Crônicas das terras arrasadas: O sentimento algoz escrita por Abistrato


Capítulo 14
Capítulo 14 - Rachel "Libre"




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/701589/chapter/14

Rachel’s third chapter

Se passaram alguns dias desde que vi Frank pela última vez na casa de Emily, e sua perna havia melhorado permitindo se mover sem depender tanto da ajuda da muleta ainda que mancando um pouco. Ela vinha sempre me visitar depois das aulas de costura e já tinha virado minha modelo oficial, apesar de ficar desconfortável em usar meus vestidos reclamando que sentia frio nas pernas, mas rapidamente cedia com um pouco de pressão, alguns elogios, pedaços de palha de aço, querosene e pincéis que eu pedia para Emily trazer justamente para subornar o coração de Frank.

No início eu não entendia a razão dela sempre ficar maravilhada quando via meus cuidadores trazendo esses itens das terras arrasadas, mas depois ela mesma me explicou que os caçadores tinham uma real vaidade e certa competitividade com suas armas então sempre gostavam de vê-las brilhando, decoradas com gravações no metal, madeira ou fibra e quanto mais elaborados melhor.

Claro que não demorou muito para eu utilizar essa peculiaridade dos caçadores para seduzir minha amiga a me ajudar na minha busca pelo conhecimento dos vestidos. Na verdade, eu já havia aprendido a fazer calças e camisetas também, porém eu gostava de vê-la usando vestidos toda tímida e corada expondo sua forma mais feminina que se escondia atrás das roupas dos caçadores.

Raramente Donna e sua alegre namorada vinham me visitar também e não haviam companhia mais divertida do que as duas para o jantar. Então começou o período de provas dos caçadores e Frank parou de me visitar, o que me deixou bem triste e solitária além dos muitos vestidos acumulados numa casa onde não havia lugar para pôr mais uma única agulha. Essa tristeza era tamanha que eu precisava desabafar com alguém e quando menos percebi estava no hospital:

— ... Eu não me conformo, Angel! Sabe, nem pra passar um dia em casa e falar que está viva ou algo assim! De vez em quando eu acho que ela só me abandonou que nem todo mundo! — Eu chorava no colo dela enquanto sua mão afagava minha cabeça e a outra jogava poker contra Samuel sobre uma mesa que um dia havia sido de aço e hoje era basicamente ferrugem e remendos de madeira.

— Ela não te abandonou, Rachel... Ela não avisou que ia ficar estudando? Eu aumento cinco dólares.

— Avisou... — sussurrei.

— Então! Se ela quisesse te abandonar ela não teria falado nada.

— Eu, hein, que que aconteceu pra Rachel tá fazendo esse drama? Eu igualo. Desculpa eu tava trocando um curativo.  — A voz de Samuel surge junto com o barulho de luvas.

— Ah, ela está brava com a amiguinha que não veio ver ela... Posso baixar as outras cartas?

— A Frank? Pode

— É... — respondi baixinho enquanto a médica punha mais duas cartas na mesa.

— Mas ela não está em período de prova lá nos caçadores?

— Mas custa ela passar em casa e me dar oi?! — Eu levanto indignada cabeceando os seios da Angel sem querer — Nesse período eu já fiz quatro vestidos pra ela! Quatro! — Gesticulo fervorosamente antes de voltar a chorar nas pernas da Angel — Eu não gosto de ficar sozinha de noite!

— Nossa... tá igualzinha a Jenny — Angel prontamente concordou com essa afirmação apenas com o olhar. — Eu aumento dez.

— Hum... Está confiante hoje, Samu?

— Eu só confio na vontade das cartas.

— Eu aumento mais dez então. Se você quiser você pode ficar comigo e com o Carl na minha casa hoje. Ele está ansioso pra te conhecer — sugeriu Angel —, ele disse que vai sem farda hoje. — Ambos abaixaram as cartas e o médico/cabelereiro quase surtou ao perceber que tinha perdido 30 dólares para uma quadra.

Nesse momento eu fiquei bem dividida entre aceitar ou não, principalmente pela vergonha que eu já havia passado da última vez que vi Carl e tive um ataque de pânico onde Marcus e Emily me resgataram. Por outro lado, Frank havia me mostrado que aqueles homens fardados também podiam ser amigáveis e talvez ainda mais amigáveis sem a farda. Então juntando toda a minha coragem eu decidi dar a ele mais uma chance.

