O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 34
Revolucionário de Sala de Aula


Notas iniciais do capítulo

Olá,

Aproveitando que estou de férias do trabalho, irei postar alguns caps na quarta e depois no sábado, se puder. Acredito que semana que vem o mesmo irá acontecer.

E finalmente, os "camaradas" do Lenin darão as caras. Um deles é uma figura historicamente famosa... Vamos ver quem vai perceber.

Boa leitura!



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            Holmes levantou-se cedo naquela manhã. Dias tinham se passado desde sua chegada à Rússia e os “camaradas” de Lenin ainda não tinham entrado em contato, como o intelectual havia prometido. O curioso é que o detetive sentiu sinceridade nas palavras dele. Talvez, seu julgamento estivesse nebuloso nos últimos tempos, seja pela falta de prática, ou pelas escassas pistas que se mostravam diante de si. Tudo que Holmes tinha de potenciais pistas era o nome de um comunista com quem Esther entrara em contato na Rússia, ou o esconderijo dela, que poderia ser fornecido pela Agência em troca de um serviço sujo, do qual o detetive não estava disposto em sujar suas mãos para fazê-lo. A próxima apresentação na Companhia aconteceria no fim de semana, de modo que os ensaios seriam menos intensos. Seria esta uma hora perfeita para encontrar Sokolov e iniciar sua busca por Esther.

            Em sua cama, estava Grigori, dormindo profundamente a ponto de roncar alto. Holmes suspirou pesadamente. O menino não tinha tal comportamento assim. Decerto, ele ainda estava sob o efeito do álcool em seu sangue. Só esperava que ele acordasse disposto a andanças por São Petersburgo.

            Adler também estava em estado semelhante. Holmes sabia que uma das desvantagens de dormir ao lado de alguém acontecia em momentos de discussão. Quando discutia com Esther durante o dia e horas depois compartilhava do mesmo leito, Holmes sentia falta de sua cama de solteiro e sua vida simples e descompromissada. Situação semelhante acontecia ali.

            Pairando sobre os dois dorminhocos, Holmes teve vontade de rir. Quem os observasse ali, poderia dizer que se tratava de mãe e filho...

            -Vamos lá, dorminhoco. – disse Holmes, puxando o menino pelo pé e arrancando dele um susto de morte.

            -Puxando meu pé desse jeito, pensei que fosse um fantasma, sir. – disse o menino, com os olhos franzidos e cabelo desarrumado.

            -Isso é crendice. Fantasmas não existem, e se existissem, não perderiam seu tempo puxando pé alheio. Ande logo, vá tomar um banho.

            Enquanto ouvia Grigori se banhando na banheira, Holmes pensou em acordar Irene Adler. No entanto, ao vê-la dormindo tão profundamente, ele desistiu, decidindo escrever um breve bilhete.


Fui dar uma volta. Não espere por mim para almoçar.


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            Estava nevando forte naquela manhã, aponto de Holmes notar o vidro de seu relógio de bolso embaçado pelo frio. Era quase oito da manhã, enquanto Holmes andava pela agitada cidade de São Petersburgo. Havia vendedores ambulantes, jornaleiros e assalariados de todo o tipo. A cidade lembrava Londres um pouco, com a pobreza mais extrema. Mendigos e pivetes eram vistos em quase todos os lugares, diferente da cidade londrina, onde havia uma parte “disfarçada” e “pulverizada” das devassidões do submundo. Ali em São Petersburgo, ricos e pobres dividiam o mesmo espaço, ignorando a presença uns dos outros.

            -Pensei que jamais sairia de seu quarto de hotel, Mr. Holmes.

            Ao ouvir tais palavras, ditas atrás de si, Holmes parou instantaneamente. Não estava gostando nada de ter sua identidade descoberta a cada dia por uma pessoa diferente. E essa nova pessoa, aos seus olhos, era um russo.

            Era de altura comum, mas tinha o porte robusto. Holmes notou imediatamente que trazia pelo menos duas deficiências físicas: uma, na perna, e outra, no braço, um mais curto que o outro. Apesar das deficiências, o sujeito tinha um porte militar, o que era peculiar, pois assim como todas as Nações, o serviço militar era dispensado aos deficientes físicos. Suas feições eram firmes, seu olhar bastante duro, daqueles que não gostavam de ser desafiados. Ainda usava um bigode, apesar de quase oculto pela barba por fazer bastante cheia.

