia questão que Carl não esquecesse disso o fazendo treinar o dobro de horas que qualquer outro militar na mesma posição com recursos que ela nunca sonharia em ter. Numa tentativa de bater a popularidade de Jenny, Dulcan abriu o treino dele para o público que se resumia a meninas adolescentes e alguns meninos que vinham no final para ver Angel, a namorada dele. 

...________... 

O lado de fora do acampamento era uma imensidão de grama e arbustos beges cruzados por uma estrada feita com uma pedra negra quebrada e listras amarelas no centro que dava acesso para o Acampamento e se estendia até perder de vista para os dois lados atravessando a cidade. As suaves formas do horizonte eram como ondas se movendo na estática terra iluminada pelo sol da manhã dando a falsa impressão de calma nas terras arrasadas. 

Além das muralhas e sob aquele céu azul com poucas nuvens brancas havia uma terra sem lei onde ladrões, assassinos, psicopatas e bestas se escondiam nas pontes, edifícios e cidades destruídas. Apesar do perigo que representavam para os descuidados não eram esses que mais nos preocupam, uma vez que nas oficinas já aprendíamos aonde não ir, que situações evitar e o que fazer (como dizia Jenny guardar uma bala no bolço e disparar todas as outras); mas sim aqueles para qual não estávamos preparados, as lendas. 

Esses rumores sobre pessoas com feitos incríveis eram espalhados por todas as cidades de norte a sul das terras arrasadas. A maioria das histórias eram sobre justiceiros, outros sobre foras da lei, alguns sobre monstros abomináveis ou até mesmo sobre assassinos sem escrúpulos ou remorso. Esses últimos amedrontavam todos do Acampamento, mas nós, caçadores, que devemos sair para as terras arrasadas todos os dias já havíamos diluído essa preocupação na rotina. 

Enquanto caminhávamos tranquilamente pela planície bege agora pisando sobre a terra e observando uma enorme construção, que eu chamava de estrada-elevada pois era elevada por colunas feitas com concreto idêntico ao que constituía a muralha do Acampamento, destruída no horizonte notei o semblante perturbado de Jenny: 

— Você ainda está chateada? — perguntei. 

— Chateada? Eu estou é puta! — Ela respirou fundo pondo a mão na testa. — Me desculpa, eu sei que você não gosta quando eu fico brava, mas você sabe como ele consegue me tirar do sério. 

— Eu sei... Mas eu acho que consegue ignorá-lo. Você já consegue se segurar perto de quase todo mundo. 

— Eu tô tentando, mas ainda bem que você me segurou, porque se você me deixa... — Ela fechou a mão em um punho com se esmagasse uma bola para se acalmar quando soltou o fôlego, disse: — Obrigada, amor, eu não sei se conseguiria manter meu juízo sem você. — Ela me olha com o rosto mais fofo e bonito que eu já havia visto na minha vida. Era uma mistura de obrigado com desculpas e uma pitada de eu te amo que só ela sabia como fazer. 

— Eu mantenho para você enquanto não decidir me matar, nervosinha — digo afagando seus cabelos. 

— Óum... Que romântico — ela responde rindo — Não dá ideia, hein. — Ela balança o dedo. — Calma... Tá ouvindo isso? — Audição é um dos mais importantes sentidos de um caçador.  

— Estou. Tá na hora de trabalhar.  — Depois de os esfolarmos voltamos a caminhar. 

Não demorou muito para encontramos uma família do que costumávamos chamar de “gaugas”. Eles são cães grandes, muito grandes, sem nenhum pelo, olhos esbugalhados, com todos os dentes para fora da boca e focinho no formato de lança. Esses foram os primeiros bichos que tentaram ativamente me matar quando era aprendiz durante uma aula prática. Não me arrependo de ter corrido gritando deles, pois foi a primeira vez que fiz Jenny rir e foi impagável. Por isso tenho certo carinho por eles.  Os gaugas costumam ser rápidos e espertos, sempre estão em grupos, mas não vão durar muito em nossas mãos.  

Silenciosa, Jenny contornou os animais para uma posição mais vantajosa, ajoelhou-se pondo a faca que tanto gostava no fuzil. Eu calmamente me esgueirei evitando ser percebido enquanto assistia Jenny correndo despercebida. Diferente de mim caçar era mais do que um emprego para ela, era um prazer, o prazer de subjugar a natureza todo dia (ela tem uma filosofia bem diferente dos outros caçadores a respeito da natureza). Assim que a caçadora definiu um alvo, ela começou a contagem regressiva com a mão esquerda com um sorriso de orelha a orelha e atiramos. 