...__________...

Depois de almoçar com Angel e Samuel dentro do próprio hospital devido ao agitado plantão dos dois, eu fui caminhando para casa. Aparentemente os exploradores também estavam em período de prova, pois haviam vários deles treinando suas acrobacias e fazendo perguntas uns para os outros pelas ruelas claustrofóbicas feitas de metal enferrujado, madeira mal-cuidada, terra ária e sombras em que passei. Eles eram de fato encantadores, ainda mais que Emily e Marcus, que já haviam sido maltratados pelas intemperes das terras arrasadas. Suas roupas de trabalho deixavam boa parte de suas peles jovens expostas o que os dava um bronzeado brilhante e apresentava suas silhuetas delgadas de músculos evidentes. Seus movimentos, como eu já havia percebido em meus cuidadores, eram sensuais e delicados, apesar de eles não notarem entre eles. Bem diferente da característica bruteza dos caçadores. Mas mesmo sendo tão bonitos, a visão deles eu ainda não conseguia me fazer andar de cabeça erguida apesar de agora eu já conseguir andar sozinha pelo acampamento, mas só por onde eu já conhecia e com passos rápidos.

Chegando lá, Aline já me esperava especialmente irritada para me levar para a aula. Eu acho que o sol forte e a terra arenosa do Acampamento devem ter rapidamente secado minhas lágrimas, pois tanto ela quanto Emily e Marcus que estavam em casa conversando com ela até que eu chegasse não notaram que eu havia acabado de chorar.

Durante a aula eu recebi algumas broncas por continuar só treinando vestidos e devo dizer que Aline aos poucos foi se tornando uma professora bastante rígida não deixando nenhum erro, por menor que fosse, passar por seus olhos. Quando a aula acabou eu fui mandada para casa com dor de cabeça de tanto forçar a vista na meia-luz do interior do galpão e também por tantos tapas na nuca que levei, mas felizmente Angel já me esperava para ir jantar com ela e o namorado Carl.

Seu jaleco sobre seus ombros indicava que ela tinha acabado de sair de seu plantão, mas sobre suas olheiras pretas um grande sorriso e um abraço me esperavam. Ela me disse que seu namorado já nos esperava na casa dela que ficava na parte sul do Acampamento e lá eu já sabia que era a área mais rica do acampamento.

Era fácil ver como lentamente a paisagem pobre de ruelas e casas improvisadas de madeira podre e chapas enferrujadas se tornava uma de casas grandes de alvenaria de uma beleza que agora sim me fazia erguer a cabeça para admirar impressionada. Vendo isso, Angel começou a me explicar que dentre as principais casas que havia na zona sul algumas pertenciam aos mestres de cada uma das grandes profissões. A maior e mais bonita era dos militares que tinha grandes colunas brancas em sua entrada e uma pequena escada onde dois militares se posicionavam com seus rifles. A fachada tinha muitas janelas que revelavam o luxo que havia ali como móveis e madeira, lustres, tapetes, espelhos e outra coisas cujos nomes não conhecia. Ali morava o Coronel Dulcan e alguns dos mais prolíficos militares.

Depois dela havia a mansão dos caçadores que era visivelmente menor, mas tinham as mesmas colunas só que claramente de madeira entalhada no formato dos animais que Frank, Donna e Camy haviam me falado em uma ordem que eu não conseguia entender. Logo ao lado havia a mansão dos exploradores que não era nada grandiosa, mas era inteiramente pintada com desenhos coloridos e muito criativos que se sobrepunham um sobre o outro cada vez que uma nova turma de exploradores se graduava.

Um som de música alta e alegre logo tomou as largas ruas com calçada por onde andávamos. Angel logo me explicou que era comum festas serem realizadas nessas mansões e era sempre assim: barulhentas e muito divertidas. Quando perguntei de quem poderia ser a festa ela disse que ouve uma época em que ela sabia onde era a festa pelas batidas que faziam o chão tremer, mas que não sabia mais, pois deixou de frequentar depois que começou a trabalhar na rotina cansativa de médica.