            -Sherlock Holmes, eu presumo? Não é assim que vocês, ingleses, se referem a estranhos? – disse o homem, em um inglês sofrível. De longe, o pior inglês que Sherlock Holmes já escutara em sua vida.

            -Quem deseja? – pediu Holmes.

            -Pode chamar-me de Koba, é o que basta saber. – disse, cruzando os braços. – Você provavelmente esteve esperando por mim, então não preciso identificar a quem estou representando.

            Holmes ficou aliviado. Finalmente, um dos “camaradas” de Lenin apareceu.

            -De fato, não. É dispensável.

            -Já estou ciente de quem deseja ver. Acompanhe-me. Faremos agora uma boa caminhada. Espero que esteja com disposição.

            Apesar de ser deficiente, Koba andava com rapidez, notou Holmes. Andando pelas ruas abarrotadas de neve, o detetive acompanhou o curioso “camarada” de Lenin pelas ruas de São Petersburgo. Passaram por alguns prédios luxuosos, decerto pertencentes ao Governo, até entrarem em uma rua bastante movimentada, que levava a um prédio austero.

            -Esta é a Universidade de São Petersburgo. A pessoa que espera está nos jardins. Se o ver rodeado de... Jovens, por favor, aguarde para aborda-lo.

            -Você não vem? – perguntou Holmes, ao notar que Koba simplesmente se sentou em um banco. O detetive recebeu apenas um semblante emburrado como resposta. Sabendo que nada mais saberia a respeito, ele decidiu seguir pelo caminho avisado pelo tal Koba.

            E de fato, ele encontrou um único homem rodeado de jovens. Alunos.

            Lenin já havia avisado que Lev Sokolov era um professor de Química. Mas Holmes não poderia imagina-lo como professor universitário. E provavelmente, dos bons. Uma das coisas que ele aprendeu em Montpellier é que um bom professor se distingue dos demais quando alunos o cercam para saber mais da matéria, ou mesmo para conversar livremente – o que era o caso de Lev.

            Lev era um sujeito em seus quarenta anos. Usava óculos, tinha o cabelo negro vigorosamente penteado e um bigode ralo. Tinha um olhar paciente e calmo, enquanto explicava sobre compostos de cobre. Alguns até anotavam, para pasmo de Holmes. Decerto, ele tinha uma retórica e tanto.

            Quando o professor Sokolov finalmente ficou sozinho, ele se sentou a um banco. Retirou uma fruta da bolsa. Neste momento, o detetive achou estranheza, ao vê-lo cheirar e cheirar a fruta, e mesmo esfrega-la, antes de finalmente dar a primeira mordida, ainda que desconfiada. Do que ele estava com medo, afinal?

            Aproveitando-se da deixa, Holmes sentou-se apressadamente ao lado de Sokolov, que ficou surpreso com sua chegada, mas voltou a si.

            -Aposto que Lenin incumbiu Koba da tarefa de te comunicar, não é? – disse o professor, em um inglês bastante adequado. Ótimo. Ele já esperava por minha presença.

            -Provavelmente, pois foi um sujeito com tal codinome que me procurou.

            O professor riu. – Isso justifica o atraso. Koba deveria estar relutante em te ajudar. Ele odeia ingleses. Na verdade, ele odeia qualquer coisa que não seja da Rússia. Ou qualquer coisa circuncisada. – disse Lev, de modo pejorativo ao se referir aos judeus.

            -Eu não sou judeu.

            -Mas sua esposa é. Ou era, de todo modo. – disse, com frieza.

            Holmes se levantou, causando surpresa em Sokolov.

            -Vejo que perdi meu tempo. Você não sabe a localização de minha esposa.

            -Não vou mentir para você. – disse Sokolov, dando mais uma mordida na maçã. – Eu não sei onde ela está. Agora. Mas eu sei onde ela esteve nos últimos meses. Se você é mesmo o detetive brilhante dos livros, deve saber como localizá-la com o que sei.

            -Então, basta dizer, que eu deixarei você e seus “camaradas” em paz.

            Sokolov riu.

            -Uma localização foi uma figura de linguagem. Eu tenho nomes.

            -Nomes? E como vou saber se está dizendo a verdade ou não? – questionou Holmes, cruzando os braços. Sokolov trazia um sorriso presunçoso.

            -Daniel Jenkins. Isto te soa familiar?

