Os Howard - Fanfic Interativa escrita por Soo Na Rae


Capítulo 8
Chapter VII


Notas iniciais do capítulo

Não reclamem do tamanho, por favor. Fiquei muito tempo excluindo tudo o que eu escrevia para o sétimo capítulo, nada parecia se encaixar com a história, nem a apresentação de novos personagens, nem a continuação de outros. Até que enfim tudo engrenou e acabei por extravasar o número comum de palavras. Boa leitura a todos!



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Chapter 7

“Poucos homens distinguem o verdadeiro encanto feminino, que pode nascer até da desarmonia” – Galeão Coutinho

Coer de Pirate – Comme des Enfants

— Você quer se casar comigo? – a indignação era evidente em sua voz. Afinal nunca recebera um pedido de casamento na sala formal de sua própria casa. Piscou várias vezes, mais do que seria apropriado para uma dama surpresa. Por sorte, Lady Howard estava pronta para auxiliar seu rebento, colocando uma mão confiante em seu ombro e sorrindo ao pretendente.

— Com certeza Mary pensará em sua proposta, Senhor Marketonn. – e em seguida segurou o cotovelo do rapaz, ainda com seu sorriso reconfortante que garantia que tudo ficaria bem. Quando conseguiu arrastá-lo para fora da sala, para fora da casa na verdade, girou nos tornozelos e voltou quase correndo para sua filha, segurando seus ombros.

— É maravilhoso, Mary, sua primeira proposta de casamento. – exclamou a mãe. – Quem diria que o título de seu irmão lhe daria tanta popularidade. – o sorriso em seu rosto era incrivelmente largo. E Mary sentiu que era a única notícia capaz de alegrar o dia de sua mãe por mais sete semanas em sequência. Engoliu em seco. Marketonn não era sua primeira escolha como marido, na verdade ele era lerdo demais. E se o próprio raciocínio já não lhe fosse uma qualidade, não ostentava nenhuma virilidade que Mary costumava notar tanto nos homens mais velhos. Ele era franzino, pequeno. Era... algo que ela não queria. Mas Juliana continuava sorrindo. E como que percebendo exatamente os pensamentos da filha, ela fechou o sorriso em uma linha curvilínea e bateu levemente nos ombros da filha – Não precisa aceitar, é claro. Outros virão, com certeza, mas é um evento para se lembrar.

Mas Mary não queria lembrar que seu primeiro pedido de casamento fora de Marketonn. Sentia repulsa. Como alguém como ele podia se dignar a tentar algo com alguém como ela? Olhou de soslaio a janela, por onde viu a carruagem do senhor desaparecendo de vista. Soltou um suspiro que poderia ser interpretado como alívio ou contentamento. Mas não passava de um suspiro tristonho. Será que ninguém que ela quisesse viria até ela? Será que era muito nova para os verdadeiros homens virem até ela? Por Deus, o exemplo estava claro em sua família, ela não era de olhar para homens como Henry, que tinham um rosto afeminado e braços finos e ágeis. Ela olhava para homens como Bernard, com rostos sérios e carrancudos, ombros largos e... aquele ar de segurança... Era isso o que queria em um marido, que a mantivesse em segurança.

Estava começando a se sentir infeliz com aquela perspectiva, quando divinamente Julie entrou na sala, acompanhada por uma das criadas mais próximas a família, na verdade a melhor amiga de Julie. O que Mary não aprovava nem um pouco, ela jamais misturaria o dever de uma empregada com a amizade. Logo o criado se tornava relaxado e mal-educado, como era comum das pessoas da laia deles.

— Escute, Julie, boas novas! – exclamou, ignorando a mãe que tentava ainda confortá-la com seu sorriso confidente. Mary tinha outras coisas em mente agora – Minha primeira proposta de casamento!