Depois de andarmos por algumas outras casas finalmente chegamos à casa de Angel que não passava vergonha frente as outras. Apesar de não ser grande como a dos mestres, ela era muito maior do que qualquer uma da zona leste ou oeste, mas não era tão grande quanto a árvore que havia atrás dela que superava com suas folhas amareladas o telhado da casa toda feita de alvenaria com acabamento em vermelho e dois andares, coisas sequer eram consideradas quando mais um barraco era erguido perto de Jenny ou de Emily. A porta era brilhante e grande o suficiente para que eu e a dona passássemos lado a lado sem nos encostarmos. Dentro ela era ainda mais impressionante com tapetes, móveis de madeira envernizada e um pequeno lustre que se ligava por meio de um interruptor na parede. Uma grande escada de degraus largos estava logo na frente da porta, um cabideiro se escondia atrás da porta e um pequeno aparador sustentando um abajur e um espelho compunham entrada da casa.

Dentro da pequena mansão da Angel parecia que as bombas nunca haviam caído, era quase como estar dentro de algum dos filmes dos homens antigos que eram exibidos na praça central, eu me sentia encantada por tamanha beleza e, ao mesmo tempo estranhando tudo aquilo que eu nunca tinha visto coisas que não sobreviviam as terras arrasadas.

— Dá pra ver daqui como os seus olhos tão brilhando, Ray... Pode ir...

Assim que recebi a permissão eu comecei a explorar a casa, enquanto Angel se desfazia de sua roupa de médica na entrada e ficava mais à vontade. A casa era feita de uma sala de estar no primeiro andar com um sofá feito de couro preto e liso que ficava de frente para um grande tapete e uma janela com cortina vermelha, do lado direito do sofá haviam um criado-mudo que sustentava um abajur e um rádio pequeno e muito bonito, já do outro lado uma estante toda elaborada estava repleta de livro de medicina de várias cores e muitos marca-páginas em seus interiores. Além disso em uma das paredes havia pendurado um grande relógio fazia um barulho rítmico e irritante.

No andar de cima havia uma sala trancada ao meio e nas pontas dois quartos. Um deles que estava à direita tinha uma grande e bela cama de casal muito bem arrumada junto de um grande guarda-roupa que alcançava o teto repleto das mais belas roupas rivalizadas apenas pelas criações de Aline, uma outra cômoda também de madeira escura e trabalhada com detalhes decorativos sustentava em seu topo um grande espelho que refletia completamente límpido a minha própria imagem com precisão hipnotizante. Depois de admirar a mim mesma por um ou dois minutos vendo minha pequenez em relação àquele quarto bem iluminado mesmo com o anoitecer continuei a checar o que continha nas gavetas: os mais diversos tipos de saltos, sapatos, botas e tênis. Eu estava simplesmente boquiaberta com o luxo que era a casa de Angel com relação as humildes casas de Jenny e de Emily que contavam as moedas para comprar as próprias roupas. Aquele tamanha admiração e encanto que a grandiosidade daquela casa proporcionava agora estava me dando certa melancolia. O quarto à esquerda era menor com uma cama de solteiro igualmente maravilhosa, uma cômoda mais simples e seu próprio banheiro com banheiras de pedra, privadas do mesmo material e um espelho menor frente a pia. O banheiro de casal no quarto anterior era repleto de diferentes tipos de maquiagem das quais eu reconhecia muitas então rapidamente corri escada abaixo pois elas não me traziam boas recordações.

Voltando para baixo percebi que todas as paredes eram pintadas da mesma cor pastel clara tanto no andar de baixo como no de cima tal qual o piso de madeira escura. Do outro lado da escada havia uma mesa comprida onde oito cadeiras se aglomeravam antes de uma área logo mais estavam Angel e Carl se beijando. Eu me ruborizei assim que vi os dois, mas eles logo perceberam minha presença e Angel novamente apresentou seu namorado:

— Rachel, eu quero que conheça Carl, o meu namorado

— Olá! — disse o homem de voz amistosa sob um sorriso simpático.

Eu não sabia o que responder, estava travada no mesmo lugar que flagrei os dois. Todo o ambiente era como se eu estivesse em um sonho, mas o medo que sentia era o mesmo de um pesadelo porque eu já havia visto sorrisos daquele.

