Por sua causa escrita por Elie


Capítulo 17
Tainá


Notas iniciais do capítulo

Como as pessoas do futuro saberão?



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— Está vendo? Tudo se resolveu. Eu sabia que seria só uma questão de tempo — falei.

— Verdade. Não dá para ficar longe de vocês por muito tempo. E vou tentar não sofrer mais por antecipação. Prometo — Bia disse, mas eu a conheço a tempo suficiente para saber que por mais que ela tentasse, provavelmente falharia na promessa.

Sempre achei que eles dois combinavam. Beatriz tinha um ar independente, era brilhante, uma das meninas mais bonitas do colégio. Todos os garotos queriam ficar com ela, mas minha amiga tinha critérios bem estabelecidos. Se o garoto demonstrasse qualquer sinal de machismo ou imaturidade, já era riscado da lista. E Felipe, assim como ela, era um bom amigo e tinha um QI invejável. Não foram poucas as vezes que ouvi Beatriz se frustrar um pouco ao ver que ele a tinha superado em alguma prova. Penso que Bia tinha certa inveja em vê-lo sempre tranquilo enquanto ela era uma pilha de nervos. Nunca vi um caderno mais organizado que o dela, enquanto Felipe mal levava canetas para a aula. Foi engraçado vê-los se aproximando tanto.

— Sei que foi por pouco tempo, mas eu estava com saudades da gente — Elisa comentou. Ela estava mexendo mais vezes que o necessário no cabelo desde que voltara de São Paulo. Não era meu corte preferido, mas era a cara dela.

Tudo aconteceu tão rápido que eu não pude fazer nada. Estava conversando com Silas num momento e no outro a confusão já tinha sido feita. Elisa sempre foi muito impulsiva, era a espontânea do grupo, apesar de parecer reservada para os demais. Quem conversava com ela por mais de cinco minutos já se maravilhava com seu senso de humor. Diferentemente da maioria das pessoas do colégio, que nunca prestaram muita atenção nela antes da fama, eu sempre soube que Deus havia lhe dado o dom da comunicação. O problema é e vez em quando ela falava as coisas sem pensar. "É preciso arriscar", Elisa dizia toda vez que íamos a sorveteria, quando escolhia os sabores mais diferentes e exóticos, coisa que provavelmente estendia para outros setores de sua vida.

Pobre Silas teve que interromper seu desabafo quando pedi licença para correr atrás da Bia no momento em que quase todo o colégio a chamava de "Lesma". Ouvi Nina e Rafaela conversarem sobre uma mudança súbita de comportamento do amigo, retrucando que ele estava sendo falso desde que Janaína se aproximara dele. "Parece outra pessoa", Nina comentou. "Não somos mais boas o suficiente para o Silas", Rafaela cochichou de um jeito debochado. Fiquei um tanto preocupada e o procurei para sondar se poderia ajudar de alguma forma, mas fui surpreendida com um Silas bem mais tranquilo que o usual. "Elas devem ter exagerado", pensei. Parecia que ele estava mais leve, menos falante, porém tão feliz como antes, talvez até mais feliz. E quando vi Beatriz quase correr diante de mim, ele sorriu empaticamente como se soubesse que eu queria interromper a conversa logo para acudi-la.

— Nem me fale. Você duas me dão muito trabalho — falei de brincadeira, mas todas nós sabíamos que havia uma boa dose de verdade nessas palavras. Eu tinha certeza que o afastamento entre as duas não duraria muito, mas já estava cansada de ficar no meio da rixa.

Beatriz apertou os olhos em tom de brincadeira e me deu um abraço excessivamente apertado.

— Lili? — uma garota loira e baixinha do nono se aproximou da gente. Atrás delas haviam outras três meninas. Ergui uma sobrancelha, meio chocada em ver que aquelas quase desconhecidas se sentiam tão intimas de Elisa. Beatriz não conseguiu conter um suspiro meio irônico.