— Oh, agora? – a irmã arregalou os olhos, mas sem perder a compostura sempre equilibrada e branda. Como detestava o modo como Julie fazia parecer-se tão mais velha e esperta, como ela fazia parecer toda a sua sabedoria tão natural, embora tivesse certeza de que era tudo apenas uma armação da mais nova, uma figura que ela queria transmitir aos outros. – E você aceitará?

— Não. – respondeu prontamente, sentindo-se incrivelmente feliz. – Ele é um bom rapaz, mas não me atrai como marido. Somos muito diferentes, seria infeliz com ele. Mas pelo lado positivo, significa que a sociedade começou a olhar para nós.

Nós. Notou o estremecimento de Julie. Era óbvio que ninguém havia reparado nela. Mary escondeu a vontade de saltar no lugar, como costumava fazer quando criança, para demonstrar alegria extrema. A irmã apenas concordou com um meneio passivo, como sempre fazia, o que tornava tudo ainda mais delicioso.

— Sei que logo haverá uma fila para pedir a mão de cada uma de nós. Até você, mamãe. – Mary riu fraco, enquanto a duquesa viúva empertigava-se, resmungando algo sobre ter coisas mais importantes para se preocupar que aquilo, mas ainda assim um pouco avermelhada. Julie abriu um sorriso frígido. Então, impulsivamente, Mary colocou suas mãos sobre as mãos de Juliane, unidas em frente ao corpo, e com um olhar sereno, disse: - Imagine nós duas vestidas de branco, com nossos maridos ao lado. Ou em uma casa grande, com nossos filhos. – e então seus olhos brilharam de verdade.

Toda a dignidade que Julie ainda ostentava desvaneceu-se de imediato. Pois ninguém era de ferro, e Mary sabia exatamente onde encontrar as falhas de sua armadura, por ser sua irmã e por também as ter. Embora a mãe tentasse manter segredo entre ela e Bernard, todos na casa Howard sabiam que Julie não podia ter filhos. E o fato dela própria não saber que Mary sabia disso só colocava ainda mais força em seu cutucão. E ela encolheu os ombros, abaixando os olhos para suas mãos ainda entre as de Mary e abriu um sorriso desconsolado.

— É claro, uma imagem linda. – e virou-se para a mãe imediatamente – Queria avisar que não me sinto muito bem, então não jantarei com vocês hoje.

— Claro, querida – Lady Howard beijou a testa de sua filha mais nova e dispensou-a com um gesto que sugeria “vá descansar”, ou o que todos podiam ver “preciso conversar com sua irmã a sós”. Julie assentiu, seguida de perto pela criada, que lhe sussurrava coisas ao pé do ouvido, coisas que Mary jurou descobrir mais tarde. Mas quando a porta se fechou, todo o ambiente voltou ao antigo resquício de felicidade. – Precisamos de vestidos novos, mais elegantes, mais caros. Oh, céus, preciso de uma criada boa o suficiente com os penteados, pois é um desperdício não deixar seus cabelos bem arrumados, são tão lindos. – os olhos da mãe estavam cheios de orgulho. E Mary sentiu-se ótima.

— Sim, podemos combinar com Julie...

— Ah. – a exclamação fez Mary erguer as sobrancelhas. – Não... Não podemos gastar tanto com vestidos, digo, para as duas. Você debutou há mais tempo, então merece um melhoramento, para que esteja digna de casar. Ano que vem mudamos o guarda-roupa de Julie. – e, com um sorriso que ela achava ser leve, a mãe evidenciou todo o sofrimento que sentia por sua filha mais nova. Era óbvio seus esforços para tentar casar Julie com qualquer um que surgisse, provavelmente ela jamais a teria encorajado a recusar um pedido de casamento, mas com Mary era diferente, pois Mary era diferente.

O que Lady Howard não sabia era que a criada permanecera parada ao lado da porta, ouvindo, e que deixara implícito sua conclusão mais dolorosa: não acreditava que Julie fosse se casar aquele ano. Talvez, não acreditasse que fosse se casar nunca.

