Por sua causa escrita por Elie


Capítulo 19
Vera


Notas iniciais do capítulo

Preciso dar um tempo em tudo.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/701207/chapter/19

Depois que Beatriz me ajudou e indicou o Dr. Val, tudo parecia estar melhorando. Talvez eu precisasse mesmo de um ano sabático e minha péssima nota do vestibular tenha sido um artifício do destino. Sorte minha ter amigos que se preocuparam comigo. Sorte minha não ser tão solitária quanto meu amigo Marcelo era.

O conheci na aula de desenho. Era uma matéria optativa e poucos estudantes escolhiam aquela aula porque era à tarde. Nós dois éramos péssimos. Tudo o que eu desenhava eram pessoas com cabeças que pareciam peras. Marcelo só imitava os desenhos que assistia na televisão. Acho que o fato de nós dois sabermos que não tínhamos nenhum talento para o desenho foi o que nos aproximou.

— Só continuo nessa aula por sua causa — ele me disse.

Sorri e, sem jeito, continuei molhando minhas aquarelas escolares com meu pincel barato. Aquilo que o ouvi dizer me fez pensar nele por uma semana inteira. Marcelo era um garoto baixinho e esquisito com cabelos bagunçados. O que as pessoas diriam se eu admitisse que estava gostando dele? Provavelmente sofreria bullying até a próxima encarnação. E talvez por três encarnações posteriores. As coisas funcionavam assim no colégio, ainda funcionam, mas hoje eu não me importo com esses fatos.

Para falar a verdade, ando me importando com poucas coisas ultimamente. Acho que por um tempo nem penteei o cabelo direito. Ficava horas no banheiro ouvindo música sem ninguém para me azucrinar. Quando Bia ficou lá me esperando e insistiu que permaneceria ali por quanto tempo fosse necessário, isso fez com que eu me importasse um pouco mais. Quando ela me chamou para ir para o parque enquanto eu estava dormindo por vinte horas seguidas, isso me despertou. Serei grata a ela por toda a minha vida.

Mas se for para dizer uma coisa que tira meu sono, escolho a foto de Phan Thị Kim Phúc. Lembro quando Marcelo a mostrou para mim pela primeira vez e pensei que era só mais uma foto triste, sem enxergar direito. Depois que ele se foi, fiquei um pouco obcecada pela história da mulher, assim como ele. A bomba química que jogaram naquele vilarejo matou dois primos dela e outros dois moradores. Phan Thi Kim Phúc era sobrevivente naquele mar de desastre. Talvez eu fosse um pouco como ela, pelo menos é o que eu desejava.

— Eu me sinto um pouco assim — Marcelo falou um pouco antes de tirar a própria vida.

Dei um sorriso sem graça e me afastei dele. Fiquei com medo, admito. Até hoje não sei o que faria se eu pudesse voltar no tempo. Dr. Val disse que não podemos nos cobrar por coisas que já passaram. Ao invés disso, precisamos buscar formas de melhorar constantemente no presente.

Repetia mentalmente as palavras do meu psiquiatra nos piores momentos. Estava melhorando, mas ainda havia resquícios de dor. Fui para o interior no dia meu aniversário para relaxar. Nunca mais falei sobre aquela história da foto com ninguém, mas naquele dia eu tive vontade de mostrar a imagem para minha avó, uma senhora com mais de setenta anos e milhares de histórias para contar. Quando ela viu a menina nua em desespero, apertou os lábios.

— Que horror! — ela reagiu.

— Mas hoje ela é uma sobrevivente, vó. Hoje ela é um milagre — lembrei.

Minha vó sorriu e continuou olhando com uma expressão triste para as outras crianças ao lado de Phan Thi Kim Phúc. Ela passou seu dedo indicador por cada uma delas e me parece que prestou mais atenção em uma menininha que segurava um menino menor pela mão.

— Tem outras crianças aqui — disse isso como se não fosse óbvio.

— Sim, vovó. Todas elas estão sofrendo.

— Espero que tenham sobrevivido também. Quero que todas elas sejam milagres também.

— Eu também, vó.

Abracei-a e fui lavar os pratos do almoço. Conversamos um pouco e me ofereci para ajudá-la no que fosse necessário. Acho que estava se sentindo solitária desde que meu avô morreu.

— Posso ficar contigo esse ano em que vou fazer cursinho — sugeri.

Isso a fez dar um grande sorriso que indicava não só sua permissão, mas que tinha adorado a ideia. Eu tiraria um tempo para mim e, de sobra, ficaria mais tempo com ela. Meus pais não seriam capazes de negar um pedido assim, sabendo que nós duas precisávamos uma da outra. Quando eles chegaram para me buscar, fiquei olhando minha avó acenando na porta de sua casa pelo espelho retrovisor. Naquele momento eu desejei ser igual a ela.