...__________...

Sarah sempre estava de cara séria, ela tem mantido essa cara desde que a conheci no dia em que me jogaram no mesmo quarto trancado que ela há um mês, quando me tiraram da cozinha. Na maior parte do tempo ela estava falando consigo mesma ou me ensinado a escrever, mas ela nunca fez uma piada ou brincadeira sequer, mesmo assim ela não era exatamente insensível, entretanto fazia questão de sempre se manter distante. Muitas vezes eu chorei em minha cama enquanto ela esperava eu me recuperar para me explicar o que estava acontecendo, mas hoje seria diferente.

— Esqueça o que aconteceu. Fará a dor passar mais rápido. — Sua voz era firme e reverberava nas cinzas paredes do nosso quarto.

— Esquecer?... Eu...  Eu... Eu não consigo... Por que eles são assim?

Apesar de estar deitada no escuro da sombra promovida pela cama de cima do beliche meus olhos estavam estalados e eu tremia em posição fetal em uma mistura de choque, dor e pavor. A dor que sentia não era apenas das partes que foram abusadas até a hemorragia por um velho gordo e milionário da nobreza imperial, mas também do desespero que fui obrigada a me submeter.

— Eu achei que seria fácil... fiquei com medo, mas as meninas me tranquilizaram, mas na hora...

— Foi desesperador, não foi? Eu sei... Essa é a vida de uma escrava, Rachel. E agora que você não é mais virgem seu preço cai apesar de continuar alto, então você vai receber mais propostas agora...

— Ele foi tão cruel... Ele gostou de ver minha dor... meu pânico...

— Isso se chama sadismo, muitos clientes são assim, digo os ricos que podem pagar pelos danos, mas os pobres tendem a ser mais... prudentes... não querem que o Chefe mande o Algoz atrás deles...

— Todos os meus clientes são ricos, Sarah...

— Então é bom você ir se acostumando... Gostaria de falar que são todos animais cruéis e irracionais, mas não são... A maioria só quer o serviço feito, mas tem muitos que dão dó, pessoas machucadas que só querem carinho e companhia que a vida tirou deles... Quando eu recebo um sádico eu penso nesses outros que precisam de mim... Enfim, mas só atendo os menos afortunados... Esse assunto não tá te ajudando, por que você não continua me falando do lugar de onde você veio? Era perto da colina dos demônios, não era? — De repente ela estava ajoelhada na minha frente sorrindo com um simpático sorriso na minha frente — Quer um pedaço do meu lanche?

...____________...

Aquele era um sorriso de alguém que está cansado, não, cansado é pouco: está acabado, mas não quer demonstrar. Exatamente como Sarah sempre estava no final do seu expediente e mesmo assim sempre disposta a me ouvir, aconselhar-me, consolar-me. Eu aposto que ela achava que meus sofrimentos eram pequenos comparados aos dela, mesmo assim ela não me mostrava o lado dela. Carl tinha o mesmo sorriso:

— Olá — respondi tímida, mas ao notar que ele não trajava sua farda, e sim, um pijama de verão fiquei mais segura — Me desculpe a pergunta... Mas você está muito cansado?

Angel estranhou a pergunta, mas no rosto de Carl o sorriso forçado se tornou um sorriso de empatia.

— Um pouco só, mas não o suficiente para não me apresentar! Eu sou o Sargento Carl Firehawk, namorado da Doutora Angel von Schiemadel é um prazer conhecer a senhorita. — Apesar de  sua formação seu tom era brincalhão e muito amigável o que não refletia as afirmações de Jenny ao seu respeito — Provavelmente Jennifer falou de mim para você.

— Bem, eu sou a aprendiz de artesã, Rachel Libre, ao seu dispor — brinquei também. — Com certeza Angel teve ter falado muito melhor de mim.

— Sem dúvidas! — A risada dele era aconchegante, e seu sorriso encantador apesar dos dentes amarelados, e eu podia ver como a médica olhava com olhos marrons brilhantes para o rosto retangular de queixo bifurcado do Sargento enquanto afagava seus curtíssimos cabelos pretos sob os quais podia-se ver seu alvo couro cabeludo. — Você não parece tão rude quanto ela falava.