º   º   º

“A vida é feita de lodo, e os homens de pó do crime; tudo é lama, e toda lama é igual” – Albino Forjaz de Sampaio

Arctic Monkeys – Knee Socks

Passava horas apenas observando a rua pela janela de seu quarto, aproveitando que morava no bairro rico de Marly, no estremo oeste de Birminghan, exatamente ao lado de diversas construções medievais, como antigas catedrais ou mesmo estruturas que poderiam ter sido castelos, mas que agora eram restritas ao público por questões de serem propriedades históricas da Inglaterra. Ninguém caminhava pelas calçadas na maior parte do tempo, assim como poucas carruagens avançavam em direção ao oeste, apenas para o centro. O bairro fora modificado pelas gerações, mas ainda mantinha o monótono estilo de vida aristocrático, as pessoas não se aventuravam para fora de casa se o assunto não fosse títulos, bailes ou caçadas. A não ser nos domingos, a maioria ia até a igreja para fazer suas orações e se tornarem pessoas melhores. Ser um Stewart implicava na constante preocupação com as aparências. As pessoas exigiam que um Stewart fosse o exemplo do que deveriam seguir, assim como o exemplo do que não deveriam seguir, caso desrespeitassem alguma etiqueta, a humilhação seria triplicada e ninguém gostaria de ser comparado a um Stewart por isso. Era de se imaginar que o cargo estivesse sobre os ombros de seu irmão mais velho, Abel, que tinha o título de visconde. Porém a má fama de Ian, o segundo filho, ultrapassou os limites do libertino razoável quando engravidou a filha de um marquês e se recusou a casar com ela. A honra obrigou-o a fazê-lo, claramente após uma discussão acalorada com Abel e papai, James, mas por fim a notícia da primeira rejeição chegou ao ouvido de todos. Nunca um Stewart foi tão humilhado.

Então Abel noivou no mesmo ano de Ian, o que por si só era uma grande coisa. Dois Stewarts se casariam no mesmo ano, imagine as festas de cada um? A sociedade estava ansiosa por isso, e as noivas se vangloriavam em todos os bailes, apenas aumentando todos os cochichos. Mas tudo começou a despencar quando Guillaume cometeu o pior erro de sua vida. Os dois irmãos mais velhos eram grandes nomes, Ian conhecido por todas as damas solteiras (e suas mães ansiosas) por mulherengo e libertino, Abel muito famoso por ser impassível e até mesmo grosso quando algo o incomodava de verdade. Mas Guillaume era o amor de todos e de todas. O melhor amigo de cada universitário de Oxford, o melhor estudante dos melhores professores, o sonho de todas as donzelas, a expectativa de todas as mães. E também o único irmão que ele tinha. Que realmente tinha. Guillaume era filho do segundo casamento de César, e por isso os dois filhos mais novos sentiam-se mais próximos que os mais velhos.

Guillaume era perfeito, sabia exatamente como deixar todos à vontade com seus sorrisos calorosos e seus olhos cheios de travessura. Sabia o que dizer, sabia quando parar de dizer. As pessoas o amavam por ser ele mesmo. Guillaume não fazia separação entre as pessoas, ele as adorava por serem elas mesmas, também. E por isso adorava seu irmão mais novo, Isaac. Isaac nunca foi amado por ninguém. Na verdade, poucas pessoas se lembravam de que ainda existia um quinto irmão Stewart, pois a luz que brilhava nos quatro primeiros o ofuscava completamente.

Obviamente nada foi dito do quarto, pois é um bastardo.