— Olá, garotas. Precisam de algo? — Elisa perguntou.

Todas elas deram risadinhas de animação e estenderam uma foto de Elisa e CamiVlogs juntas. Era surreal ver o alcance gigantesco que minha amiga tinha conseguido. Um ano atrás eu e Bia éramos as únicas que assistiam todos os vídeos. Nunca deixei de comentar um vídeo sequer desde o início. A verdade é que eles me divertiam mesmo.

— Menina, você pode tirar uma foto nossa? — a garota negra falou quase que colocando o celular na minha mão.

— Claro — respondi.

Enquanto elas se arrumavam em suas posições, Bia ficou meio afastada, dando-lhes espaço para que se organizassem.

— Bia! Vem cá tirar uma foto com a gente! — a outra menina negra chamou.

Sem entender direito o porquê de ter sido chamada, Beatriz enrugou a testa em uma expressão meio cômica e foi até elas. Então as garotas se posicionaram novamente e tirei várias fotos do celular enquanto elas sorriam e faziam outras poses.

Apesar de Bia não entender, eu sabia que ela era a aluna modelo do colégio Milano, aquela por quem todos os garotos se apaixonavam e todas as garotas se inspiravam. E era fácil entender isso ao reparar em seus cachos loiro-escuros perfeitamente alinhados combinando com o boletim também quase perfeito. Não bastasse isso, nos jogos internos, todos a queriam em seus times, pois sabiam que ela era a garota que corria mais rápido. Quando tinha festas, as quais eu nunca participava, sempre ficava sabendo no dia seguinte que algum cara muito bonito ou que já estava na faculdade tinha grudado nela. Apesar de amá-la como uma irmã, algumas vezes eu ficava meio cansada de viver às sombras de uma pessoa assim, mesmo que também estivesse perto nos momentos em que Bia tinha crises de estresse. E agora que Elisa estava se tornando uma "quase-celebridade" e a pessoa mais popular no colégio inteiro, eu era aquela que todos olhavam e se perguntavam o que é que Elisa e Beatriz tinham em comum comigo.

— Terráqueos... — Beatriz ironizou, quando as meninas se afastaram.

— Elas eram fofas — comentei.

— Sou muito grata pelo apoio, mas não vejo a hora das aulas acabarem — Elisa retrucou. 

Fiquei meio triste em ouvi-la dizer isso, pois lembrei que não nos veríamos mais diariamente depois do fim das aulas. E pude ver que a Bia ficou um pouco triste também, mas eu sabia que os motivos dela eram outros, ou melhor, era outro. De longe, as meninas no nono ano saltitavam, mostrando o celular para outras garotas, emocionadas por terem conseguido uma foto como se fossem melhores amigas da Elisa Bit. Poucos minutos depois, vi que as outras meninas vinham em nossa direção, ao perceberem que Elisa dava atenção a todos, provavelmente para pedir por fotos. Elisa suspirou e foi logo em direção às suas seguidoras, antes que elas se aproximassem mais, como que nos poupando daquela situação.

— Cada dia eu fico mais impressionado com a Elisa — era Felipe se aproximando do nosso grupo, assim que Elisa se afastou um pouco para conversar com as suas seguidoras. Ele falou isso e deu um beijo na cabeça de Bia, de um jeito protetor e ao mesmo tempo meio tímido.

— Não consigo me acostumar — Bia murmurou. — Claro que quero que o canal dela cresça cada vez mais, mas é muito estranho ter que dividir minha melhor amiga com o colégio todo.

— Não seja ciumenta — ele respondeu de forma engraçada, fazendo-a dar de ombros.