— Não elogie muito, sobe na cabeça dele. — Angel entra na brincadeira o que eu achava difícil, pois ele era mais alto que a Jennifer e mais baixo que Marcus ou Samuel.

— Talvez Jenny tenha acertado em outras coisas...

— Olha só! A menina mal me conheceu e já tá me zuando! Já esqueceu da timidez?

— Ah, pode zuar à vontade que hoje eu deixo — riu Angel que trazia uma frigideira com uma grande e recheada massa amarela para a mesa de cheiro deliciosíssimo.

— O que é isso? Parece muito bom!

— É só uma omelete recheada com queijo e presunto, vamos lá na mesa comer?

Depois de todos sentados à mesa, a médica perguntou como havia sido o dia de trabalho do seu namorado que não deu uma resposta muito longa, já quando a pergunta foi dirigida a ela sua resposta foi bem mais volumosa. Ela contou todo e cada caso que ela teve em seu dia, dos mais alegres até os mais tristes sabendo o nome de quase todos os seus pacientes além do nome dos pais e a suas profissões. Quando indaguei como ela conseguia se lembrar de tantas informações, foi Carl quem respondeu:

— A Angel sempre teve uma memória de ouro, quando nós começamos a sair ela já sabia minha linha genealógica inteira.

— E é por isso que eu não o deixo beber nem fumar mais.

— Fora comida sem sal e pouca.

— Mas é claro, de cardiopata já basta o seu pai e de diabética já basta sua mãe. Eu tenho que cuidar do que é meu, não é verdade? — Eu ri desse comentário.

— Vocês são muito divertidos, eu não entendo o porquê da Jenny nunca gostar de vocês — Um certo silêncio tornou o clima pesado por um instante antes de Carl falar:

— Sabe que eu nunca odiei a Jennifer — Essa declaração me surpreendeu, mas Angel não só ficou só surpresa, mas também confusa — Pra falar a verdade eu meio que gostava dela — Agora a namorada estava ultrajada e demandava uma explicação a qual o Sargento respondeu com um ditado: — Reza a lenda que existem duas grandes sortes na vida de alguém para que se encontre a felicidade: uma é encontrar seu ou sua melhor amigo ou amiga, e eu encontrei que é você Angel, e todo o bem que você traz para mim; a outra é encontrar o seu melhor inimigo e Jenny era minha melhor inimiga.  Se não fosse pelas brigas e disputas que eu tive com a Jenny, provavelmente eu não teria me tornado o melhor atirador do Acampamento, o garoto propaganda dos militares, quem sabe nem teria conhecido a Angel. — Angel então se conformou. — Querendo ou não, por bem ou por mal, a Jennifer foi quem me deu novos desafios e Angel, minha querida, quem me apoiou em superá-los.

Eu estava impressionada com tamanha lição de vida que o nêmesis de Jenny havia me ensinado e, de certa forma, eu compreendi apesar de serem inimigos, ambos eram boas pessoas, mas na sala havia alguém mais comovida do que eu. Angel abraçou Carl e o deu um beijo antes de chamá-lo de fofo. Depois de sorrir com a bonita cena do casal eu tive de perguntar:

— Mas como que começou toda essa inimizade entre você e a Jenny?

— Foi mais ou menos quando eu tinha terminado o curso de primeiro Sargento, eu fui fazer um curso pra me tornar um franco atirador para que depois eu virasse uma sentinela da muralha que é minha profissão atual. — Durante a explicação eu comia a largas garfadas a omelete que estava deliciosa — Nessa época, nós começamos a ouvir falar de uma nova caçadora que fazia coisas impressionantes com seu rifle antigo e tudo mais. De início, não demos muita bola, não até vermos quantos jovens tinham se matriculado nos caçadores. Coronel Dulcan ficou furiosíssimo quando viu que, de repente, os militares e até os exploradores tinham perdido espaço para os caçadores. Então ele tentou chamar essa caçadora que era a Jenny para os militares oferecendo mil privilégios, mas ela era completamente irredutível e não aceitou nada. Então o Coronel tentou acabar com a fama dela com jogos entre aprendizes de todas as profissões, mas o mais esperado sempre era o tiro ao alvo. Eu que era o melhor aprendiz da época representei os Militares. Claro que Jenny reclamou falando que eu não era aprendiz, mas a disputa continuou assim mesmo. Bem, de fato a disputa foi entre nós dois até que eu ganhei, mas claro que Jenny não se satisfez com o segundo lugar e depois de me xingar muito e quase ser presa ela me desafiou. Desde então só brigamos.