Isaac sorriu para si mesmo. Sim, ele era mais inútil que um bastardo. Matthew e Guillaume tinham o charme, e ele tinha tudo o que fora negado aos outros: fraqueza, feiura e vergonha. Há seis anos Isaac não vai a um baile da aristocracia, preferindo ficar em casa, olhando pela janela. Ele também adora os livros. Voltando ao assunto: Guillaume cometeu um erro, ele noivou. No ano passado, casou-se com Valentine Julie Adams, uma garota arrebatadora, filha de duques ricos, que estudava com privilégio como uma das únicas mulheres a entrarem em Oxford. Inteligente, engraçada, linda e um tanto intimidadora. E beijava muito bem. Obviamente se casaram por amor, mas Isaac não conseguia deixar de sentir ciúmes, afinal Guillaume não o tratava como uma vergonha, algo inútil. Mas tudo bem. Os quatro irmãos se casaram, todos juntos, na mesma Temporada. Foram moram em casas distintas, deixando-o sozinho com seu pai, sua mãe, os avós e alguns primos de segundo grau.

A casa era grande o suficiente para que não visse nenhum deles por alguns dias.

Nem sempre fora assim, é claro. Mas detestava relembrar quem era, então focava no agora e deixava-se mergulhar em desgosto e raiva. Segurou as rodas e impulsionou-as, manobrando habilmente em direção a porta. Estava solteiro, era filho de um visconde e tinha capacidade de gerar filhos (mesmo que mínimas). Então o que o mantinha em casa? O pai lhe dera uma semana para pensar nisso e, caso não conseguisse se decidir se queria uma esposa ou não, que deixasse a casa. Obviamente James Stewart não incentivava a procrastinação e a preguiça, por isso não deixou qualquer herança aos outros filhos, para que estes conquistassem o que queriam com trabalho e esforço. Ou era este o discurso que Isaac ouvia, pois se saísse de casa, não contaria com qualquer outro recurso. Talvez pedisse para morar com Guillaume por algum tempo. Mas seria humilhante ver Valentine todos os dias...

Suspirou, arrumando a gravata.

— Está pronto, senhor Stewart? – perguntou a governanta, batendo na porta. Ele resmungou um sim de mau-humor, como sempre, mas a mulher não se abateu com isto, sabia exatamente com quem lidava e sabia que seu mau-humor não era algo para se importar. Isaac estava sempre de mau humor. – Vou levá-lo para baixo. – avisou, posicionando-se atrás da cadeira de rodas, para levá-lo. Isaac sabia que ela viera somente para isso, não tinha outra coisa a se fazer ali. O cheiro de urina era forte, e quando olhou para a cama de Isaac, ela torceu o nariz. Os problemas de Isaac com a urina eram de conhecimento geral na casa, mas ainda incomodava qualquer um que entrasse ali, até mesmo os médicos, as criadas e seu valete. Pobre homem que tinha de trocá-lo, lavá-lo e ajudá-lo a chegar até o urinol.

— Está bem, Gusty.

E deixou que ela o empurrasse.

º    º    º

Youth – Daughter

— O sarau não será grande coisa, são as Gunninstones, não há como demorar mais de alguns minutos, as meninas não sabem nem mesmo harmonizar seus instrumentos, imagine ter a coragem de tocar separadamente, sem que uma oculte o erro da outra. – comentou Eloise Stewart, em seu belíssimo vestido negro, com os cabelos sedosos e cheios de cachos escuros presos por uma tiara prateada. Seu rosto era pálido em toda aquela imensidão escura. Mas o Sr. James Stewart pouco notava a beleza de sua esposa. Isaac pouca importância dava a toda aquela falatória, com os primos na carruagem e seus pais tentando passar a imagem de que tudo corria bem.

A Casa Gunninstones era pequena em comparação as demais residências, principalmente se comparada com a mansão Claret, onde o primeiro baile da Temporada aconteceu. O sarau seria o meio como as filhas do barão se anunciariam a sociedade, já que sua filha do meio estaria debutando naquele ano. Eram conhecidas como irmãs extremamente talentosas em deixar todos entediados. Sem graças e péssimas musicistas. Não havia entusiasmo em ir ver a mais nova integrante do grupo de desastres que tomariam chá de cadeira em todos os próximos bailes, porém todos iam, como se perder um evento sequer da Temporada fosse perder uma ótima oportunidade de arranjar um marido para sua filha ou uma esposa para seu filho.