            Outra vez, a menção a Jenkins. Sem dúvida, Esther esteve mesmo em seu percalço, Holmes precisava dar o braço a torcer.

            -Nem precisa responder. Sua ojeriza em ouvir esse nome está estampada em seu rosto. Eu vi a mesma ojeriza em sua esposa. Bom, é isto. O primeiro nome que ela investigou foi Daniel Jenkins. Parece que ela queria fazer algumas perguntas, mas não sei quais. E acho que ela conseguiu, pois ela teve a proeza de arranjar... Uma conversa reservada, se assim posso dizer. Neste ponto, eu parabenizo sua esposa. Uma judia conseguir ficar às sós por dez minutos com o líder da Okhrana e escapar com vida é um feito de uma heroína. Bom, o problema é que eu também quero ter uma conversinha com ele. Portanto, nossos interesses se alinham. Posso contar convosco, como meu... Aliado?

            Lev estendeu sua mão. Ainda resoluto, Holmes pensou em não aperta-la, mas decidiu assinar esta aliança. Era melhor se aliar com um revolucionário de sala de aula que quer encontrar um assassino do que a Agência que quer transformá-lo em um assassino.

            Lev abriu um sorriso.

            -Ótimo. Acompanhe-me. Irei te levar ao jornal que vez ou outra ajudo com artigos. Há um jornalista lá chamado Vlad, que é meu sobrinho, que eu coloquei como encarregado de procurar notícias de Jenkins. Vamos ver se ele achou alguma coisa.

            Holmes acompanhou Lev para fora da Universidade. Ambos tomaram um cabriolé, que saiu das suntuosas ruas daquela região de São Petersburgo em direção a um bairro mais modesto e povoado.

            -Este jornal já deve estar por perto, não? –perguntou Holmes, curioso. As fachadas estavam preenchidas por dizerem em russo, de modo que Holmes era lento em entender seus dizeres.

            -Sim, está. A “Gaveta Moscovita” fica perto da Maternidade de São Petersburgo. Esse é um jornal bem pequeno, Mr. Holmes, e vive sendo atacado pelo governo.

            -A julgar pelas matérias que seus camaradas devem publicar, não é difícil entender.

            -O governo aqui ataca todos que o criticam. – reclamou Lev.

            -Acredite em mim, Mr. Sokolov. Isso não acontece só aqui.

            -Veja, chegamos. – apontou o professor.

            Lev Sokolov não mentira ao dizer que o jornal era pequeno. Na verdade, chamar aquela coisa arcaica e imunda de jornal era um elogio. Havia um forte cheiro de tinta e também um barulho alto a preencher o ambiente, causado pelas arcaicas máquinas de prensa que, na Inglaterra, deveriam ter sido substituídas há uns trinta anos e ainda eram utilizadas na Rússia.

            Lev Sokolov chamou a atenção de um funcionário, que parecia entretido com uma revista masculina nas mãos e ficou irritado ao ter seu divertimento cortado pelo professor intrometido. Trocaram algumas dúzias de palavras, principalmente a respeito do estranho que estava ali, até que finalmente o professor foi autorizado a subir.

            -Vladimir Skolov? – perguntou o professor.

            Ocupado com uma máquina e de costas para a porta, o homem grunhiu qualquer coisa em russo, decerto um palavrão obsceno e impaciente. De repente, ao finalmente virar-se e vê-lo, o semblante do homem se iluminou.

            -Tio! Como vai?

            -Bem, meu caro sobrinho. O mesmo não posso dizer de você. – disse o professor, apontando para o olho roxo do rapaz.

            -Sempre que preciso comparecer ao gabinete da Okhrana, recebo um “carimbo” desses. – disse o rapaz, com normalidade. – E quem é o companheiro?

            Lev pigarreou, pois sabia que Holmes estava longe de ser um camarada.

            -Um amigo meu. Da Inglaterra.

            O rapaz arregalou seus olhos azuis.

            -Não acredito que estou diante de um inglês! – disse, falando em inglês com um  pouco de sotaque. Logo, o russo mostrou-se mais simpático, apertando sua mão. – O que o traz ao meu humilde jornal, Mr. ...?

            -Robinson. – respondeu Holmes, aliviado ao perceber que Vlad sabia falar Inglês.

—Gostaríamos de ter uma conversa convosco em privado, meu sobrinho.