Ficou um silêncio meio embaraçoso depois desse momento. Nós três sabíamos que eu estava sobrando. Olhei para o meu celular, fingindo que estava lendo alguma mensagem, mas eu não tinha sequer internet disponível. Ergui a cabeça para me alongar, pois já estava com certa dor cervical de tanto olhar para baixo, quando me deparei com Cecília caminhando em nossa direção. Pisquei os olho para saber se não era minha imaginação pregando peças, tendo em vista que Cecília havia se aborrecido por motivo nenhum dias atrás e se afastado, falando grosserias sem sentido.

— Olá, pessoinhas — ela falou com uma simpatia que não lhe era típica. Franzi o cenho em estranheza.

— Olá, Bruxa de Nova Orleans do Norte — Felipe respondeu. Essas piadinhas eram típicas de Ceci.

— Que novidade é esta que não estou sabendo? — Bia também não entendeu.

Como eu estava cansada de levar desaforos por mostrar meu ponto de vista, continuei parada olhando para mensagens antigas do meu celular.

— É brincadeira. Não sou bruxa, foi só uma piada. Pode ficar tranquila que não vou para o inferno por isso, Tainá — Cecília trazia aquele ar meio prepotente de quem tem certeza de toda a ciência do universo. Não sei porque ela se dirigiu a mim quando eu nem havia falado uma sílaba.

Dei de ombros. Eu não estava disposta a discutir com alguém que nunca queria ouvir. Tenho minhas crenças e sou feliz com elas, isso é o bastante. Confio em Deus e sei que ele tem tudo sobre controle.

— Ela falou isso na frente da minha mãe. Acredita? Agora acho que dona Simone não vai querer oferecer carona novamente — ele debochou.

Beatriz deu uma gargalhada meio falsa, transparecendo o ciúme que estava tentando esconder.

— Elisa está cada vez mais estrelinha — Cecília comentou, ao perceber que as meninas do nono ano estavam quase fazendo um inquérito com Elisa, todas com aquele ar de deslumbramento no rosto.

— Nem me fale... — Bia desabafou.

— Mas ela é gente boa — surpreendi-me como o elogio vindo da Cecília, não parecia legítimo.

Segundos depois, Daniel foi em direção à Elisa, fazendo as garotas vibrarem de alegria. Todas as pessoas que assistiram o vídeo que ele havia gravado para o canal dela sabiam que havia algo mais naquela história. Era óbvio que eles tinham um magnetismo extra, mas o que as pessoas não sabiam era que Daniel não conseguia se comprometer com nada além do futebol.

— É uma pena. Ele é um babaca — Cecília foi direta como uma flecha, deixando escapar um ar de desapontamento.

— Desculpa pela franqueza, mas acho que ele está mais interessado na fama — Felipe acrescentou. — Já ouvi Daniel falar que só idiotas perdem tempo com namoros quando se pode ter qualquer uma.

Revirei os olhos. Bia reagiu com uma fácies de dor, provavelmente por preferir não ter escutado aquilo. Cecília não pareceu nada surpresa. E lá a alguns metros de nós, Daniel parecia adorar a atenção das garotas mais novas.

— São só amigos, garanto — Bia falou com muita certeza. — Ele mesmo conseguiu estragar tudo e bem rápido.

— Sério? — Cecília parecia interessada na história. Acho que vi uma pitada de alívio em seu olhar. Mais uma vez, não era típico dela.

— Sério. Pode acreditar em mim. Eu a conheço desde a alfabetização. Se qualquer um falar que eles estão juntos, é mentira.

Elas se conheciam há muito tempo, bem antes de eu entrar no colégio com meu sotaque ligeiramente diferente do norte. Confidenciavam histórias desde antes das maquiagens e dos garotos. Eu ficava no intervalo com a minha irmã, até que foram atraídas pela simpatia de Tereza. Aos poucos fui me tornando aquela pessoa a quem pediam conselhos quando precisavam de uma terceira opinião. Como Elisa tinha duas figuras paternas e a Dra. Emília era bem ausente, acabei me tornando um pouco amiga-mãe.

O sinal tocou e eu ainda fingia que estava olhando para o meu celular, quando na verdade estava perdida em pensamentos e memórias.

