O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 33
O Dia da Apresentação




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            -Merda à todos! – desejou Adler, em inglês, italiano e francês, enquanto passava por todos os atores e atrizes da Companhia, que faziam o mesmo.

            -Quebre uma perna. – cochichou Holmes em seu ouvido, divertidamente.

            Adler arregalou os olhos, surpresa.

            -Depois diz que jamais pisou em um palco em sua vida...

            Holmes sorriu, presunçosamente. Os rostos de ambos já se encontravam a centímetros da cortina vermelha. Do lado de fora, era possível apenas escutar o burburinho dos presentes. Tal como ele imaginava, todos os ingressos foram vendidos, graças à presença da famosa “Irene Adler” dos tais livros de Watson – ou melhor, Arthur Conan Doyle.

            Ainda assim, a sensação piorara quando as cortinas se abriram, e Holmes pôde ver, agora diretamente, aquelas centenas de olhos ansiosos diante de si.

            Ah, meu caro Watson, é nestas horas que tenho vontade de te matar.

            Com um pigarreio rápido, o maestro começou, regendo os músicos. Fazendo leves compassos com os pés, Holmes se preparava para começar sua parte. Primeiro, Adler soltou seu vozeirão contralto, que tanto o deixava arrepiado. Depois, finalmente veio sua parte, feita com confiança graças às dezenas de ensaios que ele fizera nas últimas semanas, enquanto buscava pistas de Esther por São Petersburgo. O teatro estava em silêncio, como se pudesse saborear aquela maravilhosa apresentação.

            Sua testa já estava repleta de gotas quando a orquestra soltou o acorde final, e as cortinas se fecharam. Em seguida, vieram os aplausos – e alguns assobios dos mais exaltados. Holmes e Irene Adler trocaram um breve sorriso, e quando as cortinas se abriram novamente, ambos deram as mãos, reverenciando o público.


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            -Maravilhoso!

            Claro, Irene Adler era a mais assediada da noite. Uma dezena de cavalheiros lhe rodeava, tal como abutres. Os braços de Irene carregavam flores de todos os tipos, além de caixas de bombons de cores e tamanhos variados.

            -Tomara que ela dê alguns para mim. – observou Grigori, faminto como sempre.

            -Nada de chocolates por hoje, Grigori. Iremos jantar ainda.

            Resoluto, o menino pareceu considerar.

            -Amanhã, aqueles chocolates não me escapam. – disse o menino, com um olhar arteiro e ansioso.

            No entanto, Holmes percebeu que um homem, muito bem vestido, tentou se aproximar de Irene Adler, e isso fez com que todos os demais russos se afastassem aparentemente intimidados com sua aproximação. Ele tinha uma aparência singular. Era loiro, com o cabelo quase branco. Tinha um olhar arcaico e duro que o deixava com a aparência velha, embora ele fosse alguém que deveria estar nos seus quarenta anos. Havia também os chamativos dois metros de altura. No entanto, seu semblante era imponente, aristocrático. O modo de andar remetia a um militar, e a postura de domínio e arrogância que exalava de si salientava a Holmes que este não era um militar qualquer, mas alguém de alto comando.

Um tipo que conheço bem.

            Ele trocou algumas palavras com Adler, que pareceu dar pouca atenção. Depois, se afastou, ignorando os olhares dos presentes, adentrando em sua carruagem. Curioso, Holmes acompanhou sua partida, e após dar alguns passos, pôde ver qual era o brasão que enfeitava a porta da carruagem.

            O brasão dos Ivanov.


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            O jantar fora apático para Holmes. Ele sempre detestou se encontrar tão rodeado por todo aquele luxo e ostentação, tão típico dos nobres russos. A Companhia de Teatro, entretanto, era o contrário de si, fartando-se do champanhe francês e do caviar abundante, enquanto jogavam conversa fora de maneira divertida, com sonoras gargalhadas a encher o salão.