— Então vocês nem, se conheciam antes disso?

— Não, nem sabia que existia... — Então ele parou para pensar — Quer dizer... Eu tinha já ouvido falar da irmã dela, mas Angel não gosta quando eu falo disso.

— Realmente não gosto mesmo. — O rosto e a voz de Angel distorceram aquele ambiente agradável e caloroso em um clima frio e sério, deixando-me muito preocupada.

— Viu? Mas e como você está Rachel? — Carl tentou recuperar um pouco da leveza do ambiente.

Carl realmente se mostrou um homem muito simpático e agradável durante o jantar, mas a alegre e sorridente Angel não apareceu mais depois daquele comentário sobre a irmã da Jenny, ao invés disso, silêncio foi tudo que demonstrou até quando fomos dormir. Ela me mandou para o antigo quarto dela e disse que eu poderia me banhar antes de dormir se quisesse.

Apesar de todo o luxo e conforto tal como eu nunca tinha visto e usufruído antes, eu não consegui dormir pensando no que poderia ter acontecido para que Angel ficasse tão magoada com a mera menção da irmã de sua arqui-inimiga que, aliás, só era inimiga por causa de sua rivalidade com Carl. Ao mesmo tempo, olhando as brilhantes estrelas de plástico fosforescentes grudadas no teto, eu não conseguia conceber nesse vasto universo de possibilidades o que eu poderia fazer para ajudá-la ou para se quer abordar a situação sem despertar tal reação. Eu tinha medo, medo de perder quem mais me era querido, mas também não gostava de ver essas pessoas sofrerem e isso me levava a uma hesitação dolorosa.

Mesmo com tamanha preocupação e meus pensamentos a mil o sono começou a tomar conta de mim. Entre minhas calorosas respirações e o aconchegante travesseiro, que tinha o mesmo cheiro envolvente do cabelo da Angel, minha consciência foi se esvaindo pelas grossas cobertas quando um agudo estalido me despertou. Eu apenas me virei na cama e novamente tentei me entregar à quente fofura dos cobertores achando que seria a grande árvore batendo contra o vidro por causa do vento, mas uma batida mais grave e numerosa novamente me acordou. Irritada levantei para checar o que estava acontecendo.

― Rachel! Raaaacheeeel! ― Um sussurro gritado surgiu na janela, assustando-me, mas a voz conhecida surgia de uma sorridente Frank que acenava para mim.

― Frank! O que você tá fazendo aqui? Como você subiu aqui com sua perna quebrada? ― respondi no mesmo tom.

― É que eu tive ajuda. ― Ela aponta para baixo então eu abro a grande janela que dava para uma curtíssima sacada e olho para baixo para ver que Frank estava em pé sobre os ombros de Donna que por sua vez estava sobre os ombros de Camy.

― Rápido, por favor! ― suplica Camy no máximo de seu esforço.

― Coitada! Frank, como você pode fazer isso com elas!

― Eu fui no hospital pra trocar meu gesso e o Samuel me falou que você tava chateada que eu não falei com você e tals, mas adivinha quem são as mais novas caçadoras do Acampamento. ― Eu comecei a sorrir feliz pela conquista delas e quando fui parabenizar sou interrompida.

― Acelera aí! ― Camy implora novamente

― Shiu, Cammy, você vai acordar a Angel. ― Donna repreende a namorada.

― Então você quer vir para a nossa festa de formatura, tipo agora? ― Assim que ela proferiu essa frase a luz do meu quarto acendeu dois duas ficamos assustadas para a porta onde uma Angel de camisola olha para nós duas.

Rapidamente meu olhar de susto se torna um olhar submisso que pedia permissão. Angel apenas coçou seu olho e ao bocejo disse:

― Só não faz barulho quando voltar. ― Então ela desligou a luz e fechou aporta e abafado além da porta pude ouvir ― Nada, só a namoradinha dela que tá na janela chamando-a pra uma festa... ― Instantaneamente enrubesci, mas Frank aparentemente não ouviu.

