Registro Panorâmico escrita por Titi


Capítulo 31
"Quebrada"


Notas iniciais do capítulo

Bom dia...



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Chegando à casa do Jamal, a primeira coisa que ele me disse para fazer foi tirar o paletó antes que eu morresse:

—Sinceramente, Brom? Não sei o que deu na tua mãe dessa vez.

—Eu também não sei... Ela deve ter ficado muito ansiosa com a minha aparência por eu ter vindo dar estudo pra você... –pendurei a roupa na cadeira em que eu estava sentado.

A Quésia parecia tímida de estar na casa dele. Eles não têm muita intimidade... Mas o Dreas é muito legal! Ela vai gostar dele! Só espero que não goste demais...

—Essa é a casa? Hm... –Conrad entrou analisando. –Não é tão feia assim pra quem mora na favela.

—Salamander... Poderia vir comigo, bem rapidinho? –Jamal me chamou sem me puxar, porque provavelmente ele iria atropelar meu pé com a cadeira de rodas e eu não iria sentir... Isso já aconteceu algumas vezes. Na cozinha, ele finalmente continuou a falar. –O que aquele garoto está fazendo aqui?!

—Ele veio estudar...

—Brom, você PRECISA dizer quando vai trazer alguém aqui, está me entendendo? Ainda mais quando é alguém como ele...

—Não entendi... “Como ele”? O que tem contra ele?

—“Contra” eu não tenho nada, mas não é um dia muito bom pra ele ficar aqui... Além do mais, nem parece gostar de nós.

—Mas é pra estudar...

—Eu sei, eu sei, é por um bem maior e tudo mais... Só que você precisa me avisar sobre coisas assim, tá bem?! Desfaz essa carinha de cachorro que caiu da mudança.

—Tá bem... Desculpe...

—Relaxe.

—Rapazes... Aconteceu alguma coisa? –Quésia apareceu preocupada na cozinha.

—Não, é que o Brom não me avisou que iria trazer mais alguém além de você. –Dreas respondeu.

—Ahm... Sei. –me deixava mal vê-la tão tímida assim. Será que ela não gosta do Jamal?

—Quer um copo d’água? –ele ofereceu.

—Tem algum tipo de chá mate? –Qué fez cara de desconfiada.

—Não, lamento...

—Então não, obrigada. –ela se retirou.

—Viciada em cafeína. –comentei.

—Eu posso parar quando eu quiser! –retrucou lá da sala.

Começamos a estudar e o Conrad, ao contrário da Quésia, que não parava de fazer perguntas, não se mostrava nem um pouco interessado, ficou mexendo nos objetos que estavam em cima da mesinha da sala de estar.

—O que é essa coisa? –ele balançou uma revista em quadrinhos na frente do rosto do dono da casa.

—É da minha coleção de HQs! Não toca! Não chega perto! Não divida a mesma atmosfera que ela! Minha preciosa! –Jamal pegou das mãos do garoto como se fosse um personagem de um filme que ele tinha me contado outra vez. Ah... Sei lá o nome. Só lembro que é famoso.

—Então... Vocês já vão pro segundo estudo, certo? –Qué perguntou. –Eu queria poder acompanhar desde o começo... Eu achei interessante essa “revisão” sobre a veracidade da... Da...

—Bíblia. –completei.

—Isso... Bíblia. Eu queria conhecer mais o que vocês pensam sobre isso.

—Ótimo! –eu e Dreas dissemos. Nós dois estávamos muito entusiasmados com aquilo. Mesmo ele não sendo nem batizado ainda, sempre procura aprender mais e fica feliz por pessoas que procuram entender antes de sair criticando.

—Jamal, cadê a tua irmã mais velha? –Conrad mudou de assunto.

—Ah! Eu tinha me esquecido dela! Vou chamá-la pra ver se quer ouvir também.