— Vamos rápido com isso aí, logo, logo os gaugas vão voltar pra retaliar e se a carne apodrecer o bosta do Dulcan vai pôr a culpa em mim. De novo... — disse minha semianoréxica preferida que se movia como um fantasma com seu raro sorriso de dever cumprido que era o que eu mais admirava. 

— Eu sei que você tem cinco recordes de tiro, mas se lembre que eu sempre esfolei bem mais rápido do que você. 

— O quê?! — Ela logo correu com sua faca para esfolar e salgar o outro galga facilitando muito meu trabalho. 

Quando terminamos e dividimos as carnes na minha mochila e as peles na dela voltamos à procura de outros animais. 

..._________... 

Ao cair da tarde, nossas mochilas já estavam cheias e voltávamos suados, lado a lado, segurando a cintura um do outro por causa do cansaço. Repentinamente ela parou e apontou para nordeste 

— Olha lá, um gorilão — disse Jenny animada — Vamos ser heróis se o levarmos para o acampamento. 

— Mas você não acha arriscado? Já é estranho ver um deles sozinho fora que nós já estamos cansados, temos o suficiente para hoje e o acampamento tá longe. 

— Eu vou caçá-lo com ou sem você! — disse sendo inconsequente como de costume. 

— Tá bom, tá bom, vamos lá, cabeça-dura. 

Os gorilões têm um nome bem sugestivo. São parecidos com gorilas sem pelos que tem uns 1,90 em pé, mas costumam andar de quatro apoiados sobre mãos com três dedos grossos sendo um opositor. As pernas são mais longas que de um gorila o que o permite andar de pé, mas não conseguem correr nessa posição. 

Ajoelhamo-nos, conferimos nossas armas para garantir que estávamos totalmente carregados e apontamos para a grande fera que lentamente caminhava solitária embaixo de um viaduto destruído a aproximadamente 200 metros de distância. Depois uma risadinha sádica e maliciosa Jenny disse empolgada: 

— Isso vai ser divertido. 

A contagem regressiva foi iniciada pela mão de Jenny como de costume: 5, 4, 3, 2, 1. A besta nos viu e começou a correr em nossa direção sem, aparentemente, perceber os dois tiros que recebera. Seus rugidos ameaçantes não tiravam nossa sincronia impecável. Atirávamos, rearmávamos e atirávamos novamente como se fôssemos um só. 

— Sem munição — dissemos ao mesmo tempo. 

O animal era resistente e continuava a correr mancando do braço direito, mas ainda assim mantendo sua velocidade. Não estava a mais de 30 metros agora. Então entreguei meu fuzil para Jenny e disse para se afastar levando minhas cinco balas do cinto, enquanto eu sacava minha faca e minha 9 mm. Corri ao encontro do gorilão que ao se aproximar tentou me dar uma patada, mas desviei abrindo uma oportunidade nas suas costas. Eu saltei prendendo-me às costas dele pela faca agora cravada em sua carne. Ele tentou sacudir e me alcançar com as mãos, mas com três tiros na nuca o monstro foi derrotado. 

Jenny se aproximou comemorando, me deu um hi-5, devolveu meu fuzil e se aproximou do corpo quando parou olhou para a besta, olhou para mim, olhou para o horizonte, depois para o corpo e mais uma vez para mim e disse: 

— Quanto falta até casa? 

— Uns 6-7 quilômetros. 

— Quanto esse bicho pesa? 

— Entre 260 e 300 quilos. 

— Puuuts... — Ela pôs a mão na cabeça logo olhando para mim. 

— Você não pensou nisso, não é? 

— Claro que... — Ela me olha culpada — Pensei... — O sorriso lentamente aberto entrega sua falta de plano. 

— Ah, não, nem vem, eu avisei! 

— Não, sério... — Jenny começa a olhar em volta coçando a nuca — Eu... eu tenho um plano... eu sempre tenho um plano... sempre... quase... Ai, fodeu...! — sussurrou. 


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Notas finais do capítulo

OI! Espero que tenha gostado do meu primeiro capítulo. Agradeço pelo seu tempo e adoraria receber suas críticas e/ou sugestões construtivas e deixar minha história cada vez melhor para você. Obrigado prévio pela colaboração. E veja! O segundo capítulo já está disponível! Te vejo lá!



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