Com ajuda de Camy e Donna eu desci pela janela e fomos todas para o que seria uma das melhores noites da minha vida.

..._____________...

A cada passo que dávamos para perto da festa mais os sons graves reverberavam em meu peito e mais ansiosa eu ficava. Donna dizia que não era muito fã de festas, mas Camy já misturava o andar com a dançar ao ritmo das músicas ao longe fazendo Frank e eu rirmos com tamanha diferença que havia entre as duas. Frank, que andava com suas muletas, ouviu minhas ansiosas preocupações sobre como era uma festa e decidiu me dar algumas dicas do que esperar e de como me portar:

 ― Então a festa é na mansão dos caçadores o que significa que a maioria das pessoas lá são caçadores então pode ser que você não conheça ninguém, mas se alguém perguntar você é minha convidada e se quiser eu posso te apresentar a algumas pessoas. Segundo beber é bom, mas nunca beba do copo de outra pessoa e nem deixe seu copo dando bobeira, vira e mexe, umas meninas andam sendo drogadas vai saber o que fazem com elas, então só beba da grande caixa d’água com uma torneirinha onde nos misturamos todas as bebidas. Se alguém pintar seu rosto de tinta verde é por que ela gostou de você e se quiser dar uns beijos nessa pessoa sai da pista de dança e vai para um canto escuro desocupado, se esquentar tem quartos vagos no andar de cima. Se for tinta preta ela quer duelar com você e se você aceitar você pinta tinta preta nela e sai da festa. Quem tem tinta vermelha no rosto tá comprometida. Se for branca é só alguém te falando que é sua amiga, tinta amarela é alguém dizendo pra você parar de beber e se for azul é pra você ir embora. A tinta fica espalhada pela festa. De resto, dance e se divirta se alguém vier mexer com você sem você deixar é só chamar uma de nós três ― Frank falou rapidamente me deixando ainda mais insegura e ansiosa, enquanto Camy e Donna riam das minhas caras desespero enquanto informação era jogada sobre mim.

― Tá, eu vou voltar pra casa!

― NÃO! ― As três gritaram em uníssono.

― Relaxa, só seguir essas regras que vai dar tudo certo. Foca na diversão! ― concluiu Frank ― Ah! Faltou a cor fosforecen...

― NÃO! ― As namoradas gritaram com Camy segurando a boca de Frank!

Assim que a mansão se tornou visível, eu pude ver o que era a grandiosidade dos caçadores. Na fachada da mansão três grandes totens serviam de colunas com diversos animais antigos entalhados neles com se em uma ordem crescente de importância de baixo para cima. Frank teve que segurar minha cabeça para que eu não caísse para trás ao olhar para cima boquiaberta enquanto me explicava a ordem. Na primeira coluna havia aves, no topo dela tinha o mesmo animal que eu e Frank tínhamos visto na caixa misteriosa da Jenny, na segunda havia répteis e na terceira mamíferos.

A fila para entrar já era longa e vários caçadores vestidos em suas roupas de couro se revezavam para manter a ordem e controlar a entrada. Uma segunda fila menor caçadores e seus convidados entravam e saiam à vontade. Donna liderou o caminho para a segunda fila onde explicou que eu era uma convidada de Frank para os caçadores que prontamente nos deixaram entrar escuridão a dentro onde a única iluminação eram apenas luzes coloridas que piscavam rapidamente. Se antes eu estava impressionada agora eu estava chocada e vislumbrada.

O meu coração batia agora no ritmo da ensurdecedora música me deixando inquieta enquanto Camy já dança desajeitada na pista de dança enquanto arrastava Donna com ela o que fazia um sorriso surgir no meu rosto. Frank me levou para o bar onde um caçador misturava as bebidas na caixa d’água e se sentou em um banco alto deixando suas muletas apoiadas na parede. Nos foi servida uma bebida doce que eu logo repeti sorridente enquanto conversava aos berros com minha amiga que me aconselhou a ir aproveitar a festa uma vez que ela não poderia se mover muito logo depois de pinta um risco branco no meu rosto. Logo depois Donna se sentou ao lado dela numa cena no mínimo cômica uma vez que ela estava destruída e exausta por dançar com Camy que a essa altura já tinha diversos riscos no rosto, mas minhas gargalhadas não duraram muito uma vez eu fui a próxima que Camy tirou para dançar dando vez para a perneta e a namorada rirem de mim.