— Vamos? — Cecília perguntou. Felipe e Bia já estavam adiantados, quase no corredor.

Fiz que sim com a cabeça. Estava evitando confronto. Parecia que qualquer coisa dita conseguia aborrecê-la.

— Você está muito calada hoje — ela comentou. — Isso não é normal, mas não vou nem reclamar, sei que a professora Amélia te dará mil motivos para debater e tagarelar daqui a pouco.

— Não quero te chatear com coisas da igreja mais uma vez — fui breve.

— Não leve as palavras de uma bruxa tão a sério, querida — ela retrucou com um tom de voz irônico e, em seguida, piscou para mim e seguiu seu caminho sozinha.

Esperei um pouco antes de ir para a sala de aula. Elisa tinha desaparecido e fiquei solitária num piscar de olhos. Andei devagar, adiando um pouco mais conversas evitáveis. Imaginei como seria se Tereza estivesse ali, mais velha. Talvez se tornasse amiga daquelas meninas que assistiam os vídeos de Elisa. Talvez já fosse madura o suficiente para discutir comigo sobre as alterações bruscas no humor da Cecília. Provavelmente seria uma ótima companhia nos momentos em que Felipe e Beatriz falhavam em me incluir na conversa. Senti um aperto no peito ao lembrar que eram só suposições.

A professora Amélia já estava em sala quando cheguei. Pude notar seu estranhamento ao perceber que eu havia sido uma das últimas a voltar do intervalo, pois não era do meu feitio. Ela estava com uma saia vermelha na altura da canela que a deixava parecida com um personagem de "A Noviça Rebelde". Pensei que eu sentiria falta dela na faculdade. Acho que minha vontade de ser professora era mais antiga, mas o exemplo de Amélia foi com certeza um forte catalisador.

— Queridos, fiquei muito orgulhosa de vocês ao ler algumas biografias. Ficaram maravilhosas. Sei que já desconfiavam, mas tudo fora parte de um grande plano secreto para conhecer vocês um pouco melhor — ela riu sozinha da própria piada. — Tenho muito orgulho de ter participado da jornada de vocês. Hoje é o começo do fim. Falarei com algumas pessoas em particular para prestar alguns esclarecimentos sobre as notas e elogiar aqueles que se destacaram. Enquanto falo com as duplas, vou devolver a redação que entregaram na semana passada para que corrijam os erros que encontrei ou reescrevam conforme as sugestões oferecidas.

A professora falou e distribuiu as redações que tínhamos escrito na outra aula. Era para escolher um personagem da literatura que se assemelhasse com a nossa dupla do trabalho e em seguida escrever uma redação sobre nossas razões de ter escolhido aquele personagem. Fiquei feliz ao receber minha redação, pois haviam pouquíssimos erros e eu não teria muito trabalho.

— Rafaela, você será a primeira. Preciso conversar com você — Amélia parecia um pouco consternada.

Rafa foi até ela com alguma preocupação em seu semblante, sentou-se numa cadeira perto do birô da professora e desatou a falar. Minha concentração foi interrompida por algum objeto desconhecido que havia me atingido na nuca. Olhei em volta e pensei comigo se estava imaginando coisas. Pouco tempo depois fui atingida na cabeça novamente. Dessa vez pude ver que realmente era uma bolinha de papel no chão. Olhei em volta e Renan olhou para mim sorrindo. Franzi a testa, sem entender o porquê daquela atitude, mas ele apenas apontou para a carteira de trás. Cecília trazia um sorriso um tanto sorrateiro que a denunciava.

— O que foi? — quase sussurei.

Cecília apontou para o celular. Olhei para o meu celular.