— Chegamos. – anunciou ela novamente, abrindo a porta da carruagem por si só e saltando para fora. Em seguida James Stewart também saltou e todos os primos de Isaac. Até restar ele e sua cadeira de rodas. O cocheiro abriu bem a porta, colocou a cadeira do lado de fora, entrou. Segurou-o no colo e passou-o pela porta, entregando ao mordomo da Casa Gunninstones, que o colocou na cadeira. Tudo isso em três minutos de movimentação e apertões. Isaac detestava aquilo, quando tinha de ser transportado por outras pessoas. Normalmente conseguia sair da cama para a cadeira e da cadeira para a cama sozinho. Mas nada mais que isso.

As escadas da Casa Gunnistones eram outro obstáculo. Para se adaptar às necessidades o filho mais novo, o Sr. Stewart fez uma rampa para sua cadeira de rodas, assim como mudou o quarto do rapaz para o primeiro andar da casa. Mas nem toda a sociedade pensava nisso, Isaac era o único membro debilitado a frequentar ainda os bailes e por isso não merecia tanta importância. Mesmo assim, James Stewart venceu seu orgulho com o amor fraternal e segurou a parte da frente da cadeira de rodas, enquanto o mordomo os ajudava de novo segurando atrás. Juntos os dois homens subiram os dez degraus da Casa Gunnistones. A arquitetura era nova, visivelmente, com três andares e janelas enfileiradas perfeitamente, muito próximas umas das outras, altas e com persianas brancas. A torre tinha duas janelas em cada lado de seu formato octógono. A porta principal era tão alta que seus ornamentos ultrapassavam o segundo andar, dando uma impressão gótica e extravagante, na opinião de Isaac. Mas a cor clara das paredes e os arabescos brancos contrastava com o efeito mais assustador. Uma casa muito bem desenhada, talvez incrível em sua maquete. Mas não no tamanho real.

— O senhor pode assinar aqui? – pediu o mordomo, enfim continuando seu trabalho comum. Entregou a Isaac um caderno de couro, onde se anotava o nome de cada um que comparecesse ao sarau. Assinou seu nome e ao lado colocou “quinto filho do visconde de Stewart.

Após toda a burocracia, recebeu seu passe livre. Conduziu a cadeira porta adentro, onde encontrou não apenas o interior da residência Gunninstones, mas uma obra de arte de muito mau-gosto. Vejamos, as paredes eram altas. E não simplesmente altas, elas cobriam todo o espaço até o teto, o que significava até o teto no terceiro andar. As escadas serpenteavam os andares, mas nada se via após as paredes, o que escondia todo o segundo e terceiro andar da vista de curiosos. Muito engenhoso, mas também horroroso. As escadas eram forradas de veludo vermelho escuro e os convidados se apoiavam no corrimão grosso e de mogno, como se fossem encostos. Os quadros pendurados revelavam todos os membros da Família Gunninstones, o que por si só já era uma aberração, se em todos os intervalos entre um quadro e outro não houvesse uma mesa de canto com uma estátua de gato.

E não só isso era nauseante. As moças vestiam roupas constrangedoras no mínimo, seus decotes revelavam toda a parte de cima dos seios, com mangas escorregando dos ombros e babados em todo o decote, aumentando o volume já feito pelo próprio decote. A cintura descia firme e como um funil, Isaac apostava que conseguiria segurar aquelas cinturas se usasse as duas mãos, eram finas demais! Havia toda a sorte de laços e fitas penduradas do corpete, dando a impressão de que a jovem permanecia bem presa e segura. A saia cobria-lhe os pés, com o triplo da largura de cada uma, impossibilitando que as companheiras e suas solteiras conseguissem segurar os braços umas das outras, o que implicava em terem de andar lado a lado com um metro entre elas, desviando de outros convidados. Como elas sentariam para assistir ao sarau?