O resto da viagem foi tranquila. Meus pais conversaram sobre coisas do trabalho e notícias que tinham ouvido em algum lugar. Acho que dormi em mais da metade da viagem. De vez em quando acho que os ouvi cochichando coisas, mas ignorei. Cheguei em casa bem cansada e desejando minha cama. Liguei as luzes do quintal a pedido de meu pai.

— Surpresa!

Todos os meus amigos estavam ali. Não sei se sorri quando todos pularam de onde estavam, cheios de balões e cartazes. Claro que eu estava grata, mas minha cabeça estava em outro lugar. Quando me lembrei que todos estavam olhando para mim, tentei sorrir. Calculei quando tempo levaria para que tudo terminasse. Cumprimentei a todos e fui andando pela festa para agradecer um por um pela consideração. 

Praticamente todas as pessoas da sala estavam ali, até as pessoas que não iam às festas. Percebi que Bruna e Tiago estavam discutindo no canto da festa.

— Você está acabando com a nossa noite! Nunca te dei motivos para isso! — ele estava quase gritando.

— Não deu motivos? Você está tirando com a minha cara? Pensa que eu não reparo no que você fala? Não se faça de bobo!

— Quer saber? Estou cansado! Estou cansado de você! É isso. Pronto!

— Você está fazendo o que acho que está fazendo?

— É isso mesmo! Até nunca mais! — ele saiu dali e foi na outra direção.

Acho que foi se despedir de seus amigos para ir embora. Metade das pessoas estavam prestando atenção neles. Aquela cena era tudo que eu queria fugir. Não precisava de estresse no dia do meu aniversário. Talvez eu correria atrás dele e pediria para pensar melhor se fosse há uns meses atrás, mas eu estava cansada. Bruna sobreviveria, de qualquer modo.

Janaína estava diferente, estava mais bonita. E não falo por causa da roupa preta meio parecida com Sandy no final de Footloose. Ela estava mais bonita porque estava feliz, tinha uma luz própria que a iluminava mais do que de costume. Estava dando gargalhadas das besteiras que Silas adorava falar. Acredito que a amizade dele estava fazendo bem para ela. Bia e Felipe finalmente tinham se acertado e também estavam bem felizes. Ele estava dançando muito mal, o que a fez dar gargalhadas altas. Aquilo me deixou um pouco mais animada quando, sem que eu previsse, Renan me puxou pelo braço e me levou para a frente de casa, onde ninguém podia nos ver, sem falar uma palavra até chegarmos lá.

— Preciso falar com você — quase que eu não entendi essas palavras direito, pois Renan falou baixinho.

— Pode falar.

— Já te desejei feliz aniversário mil vezes hoje, não foi?

— Mais uma vez? — brinquei.

— Não. Vim falar outra coisa. Uma pessoa incrível que me inspirou — acho que ele tentou estalar alguns dedos e aquilo estava me dando nos nervos. — Bem... Eu vim falar que eu gosto de você e queria te chamar para sair qualquer dia desses.

Levei um susto e acho que dei um passo curto para trás. Já haviam me dito que Renan gostava de mim, mas não esperei que ele dissesse aquilo naquele momento.

— Sei que você pode se afastar por eu ter falado isso, mas eu queria que isso ficasse claro. Você é doce, se importa com as pessoas e eu não quero ficar longe de você depois do colégio. Pelo contrário, quero te ver todo dia.

Expirei quase todo ar em meus pulmões de uma vez só. Como eu reagiria àquilo? Pensei um pouco, levei minha mão até o rosto dele e falei.

— Eu também gosto de você, mas como amigo — isso o fez ficar sem jeito. Tirei minha mão de seu rosto e continuei. — De verdade. Amo você, a Jana e o Felipe demais, mas esse ano não tem sido fácil para mim. Minhas notas não foram boas e acho que meu estresse atingiu um nível nada saudável.

— Sinto muito. É que... — ele tentou, mas eu o interrompi.

— Preciso dar um tempo em tudo. Assim que o colégio acabar vou morar com a minha avó por uns meses. Preciso renovar minhas energias. Minha prioridade será estudar muito e passar no vestibular ano que vem.

— Entendo. Sei que seu sonho é ser pediatra...

— Isso mesmo. Adoraria se entendesse isso e me visitasse de vez em quando. Agora preciso de paz — sorri.

Pelo jeito carinhoso como ele me olhou, acho que entendeu minha resposta.

— Claro que entendo — Renan deu um beijo em minha bochecha e retornou à festa.

Quando ele saiu, permaneci na mesma posição, olhando para o nada, por algum tempo. Pensei em tudo que havia passado até chegar ali. Já estava na hora do colégio acabar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Let me photograph you in this light
In case it is the last time
That we might be exactly like we were

https://www.youtube.com/watch?v=DDWKuo3gXMQ



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Por sua causa" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.