Cecília (10:12) - Que personagem eu sou?
Tainá (10:15) - Não acredito que você está me perguntando isso agora. Estamos em aula.
Cecília (10:17) - Estou curiosa.
Tainá (10:20) - Perséfone. Agora me deixe em paz.
Cecília (10:20) - ADOREI

 

Fiquei tão ocupada tentando melhorar minha caligrafia que só percebi o quão Rafaela estava devastada ao final da aula. Seu rosto estava meio vermelho, devia ter chorado. Estranho saber que a professora Amélia a havia deixado assim.

— Estamos quase terminando o semestre. Poderíamos fazer algo para encerrar o ano com chave de ouro — Amélia sugeriu.

— Tipo uma festa? — Silas perguntou.

— Uma celebração, sim. Aceito ideias.

— Que tal um sarau? — sugeri.

Percebi que algumas pessoas odiaram a ideia e que outras amaram só com o mar de sons ininteligíveis ora felizes ora raivosos.

— Adorei a ideia! Podemos organizar um sarau no último dia de aula. Cada um ficará responsável por trazer um texto ou qualquer tipo de arte. Sei que muitos de vocês têm talentos escondidos. E talvez eu possa considerar a apresentação do sarau como nota extra — não sei se foi impressão minha, mas acho que Amélia piscou para Rafaela nessa hora.

Quando Amélia terminou seu discurso a multidão passou a parecer um pouco mais animada.

— Já sei! — a professora teve uma ideia repentina. — O sarau terá tema. Apresentem algo relacionado à biografia. Podem apresentar um vídeo, como Silas e Janaína, que já está gravado e eu amei. Ou uma poesia. Pode ser uma música, sei que Tiago é um guitarrista excelente. Ou uma redação primorosa ao estilo da Beatriz! Fiquem à vontade. Podem escolher o que já têm em casa. Trarei algumas comidinhas para animá-los.

Nesse momento quase toda a multidão já estava feliz. Pude ouvir Janaína exclamar um "Estou ferrada!". Rafaela parecia um pouco mais reconfortada. "O que é um sarau?", escutei algum menino perguntar. O sinal tocou e algumas pessoas foram conversar com a professora enquanto outras corriam em direção à porta. Senti meu celular vibrar enquanto arrumava minha mochila.

Cecília (11:40) - A propósito, você é Poliana.

Revirei os olhos e sorri. Cecília não tinha jeito.


***

Numa dessas noites em que meus pais saíram para jantar e fiquei sozinha em casa, procurei um livro para ler e encontrei os dois livros que Cecília havia me dado em meio aos meus cadernos. Folheei as páginas com carinho e escolhi o livro de capa amarela intitulado "Que seja!". Cada capítulo trazia uma história interessante com uma moral no final para se preocupar menos com as coisas e viver a vida de uma forma mais leve. Uma parte do livro era especial e prendeu mais minha atenção.

Nós, seres humanos, somos confusos. Somos assim porque a vida é confusa mesmo. Olhem para a natureza e percebam a beleza que existe no caos. Olhem outra vez e agora notem que é justamente essa mistura de caos que faz tudo funcionar. Algumas vezes nem nós nos entendemos, imagina o quão difícil é entender os outros. As coisas ficam leves quando descobrimos que podemos conviver com esse caos. E que podemos encontrar felicidade nele. Podemos desafiá-lo e mostrar a que viemos.

"Que pessoas formidáveis eram os pais de Cecília", pensei, ao terminar de ler o livro.


Tainá (20:12) - Levarei o canguru para o sarau.
Cecília (20:14) - Não. Por favor...
Tainá (20:15) - Ele é meu, não é?
Cecília (20:15) - Sim, ele é. Foi presente.
Cecília (20:18) - Mas negarei se disser que desenhei.
Tainá (20:19) - Se ele é meu mesmo quero falar sobre o desenho. Será no último dia de aula. Não entendo porque tanta preocupação com o que os outros acham de você. Sua arte é incrível.. E você também deveria expor seus desenhos no sarau.
Cecília (20:25) - Obrigada, mas não sei o que pensar sobre isso.