            A imagem do brasão dos Ivanov associado ao militar russo perturbou Holmes. Quem seria aquele homem, e como ele conhecia Adler? Holmes não se lembrava de o Duque Ivanov ter um filho. Na verdade, ele sabia que o Duque só tivera filhas. Seu único filho homem estava morto, e por suas mãos. Então, quem seria aquele sujeito? O marido de uma delas, talvez.

            Seus pensamentos, entretanto, foram interrompidos pela chegada do próprio à mesa. Antes que Holmes pudesse observar qualquer coisa a Adler, a atriz levantou-se, majestosamente.

            -Sr. Comandante. – ela disse, arrancando um sorriso do sujeito. No entanto, Holmes estava desconfiado do próprio traquejo de Adler. Ela estava agindo falsamente, ele sabia. Toda aquela simpatia não era verdadeira.

            Ou será que eu desejo pensar que não seja?

            -Irene Adler. – disse o sujeito, em um inglês sofrível. – Muito me alegra ver sua presença aqui na Rússia, depois de tanto tempo desde o nosso último encontro. Pode dispensar o título, quando se dirigir a mim. Eu serei para sempre o seu Vassíli.

            Ela riu, no que mais parecia ser o ronronar de um gato. Será que os dois não eram exatamente bons amigos?

            -Irá se juntar ao nosso humilde jantar, Sr. Comandante?

            Hum... Ela ignorou chama-lo de Vassíli... Sim, algo aconteceu...

            -Infelizmente não. Tenho um jantar de negócios na outra mesa. Mas tenho certeza de que não faltará oportunidade.

            Com um exagerado aceno, o tal homem se retirou, caminhando com classe que beirava ao ridículo até uma mesa um tanto distante da Companhia.

            -O que diabos está acontecendo? – perguntou Holmes, em um cochicho. – Quem era aquele homem?

            -Comandante Vassíli Golubev.

            Holmes estranhou o nome do sujeito. Se ele era de outra casa de nobres, então porque usava uma carruagem com o símbolo dos Ivanov? Ainda não satisfeito, decidiu sondar mais.

            -De fato? Então a julgar pelo brasão na carruagem, este homem é relacionado aos Ivanov...

            Irene pareceu surpresa. – Ora, mas não me diga que você conheceu o Duque Ivanov...

            -Não, apenas o conheço pela fama. – mentiu Holmes. – Ainda assim, jamais foi de meu conhecimento que ele tivesse um... Homem, em sua família. Pelo que me consta, ele só teve filhas. Por isso, elucida-me. Este homem é casado com uma das Ivanov, correto?

            -Você está certo em sua dedução, Holmes. O Comandante Vassíli Golubev é militar de renome, comanda algumas tropas em nome do Czar e tem grande estima. Ele é casado com Olga Ivanov, a filha mais velha do Duque Ivanov. O mais curioso é que ela ainda utiliza o título de Duquesa Ivanov, ao invés do sobrenome do marido.

—Talvez porque a honraria de ser uma duquesa seja melhor.

Adler riu, antes de beber mais um gole de seu champanhe.

—Na verdade, é uma forma de afirmar quem é que manda naquele casamento. Todos sabem que o Comandante depende do dinheiro dela, uma vez que ele já extinguiu com o dinheiro da família com jogo. Dizem que o assalto foi a causa da falência, mas para mim, foi apenas a pá de cal.

—Assalto?

—Sim. Os Golubev decretaram falência oficialmente depois que tiveram o seu cofre assaltado e uma verdadeira fortuna foi levada por um empregado de confiança. Barras de ouro, levadas! Imagine a derrocada... Parece que um primo dele foi inclusive assassinado durante o roubo.

Holmes achou aquela história familiar, mas preferiu não tocar no assunto.