Fatos psíquicos da Quésia

Andreas foi com a cadeira de rodas até um quarto, todos nós fomos juntos. Quando abriu a porta, nos deparamos com uma garota bem alta, mas muito alta mesmo! Negra, mas nem tanto quanto seu irmão, com um cabelo enorme dançando funk. Ela estava com um short extremamente curto e tinha um piercing no umbigo. Ela tinha um corpo... Ah, ela tinha um corpão. Pronto, falei logo de uma vez. Me senti uma tábua perto dela. A música vinha de um rádio ligado. Quando ela nos viu, deu um sorriso. Ela tinha lábios carnudos. Era linda, muito linda! Só as roupas muito coloridas que eu achei um pouquinho exageradas. Para ser honesta, não parecia tanto ser irmã do nerdzinho. Sem querer criticar o garoto, ele é muito legal pelo que eu sei e vi... Espero que ela não seja muito diferente dele nesse aspecto.

O ruivo não parava de secar a garota, babando, já o Hebrom, ficava olhando pra mim com cara de bobo. Ele realmente não é normal. Todo mundo preferiria olhar a outra garota ao invés de seja lá o que fosse naquele momento. E dessa vez o “todo mundo” me incluía.

—Chantal, eu já te pedi pra não ficar ouvindo essas coisas... –Jamal fez um esforço pra desligar o rádio.

—Ah, maninho, você sempre fica grilado por pouca coisa. Nem tava dando pra ouvir da sala... Você tem ouvido de tuberculoso.

—Enfim... Quer estudar a Bíblia com a gente?

—Tá, pode ser. Vai ser maneiro.

Depois de alguns momentos em que o Conrad ficou dando em cima da irmã do anfitrião, que alternava em conversar no celular e prestar atenção no que era dito, eu resolvi perguntar algo que me veio à mente na hora:

—Tem uma coisa que eu não entendo... Se Deus é tão poderoso pra poder fazer com que tudo fique bem... Por que Ele não fez isso?

—Essa é pergunta pra outro estudo... Mas eu fico com um enorme prazer de te responder. Deus poderia ter... Como o Wendel costuma dizer, dado um “Control, Alt, Del” em tudo e mudado as memórias de todos os habitantes do Céu, mas Ele não queria fazer aquilo... Se fizesse, os seres vivos não saberiam o perigo que envolve o pecado. E... Seja sincera... Você gostaria de esquecer uma coisa sem ter o direito de escolher? –Salamander respondeu sorridente.

—Ah, claro que não...

—Ele te ama. Por isso não te força a fazer nada. Cada um pratica o que quiser, mas vai ter que conviver com as consequências depois...

—Se Ele amasse mesmo não deixaria o mundo do jeito que está. –Conrad comentou algo que envolvia a causa de estarmos ali, enfim. Ao menos ele participou em algum aspecto.

—Pois bem, tudo que está acontecendo é culpa do ser humano que desobedeceu no jardim do... –Dreas estava respondendo.

—Desobedeceu? E eu?  O que tenho a ver com isso? O que eu fiz pra merecer essa desgraça toda nessa porcaria de planeta? Até parece que essa historinha é real!... –achei que o sardento iria se exaltar e rodar a baiana ali mesmo.

—E o que foi mesmo que você fez pra merecer a graça e a chance de salvação? Até onde eu saiba, fez um grande nada! Você não merece nenhuma dessas coisas. Deus não vai forçar ninguém a ir pro Céu também... E outra, se você quiser parar por aqui e acreditar no “BOOM!” que constrói coisas é escolha tua. Nós não estamos aqui pra te forçar a ter nossa religião, só estamos apresentando fatos. Você pode concordar ou não. Escarnecer não cabe como alternativa inteligente. –Jamal parecia ter ficado ofendido.

—Ai, ai... A teoria do Big Bang... Na minha época, explosões EXPLODIAM as coisas... –sua irmã deu os ombros fazendo biquinho enquanto mexia no celular. –Só porque o ruivo é bonitinho se acha o dono da razão.

—Chantal, não implica. Cada um acredita no que der na telha e temos que respeitar.