...___________...

O escuro ainda reinava sob os céus quando nós saímos, mas infelizmente meu bom-senso já não reinava sobre mim devido a minha tamanha embriaguez. No final das contas a bebida doce que eu tanto tinha gostado era um licor feito de uma fruta muito doce do Acampamento. Agora eu estou agarrada às costas de Frank num estado semivegetativo enquanto ela me carregava e conversava com Camy e Donna.

― Nossa, será que ela vai ficar bem? ― perguntava Camy preocupada me fazendo rir com seu rosto parecendo mais um arco-íris.

― Não sei! Talvez alguém não deveria ter levada uma menina que nunca bebeu na vida pro campeonato de empilhar copo de licor! ― Donna um pouco suja de tinta repreendeu Camy raivosa.

― Mas ela ganhou! Olha, como é bonita essa jaqueta! Tem até o nome dela!

― Não importa! Ela podia ter morrido, sua irresponsável! Ah, não vai começar a chorar!

― Não precisa se preocupar quem imaginaria que ela nunca tinha bebido... ― apaziguou Frank enquanto eu brincava com o cabelo de Donna quentinha pela minha jaqueta nova.

― Mas é claro que eu já bebi! ― respondi aos soluços ― só que era muito raro, mas gostavam de me ver bêbada. Nem me fala! Os ricaços de toda parte do Império pagavam fortunas pra me ver bêbada, mas eram poucos o que conseguiam de fato pagar. Eu era o topo do topo, o produto mais caro de Discórdia!

― Vish, tá delirando. Larga o meu cabelo, Rachel.

― Eu realmente espero que ela esteja... Bem, eu vou com ela pra casa da Angel vocês podem ir pra casa, a gente se vê amanhã.

― Mas vocês vão ficar bem mesmo? ― Camy perguntou preocupada e sofrendo comigo.

― Vamos sim, vão na paz.

Assim nos separamos das namoradas e Frank seguiu o caminho até que pudemos ver a árvore que havia atrás da casa. Ao chegar lá, vimos que a porta da frente estava trancada então eu, que me julgo melhor do que nunca na vida apesar de não conseguir andar em linha reta, tive a ideia de escalar a árvore. Frank quis me parar, mas eu não dei bola e rapidamente subi pelos galhos da árvore. Tensa, Frank falou para eu descer, mas eu estava confiante que com paciência e cuidado eu poderia alcançar a pequena sacada do meu quarto e aos chacoalhões eu me aproximei abraçada a um galho que afinava cada vez mais em direção a sacada. Assim que vi o início da saca eu me joguei e cai lá dentro.

― Você tá bem?

― Tô sim! ― respondi orgulhosa erguendo o meu joinha

― Eu vou pra casa então! Tchau!

― Tchau, razão da minha felicidade! Volta amanhã!

Eu não recebi resposta então depois de uns dez minutos eu decidi me levantar para ir para a cama, mas não havia cama nenhuma para ser encontrada, pois eu não estava no meu quarto, mas sim o quarto ao lado onde uma grande e imponente poltrona me encarava e atrás dela um pequeno escritório cheio de livros, cadernos, canetas e um espelho enorme que revelava que o meu rosto estava tão ridículo quanto de Camy se não estiver pior. Logo percebi que estava trancada lá dentro então eu decidi dormir na poltrona. Assim que me apoiei sobre ela percebi que meu dedo entrou em um buraco no meio do encosto, mas não liguei porque o que realmente me incomodou foi algo duro sobre qual eu sentei.

― O que é isso? Ai, meu Deus! ― Eu rapidamente estalei os olhos assustada com o que vi em minhas mãos.

Eu segurava um pequeno caderno cuja capa dura dizia em letras bastão azuis feitas à caneta: Investigação do caso Dakota Wagen. Então logo o escondi em minhas roupas quando ouvi:

― Rachel, o que você está fazendo aí?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Crônicas das terras arrasadas: O sentimento algoz" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.