Cecília (03:13) - Talvez, só talvez, você tenha razão.


***

 

O pastor me ligou no meio da manhã umas cinco vezes, mas não vi as ligações, pois sempre deixo meu celular no silencioso durante as aulas. Quando avistei as notificações, liguei para ele assim que pude.

— Pastor? O que houve? — fiquei preocupada.

— Quatro casas desabaram no Sol Nascente, Tainá. Precisamos de toda ajuda possível. Ainda não consegui contactar seus pais. Por favor, avise-os.

Meu coração acelerou, meus olhos encheram de lágrimas, senti minhas mãos suarem. Gelei só de pensar que alguma criança do Sol Nascente tinha se machucado, já havia criado um vínculo muito forte com elas durante as aulas na igreja.

— Está todo mundo bem? — perguntei, trêmula.

— Hum... Algumas pessoas se feriram, mas não houve acidentes fatais. O problema é que eles não têm para onde ir. Perderam tudo. Veremos como ajudaremos. Preciso de toda ajuda possível. Discutiremos mais ideias hoje à noite. Mande o recado para os seus pais. Obrigado.

Quatro famílias ficaram sem casa devido do desabamento. A defesa civil já havia avisado para eles saírem daquele local depois das fortes chuvas dos meses anteriores, mas aquelas famílias não tinham opção. Tentamos contato com a prefeitura, mas ninguém atendeu nossos chamados. Alguns disseram que a área já havia sido evacuada e as pessoas que estavam ali deveriam arcar com sua irresponsabilidade.

Na igreja, nos reunimos em assembleia para organizar melhor os planos. Meus pais eram membros assíduos e percebi que eles lembraram de Tereza ao observar uma menininha solitária no canto da igreja. Os pais daquela menininha estavam no hospital e a esposa do pastor se oferecera para cuidar dela enquanto eles se recuperavam. Minha mãe tem esse olhar toda vez que algo a lembra da minha irmã, como se, por um momento, ela se desse conta de que algo muito importante está faltando.

No meio dos debates e choros de criança, alguém deu a ideia uma arrecadação de fundos enquanto a defensoria não tomava as devidas providências. Saímos da reunião com um pouco mais de esperança, apesar da chuva desanimadora. Meus pais ficaram em silêncio absoluto no caminho de casa. O casamento deles não era o mesmo há muito tempo, apesar de saber que o amor continuava ali em algum lugar entre as lembranças tristes.

Falei com todos os meus conhecidos para que doassem qualquer coisa que pudessem, desde roupa usada a objetos de decoração. Se dependesse de mim, aquela garotinha nem precisaria mais pedir ajuda aos políticos.

Grupo - TERCEIRÃO ZOAÇÃO
Tainá (13:49) - Gente, gostaria de fazer um pedido para vocês. Não sei se souberam, mas houve um desastre na comunidade do Sol Nascente. Quatro casas desabaram e agora temos quatro famílias precisando de ajuda. Eles perderam todos os seus bens e alguns não têm nem para onde ir. O pessoal da minha igreja está tentando ajudar, já que a prefeitura não está nem aí. Faremos um grande leilão domingo que vem. Podemos ajudar de duas formas. A primeira é doando alimentos, roupas, qualquer coisa que possa ser leiloada ou doada para as famílias. A segunda é indo ao leilão e arrematando algum item. Qualquer coisa ajuda!
Vera (14:23) - Eu tenho umas roupas que mal uso e posso doar. Amanhã eu levo.
Bia (14:45) - Eu também! Conte comigo!
Renan (15:32) - Que história triste :( Vou ver o que posso levar.
Elisa (15:34) - Vou divulgar o evento. Amanhã levo algumas coisas também.
Tainá (15:40) - Obrigada, pessoal. Vocês são incríveis ♥
Daniel (15:42) - Posso levar uma bola autografada pelo time.
Tainá (15:47) - Ótima ideia. Conto com vocês!