—Beleza. As asneiras prosseguem e temos que engolir calados?... Discordo muito disso.

—Eu respeito essa tua maneira de pensar.

—Jam, esse respeito todo vai acabar te deixando mongol. Eu tenho o direito de me opor.

—Você quem sabe...

—CHANTILLI! –tinha alguém gritando lá fora.

—Ai, não to crendo... Já mandei você parar de me chamar por esse apelido ridículo, cara! –a funkeira gritou de volta pela janela. Realmente era um apelido bem idiota pra alguém daquela cor...

—Preciso que você mim diga uma coisa! Pra mim poder saber o que fazer!

—Espero que seja importante pra você assassinar a língua portuguesa de um jeito tão desgraçado. –ela guardou o celular dentro da blusa e foi até lá fora.

O primeiro a ir até a janela ver o barraco foi o Conrad, que obviamente, queria alguma coisa com a garota. Aparentemente, o que a chamou era seu namorado... Ou ex-namorado... Não dava pra saber.

—Eu nunca vou voltar, tá ligado?! Você é um saco, cara, te enxerga! Dá licença que eu tenho mais o que fazer! –ela deu berros no meio da rua e o ruivo foi até lá fora.

É, pelo visto, era ex. Não sei como um cara daqueles conseguiu uma DAQUELAS. E eu também não sei como ele conseguiu ser tão otário ao ponto de perdê-la.

—Então... Tá solteira? –Conrad perguntou pra garota.

—Há, você é tão inteligente que só perceber isso agora?

—Eu posso dar um jeito nisso.

—Uma gracinha, você. Mas dá um tempo, vai? Eu quero me divertir. –entrou em casa, pegou uma bolsa e desceu o morro.

Eu não sei nem o que dizer sobre. Salamader foi o único que não se mobilizou pra ver o quadro esdrúxulo.

—Detesto quando ela sai assim... Só vai voltar de madrugada. –Jamal tornou para o meio da sala, reclamando.

Eu fico pensando em como o Andreas sobrevive com uma irmã assim... Não quero fazer pouco caso das capacidades que ele tem, mas, tipo, ele é deficiente, tem asma, é bem magrinho, usa óculos fundo de garrafa... Sei lá se ele sofre bullying na escola... Espero que não. Ele parece mesmo ser boa pessoa. Acho que na casa dele já aprendeu a se virar. Não me parece que ele tem pais.

Quando a garota deu no pé, Conrad se mostrou ainda mais entediado e disposto a atrapalhar o nosso estudo. Chega a ser pior que Edgar. Mas... Tirando esse pequeno incômodo... Ter ido àquele estudo me fez conhecer um pouco mais da maneira que eles veem as coisas. Falar mal de um livro sem tê-lo lido... O livro mais vendido do mundo, traduzido em tantas línguas... Eu devia pelo menos conhecer pra dizer o que penso. Eu estava com o plano de acreditar naquelas coisas, só que... É difícil, nunca tive fé em nada. Não dá para começar assim, de uma hora pra outra. Também, se eles saírem dizendo tudo o que acreditam de uma vez (que não deve ser pouca coisa), eu acabaria me assustando.

—E-Eu... Eu vi que você ficou interessada! –Hebrom virou pra mim, sorrindo e eu assenti com a cabeça. –Quero que você fique com isso daqui... –me entregou a revista que estava usando como guia pra estudar.

—Não posso aceitar.

—Pode! Pode tanto que até vai. –Andreas falou.

—Eh, é um presente! Nós temos outras. Falando em presente... Eu deixei o outro no carro do meu pai. Vou ligar pra ele vir nos buscar. –pegou o celular.

—Já? Ah... –lamentei. Até que foi bom passar aquele tempo com eles. Ainda mais pra quem costuma ficar às tardes deitada na cama, olhando para o teto.

—Como assim “Já”? Demorou uma eternidade... –Conrad reclamou.


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Notas finais do capítulo

Tempo psicológico.



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