            -Pois queiram me acompanhar à minha sala, senhores.

            Holmes acompanhou Vlad até sua “sala”, que nada mais era que um mero cubículo localizado ao lado das máquinas de prensa, abarrotado de papéis e com uma mesa e apenas uma cadeira. Sem dúvida, era incomum receber visitas ali, e aquela “sala” nada mais era que o local improvisado de Vlad para redigir suas matérias.

            Se na recepção o som das máquinas era insuportável, Holmes percebeu que ali beirava à loucura. Era inacreditável que aquele jovem não tivesse adquirido nenhum problema de audição. Ainda.

            Ao perceber que seria impossível ter uma conversa ali, Vlad berrou algo obsceno em russo a um de seus empregados, e imediatamente a máquina se silenciou.

            -Gostaria de pedi-los para se sentar, mas infelizmente não possuo cadeiras ainda, desde que a Okhrana esteve aqui e... Bem, ainda não me recuperei de sua última “visitinha”...

            -Entendo. – disse Holmes. Sem dúvida, Vlad era mais uma vítima da rigidez do Czar contra sua oposição, que costumava se mostrar nas mãos sanguinárias de gente como Daniel Jenkins, a liderança. As lesões velhas no rosto de Vlad falavam por si.

            -Mas a que devo a visita de um inglês em meu jornal?

            -Estou à procura de informações, Mr. Solokov. A respeito de Daniel Jenkins.

            O russo sorriu, enquanto acendia um cigarro.

            -Infelizmente, não consegui nada de muito concreto. Ele tem estado muito discreto nos últimos tempos, mesmo ocupando um cargo de relevância no Governo. Ele é cuidadoso, têm um círculo de confiança pequeno. Tentamos interceptar sua correspondência, mas descobrimos que ele sempre usa remetentes com endereço fictício. Descobrimos que as cartas passam por pelo menos quatro homens da Okhrana antes de chegar em suas mãos.

            Holmes parecia abismado com a preocupação de Jenkins por sua segurança. O que será que havia acontecido? Será que os homens de Lenin por si só já representavam tal ameaça? Ou havia algo mais sério e complexo por trás?

            -Então, teremos de rastrear esses homens. – disse Holmes.

            -Já tentamos. Não são policiais comuns, tontos e burros. São homens bem-treinados, desses que percebem quando são seguidos.

            Holmes parecia avaliar.

            -Saberia me dizer o hábito deles? Os quatro homens de confiança de Jenkins?

            Vlad se espreguiçou na cadeira, antes de começar.

            -Enquanto tentávamos segui-lo, descobrimos uma coisa ou outra. Um deles sofre do mal da gota, está sempre indo ao médico, e dois deles frequentam um bordel aqui em São Petersburgo.

            -Ótimo. E quanto ao quarto homem?

            Vlad e Lev Sokolov se entreolharam.

            -Este é o mais complicado. Um grandalhão de dois metros de altura. Discreto, e sem dúvida o mais leal e disposto ao trabalho. Não sofre de doenças ou vícios. Mas parece que está satisfeito com o pouco que dei de minhas informações.

            Holmes assentiu. – E de fato estou, Mr. Sokolov. Acho que não será necessário violência ou algo do tipo neste caso.

            -O que sugere, Mr. Robinson? Já explicamos, não há como seguir estes homens para descobrir para onde eles entregam as correspondências de Jenkins.

            Holmes suspirou. – Sim, eu sei disso. Não precisamos segui-los. Podemos montar um perímetro por meio de algo bem simples.

            Os dois russos pareceram surpresos. – E o que seria? Diga, e darei um jeito de providenciar! – disse Lev, animado. Holmes assentiu.

            -Os sapatos.


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Notas finais do capítulo

Sapatos, Holmes?? Mesmo??
Algo me diz que vem mais um daqueles planos mirabolantes de Sherlock Holmes...
Aliás, o que acharam de Koba? E Lev e Vlad Sokolov? Será que são de confiança?

Pra quem não entendeu nada: Mal da gota é uma doença resultante de excesso de ácido úrico no sangue. Costuma se manifestar como um inchaço no dedão do pé. Pode ser tão insuportável que a pessoa não consegue nem mesmo calçar um sapato. Com o tempo, se não houver o tratamento adequado, pode levar ao comprometimento de outras articulações do corpo.

Espero que tenham gostado. Até o próximo sábado!



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