Então Isaac começou a notar os cavalheiros. Usavam calças justas, com camisas brancas e de botões dourados, coletes de diversas cores e um casaco com a frente cortada pela metade, com apenas dois botões grandes. O peito elevava-se como se houvesse algo dentro da camisa, reto e saliente, impedindo-os de permanecer com as costas retas, mas sim inclinadas para a frente. Os sapatos eram altos e assustadoramente brilhantes. Sentiu-se extremamente diferente, com a calça larga e o terno comum, sua gravata borboleta e a cartola. Para sua sorte, os membros mais antigos da sociedade ainda usavam as roupas que ele conhecia e por isso se moveu para mais perto dos rostos familiares. Entretanto o fato de estar se familiarizando com aquelas pessoas só o classificava como velho demais. Com tudo poderia ter mudado tão rápido em seis anos? Então lembrou-se de novo, aquela era a Inglaterra de Vitória, a Rainha. Mulheres tendem a fazer mudanças grandes quando têm o poder para isto. Às vezes para o bem. Mas na opinião de Isaac, quase sempre para o mal.

— Vejam só, James Stewart mais jovem. O que andou fazendo caro amigo? – perguntou um dos homens do grupo, e então abriu um sorriso que o classificou como amigável e entusiasmado, na lista imaginária de Isaac. – Esquecido Isaac James, que nos conta de suas viagens?

Ah, sim. Para que ninguém da sociedade murmurasse sobre Isaac, a mãe espalhara a notícia de que havia saído para viajar e conhecer o mundo. E agora, seis anos depois, retornava na esperança de se casar e constituir uma família. Aquilo não o incomodava muito, apenas não era... certo.

— Foram cansativas. – confessou afetado, tentando parecer muito à vontade ao ser olhado de cima por aqueles rostos preocupados e cheios de compaixão. – Mas adorei o clima tropical, é ótimo para o espírito. – lera isso uma vez em um de seus romances preferidos.

— Com certeza. Deve ser decepcionante retornar para nosso Velho Mundo nos meses invernais. Mas teve sorte, há uma semana a chuva não nos permitia nem mesmo sair de casa para buscar o jornal. Tenho pena dos trabalhadores de minha fábrica em Londres, a Sandors, mas investi em aquecedores para cada setor, assim não ficarão molhados por muito tempo. – explicou o Sr. Sandor, sempre em busca de se autopromover. Isaac assentiu curioso.

Recentemente, muitos membros da aristocracia estavam investindo na indústria, ou como patrocinadores, sócios e até mesmo donos de fábricas grandes. A Sandors era uma das primeiras fábricas montadas por Sandor, ele investira primeiro na fabricação de tecido para as grandes empresas de roupas e butiques famosos de Londres. Depois criou sua própria marca de roupas, voltada especialmente para mulheres, as grandes clientes dessas lojas. Em pouco tempo duplicou todo o investimento feito, expandindo para Birmingham e Liverpool. Talvez Isaac também tentasse algo deste jeito, um trabalho que não fosse exatamente um trabalho. Além de que adorava comandar as coisas.

— Li em algum jornal que os estudiosos da Universidade de Birmingham fizeram uma comparação entre um ambiente de trabalho ruim e um ambiente de trabalho bom e concluíram que os funcionários trabalham melhor em ambientes mais agradáveis. – disse ele, tentando se mostrar entendido do assunto – Ao contrário do que certos patrões acham, que se derem muito conforto os funcionários se tornarão relaxados.