Consegui encher quatro caixas com o material que arrecadei na escola. Olhei nas redes sociais e cada vez mais pessoas confirmavam presença no leilão. Minha fé nunca me deixou desacreditar que tudo daria certo. Ouvi minha campainha tocar enquanto selava a terceira caixa. Meus pais estavam trabalhando e eu não estava esperando ninguém, então estranhei a visita.

— Quem é? — perguntei.

— Cecília!

Abri a porta e fui surpreendida por Ceci segurando três telas gigantes cobertas por papel de jornal.

— São para o leilão — ela explicou.

Não contive minha felicidade. Não sei se estava mais feliz pela preocupação com a comunidade ou pelo fato de que Cecília estava expondo suas telas para isso. Um imenso orgulho tomou conta de mim. Dei um abraço tão apertado que a sufoquei um pouco, desses que eu tinha certeza que a deixavam desconfortável. Eram meus preferidos.

Convidei-a para entrar e desembrulhei os quadros com cuidado. O primeiro quadro era uma versão mais colorida da comunidade Sol Nascente, como se fosse uma versão menos triste de um bairro em que crianças ainda precisavam trabalhar. O segundo quadro era uma pintura de um gato branco em cima de um muro, à luz do luar. Imaginei o gato miando numa madrugada fria. O terceiro quadro trazia a imagem de uma cidade conhecida que eu estava com dificuldades de identificar.

— É o meu preferido. Quase que eu ficava com esse para mim — Ceci falou.

Passei meus dedos pelas linhas de tinta em alto-relevo, tentando lembrar que lugar era aquele. A dúvida ficou evidente em meu rosto. O quadro trazia tons de vermelho, branco e amarelo nos prédios e azul com roxo no céu. Alguns homens de branco tocavam instrumentos de jazz em roupas brancas.

— Nova Orleans! — quase gritei quando consegui me lembrar.

Cecília deu uma risada de satisfação ao saber que eu havia entendido a referência. Então eu, que estava sentada no chão, levantei-me e olhei para aqueles três quadros com uma expressão que quem não está satisfeito.

— O que é? — ela questionou, visivelmente ansiosa com minha reação. — Não diga que você não gostou da referência. Você sabe que não sou bruxa e não existe nenhuma sociedade bruxa de Nova Orleans do Norte. É só uma brincadeira. Eu nem acredito em bruxas.

Dei uma risada sarcástica e fui lá dentro pegar uma caneta preta acrílica que minha mãe usava para colocar nomes nos potes. Coloquei a mão para trás para que Cecília não visse a caneta.

— Eu sei que você não é bruxa, Ceci — falei com veemência. — E adorei as três pinturas, mas está faltando uma coisa muito importante nestes quadros.

Quase ri quando obtive uma reação nada modesta, como se Cecília perguntasse com os olhos o que é que eu sabia para dizer que algo faltava em suas pinturas. Então eu estendi a caneta para que ela a segurasse. Percebi que ela ficou imóvel e um pouco boquiaberta, demorando cerca de cinco segundos para pegar a caneta da minha mão.

— Sim. Está faltando sua assinatura — expliquei. — Como as pessoas do futuro saberão que esses três quadros são peças originais de Cecília Monteiro?

Após mais cinco segundos parada com aquela expressão de quem não sabe o que responder, Ceci abriu a tampa da caneta, respirou fundo e assinou cada uma das telas. Quando ela terminou, me aproximei da assinatura do quadro "Nova Orleans do Norte" e vi que lá estava escrito Ceci Monteiro em tinta fresca. Olhei para ela sorrindo de satisfação.

— Sim — ela confirmou. — Escolhi assinar Ceci por sua causa.

Era como eu gostava de chamá-la.


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Notas finais do capítulo

In our darkest hour
In my deepest despair
Will you still care?
Will you be there?
https://youtu.be/jQY_QL_wvQU



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