—Ouvi dizer que o Duque Ivanov aprovava o relacionamento, mesmo sabendo do vício do Comandante Golubev. Para não contar sua vida mundana, que deu apenas uma desacelerada com o casamento com a Ivanov. O Comandante era velho conhecido na roda dos artistas, porque embora fosse desprezado por muitos artistas por sua forma truculenta de ser, Vassili... Quero dizer, o Comandante, gostava de usar seu dinheiro para conquistar desde cantoras e dançarinas a mulheres casadas da nobreza. Duvido que receba a mesma atenção das mulheres agora, que depende da esposa.

            Holmes ergueu uma sobrancelha.

            -Por isso a antipatia, eu presumo.

            Adler soltou um suspiro resignado.

            -Aquele homem me queria como um troféu para exibir aos amigos. Nada mais. E ele é muito violento e grosseiro com suas amantes. Há mulheres que aguentam, mas... Eu não sou de tolerar tais coisas, nem pela maior das fortunas.

            -Bem imagino. O que foi? – perguntou Holmes, ao sentir que Adler agarrou-se em seu braço.

            -É ela, Holmes. A esposa do Comandante. Olga Ivanov.

            Holmes voltou seu olhar de Adler para o centro do salão, onde uma mulher de cerca de quarenta anos, cujo requinte do vestido e do colar exagerado de pérolas atraía a atenção de todos os presentes. Uma das coisas das quais Holmes precisava admitir era que as filhas de Ivanov – àquelas que ele conheceu até agora, ao menos – esbanjavam elegância e transbordavam beleza. Não uma beleza frágil e meiga, mas uma beleza mortal, gélida. O olhar frio do Duque parecia emanar dos olhos dela. Talvez, isso fosse uma herança de família.

            Holmes notou que o próprio Comandante conhecia bem a natureza mortal da família Ivanov, pois logo que sua esposa adentrara ao recinto, o nobre se inquietou, largando as conversinhas com algumas mulheres de lado e se colocando ao lado de sua esposa, que simplesmente o observava como um verme. Um casamento curioso e notável, pensou Holmes. Resultado, é claro, de mais um jogo de transações entre famílias nobres que pouco se importam com os sentimentos dos envolvidos.

—Vou colocar Grigori para dormir. – disse Holmes, aproveitando-se da sonolência do menino para sair daquele local. Não queria atrair atenções de nenhuma Ivanov. Para ele, aquela família estava morta e enterrada. Ele não tinha qualquer negócio para tratar com eles. Seu objetivo na Rússia era buscar Esther e apenas isto.

            -Eu vou te acompanhar. – disse Adler, já um tanto bêbada de tanto champanhe.

            Finalmente em sua suíte, para consternação de Holmes, Irene Adler jogou-se na cama, bastante risonha. O champanhe a deixara completamente insana – mais do que o de costume. Ainda bem que Grigori já está dormindo em meus braços, pensou Holmes.

            -Adler, vá tomar um banho. – alertou Holmes, enquanto Irene Adler cantarolava trechos da peça, em meio a leves risadas.

            -Estamos no século XX, Sherlock! – ela gritou, o que fez Holmes colocar Grigori na cama e detê-la.

            -Não diga meu nome em voz alta! Alguém pode ouvir! – ele alertou.

            -Bobagem, estão todos bêbados demais! Poderiam confundir Sherlock com... Com “grogue”, por exemplo! – Adler riu de suas próprias palavras.

            -“Grogue” é o seu atual estado de espírito!

            No momento em que Adler caiu em mais um ataque de risos, Holmes decidiu romper todos os limites da educação e a tomou pelos braços, conduzindo-a até o banheiro. Ele observou, pelo canto do olho, Grigori dormir profundamente. Ainda bem que o garoto tinha um sono de pedra.

            Enquanto a banheira começava a se encher, Holmes retirava os sapatos de Adler. Claro, ela não deixaria seu comportamento passar em brancas nuvens. Começou a cantar canções em francês, de letras bastante duvidosas e que Holmes conhecia bem, dos tempos em que tocava violino em cabarés de Paris e Montpellier como John Sigerson.

            Ainda bem que Grigori não sabe uma palavra de francês, ele pensou.

            Mal retirando o vestido, finalmente Holmes a lançou sobre a banheira, que transbordou parcialmente pelo impacto da queda desajeitada de Adler.

            Apenas depois de um banho gelado e duas canecas de café forte e sem açúcar, Adler voltou a sã consciência. Envergonhada, como era de se esperar. Com o semblante de uma menina travessa pega em traquinagem, ela evitava olhar nos olhos de Holmes, enquanto bebia silenciosamente do café dado por ele.

            -Você realmente não tem limites. – resmungou Holmes.

            -Não comece. Parece uma velhinha vitoriana a me importunar.

            -Oh sim. Talvez eu seja mesmo. Você estava tão bêbada que poderia me chamar de Rainha Vitória! – disse Holmes, indignado e de braços cruzados.

            -Até parece que nunca ficou bêbado em sua vida.

            Holmes riu, sarcasticamente.

            -Não com a mesma frequência que a senhora.

            -Você faz pior do que umas taças a mais de champanhe. Ou pensa que não vejo daqui as marcas de agulha em seus braços?

            Holmes olhou para si. De fato, a manga dobrada de sua camisa molhada as deixava à mostra.

            -Não vou receber repreensões de um drogado. – completou Adler.

            -Então, receba as minhas.

Aquela fala atraiu a atenção de Holmes e Adler imediatamente, que acabaram se deparando com uma cena completamente desagradável, e mesmo estarrecedora.

A garrafa de champanhe, abandonada por Irene Adler, estava agora sendo terminada por Grigori, que diante de ambos, virou-a em sua garganta, tomando daquela bebida alcóolica pelo gargalo.

            -O que está fazendo?! – questionou Holmes, tomando a garrafa do menino.

            -Achou mesmo que eu não iria perceber o que você fez, Mrs. Adler? – disse o menino, já trôpego por ter bebido tamanha bebida.        

—Grigori, vire-se. Não estou decente. – ela disse, enrolando-se mais na toalha, sendo obedecida pelo menino. No entanto, Holmes sabia que seu constrangimento era muito mais profundo do que este.

—Fico me perguntando se a senhorita faz tais coisas na frente de seu filho também. – disse o menino, de costas para Adler e Holmes, braços cruzados em sinal de zanga.

—Você é a última pessoa dentre nós que deveria me repudiar. Nme tem idade para bebedeiras e já está bêbado...

—Ninguém aqui tem condições para repudiar o vício do outro. – interferiu Holmes, por fim. – Agora, vamos parar de discussão. Adler, termine de se vestir. Grigori, volte para a cama. Sua presença aqui é completamente inadequada.

—Mas...

—Volte. Para. A Cama. – ordenou Holmes, ameaçadoramente, fazendo o menino se encolher e obedecê-lo, ainda que resignado. Ao ver o menino fora dali, Holmes soltou um suspiro.

—Adler, por Deus, não volte a beber neste nível outra vez. Se eu não sou motivo o bastante para isto, faça-o por Grigori. Nossa atitude sempre servirá de exemplo para ele.


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Notas finais do capítulo

Para quem não sabe:

"Merda" é uma forma dos atores de desejar sucesso a uma peça de teatro/filme/novela, e etc. Mas por que? Antigamente, quando transportes que utilzavam cavalos eram predominantes, um Teatro que estava com um grande público ficava com muitas carruagens estacionadas nos arredores. LOGO, um ator /peça que deixava os arredores do Teatro cheio de merda de cavalo era sinal de sucesso.
"Quebre uma perna" também tem um significado assim, mas sua origem é mais controversa. A versão mais "factível" para mim é que "quebre uma perna" está relacionada à expectativa do elenco para que os aplausos do público sejam tantos e tão fervorosos que as “pernas” do teatro (parte lateral onde ficam as cortinas) se rompam e levem o teatro abaixo.


Espero que tenham gostado. Obrigada por acompanharem!

Até o próximo cap!



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