— Acho essa opinião muito equivocada, Stewart. – disse friamente Adam Bedford. Era o membro mais antigo da aristocracia que Isaac conhecia, um sujeito prepotente e de língua afiada, calvo e retorcido. Bedford era conhecido por não concordar com a opinião de ninguém que tentasse se passar por mais esperto que ele, principalmente se fossem jovens. Não tinha muitos amigos, nem era muito apreciado pelos outros membros da sociedade. Mas tinha uma grande riqueza como duque de Bedford e isso o mantinha em todas as listas de bailes e saraus da Temporada. – Aposto que esta... pesquisa foi manipulada. Veja só a nossa sociedade: fomos mimados em toda a nossa vida e agora somos inúteis. Moles e cheios de frescuras. Falamos de política e de economia, mas nada fazemos pela sociedade. Herdamos aquilo que pertencia a outros, o trabalho de outros. Nossos antepassados é que merecem o crédito pelos títulos e posses que hoje ostentamos. Quem somos nós para dizer que sustentamos a economia? Os mortos sustentam a economia, nós apenas servimos como seus cartões de entrada.

Isaac piscou, surpreso pelo discurso de Bedford, afinal o velho havia insultado a aristocracia a qual pertencia, mas os outros homens apenas sorriram uns para os outros e concordaram silenciosamente com o velho, para que este não tivesse que explicar seu argumento.

— É um ponto muito bom, Senhor Bedford. – Isaac disse, soando convencido por ele. Adam Bedford abriu um sorriso prepotente.

— É claro que é. Vocês jovens não conseguem mais pensar com as próprias cabeças. – e com isso virou as costas para Isaac, excluindo-o do círculo de debate em que os mais velhos estavam. Não se incomodou com a desfeita, apenas segurou nas rodas da cadeira e empurrou-a mais a frente, deixando a sala de visitas para o salão de baile, hoje arrumado para a apresentação de sarau.

As paredes eram altas, como Isaac previra, porém não altas demais. Haviam lustres pendurados a cada dois metros uns dos outros, embora apenas alguns estivessem estrategicamente iluminados. Entretanto não era aquilo que chamava mais a atenção e sim o palco montado para as filhas dos Gunninstones se apresentarem: feito de blocos de pedra verdadeira, cinzenta e reta. Os instrumentos estavam dispostos aleatoriamente e atrás uma parede com roseiras crescendo, escondendo os fundos, onde provavelmente as garotas estavam tentando se acalmar. Era evidente que o tema do sarau seria “natureza”.

— Isaac?! – ouviu seu nome ser pronunciado com descrença e espanto. Não era simples virar uma cadeira de rodas em meio a diversas jovens de saias ridículas, então se apoiou em um dos braços da cadeira de rodas e virou o tronco, utilizando toda a força adquirida pelos anos em que tinha de se levantar da cama e sair da cadeira de rodas sozinho, apenas com os braços. Por cima do ombro conseguiu ver o rosto da bela jovem que o chamava. Sua amiga de infância, uma das companhias mais agradáveis em toda a cidade de Birmingham, Judith Fairchild. – É você!

— Sim, sou... – sua voz foi abafada com o cabelo de Judith enquanto esta lhe abraçava como conseguia (tanto a cadeira de rodas quanto o vestido da moça eram obstáculos). – Que bom vê-la, Judith.

— Sim, é ótimo. Parece que foi ontem que estava me levando nas costas para passear. – ela riu, o que era um som melodioso e contagiante, obrigando-o a abrir um leve sorriso. Isaac era mais velho por onze anos ao todo, o que significava que sua melhor amiga tinha quatro anos quando a conheceu, e essa amizade se deu por ele adorar crianças e ela ser uma criança. Judith sempre fora como uma irmã para Isaac, já que ele sempre teve irmãos e todos eram mais velhos, cuidar da garota era muito divertido. E ela também o adorava como um superherói, o que também era muito divertido. Judith tinha nove anos quando o acidente aconteceu, e desde então Isaac se recusou a recebê-la em sua casa. Por seus cálculos, ela estava para fazer quinze anos, uma idade muito favorável a debutantes, embora a maioria preferisse esperar até os dezoito para que as marcas da adolescência passassem. Mas Judith com certeza era uma exceção, não havia qualquer evidência de que sequer estivesse passando pela puberdade, nenhuma espinha, nem mesmo as gorduras e inchados comuns da infância. Tinha braços finos, um rosto pequeno e a cintura tão delicada que o corpete parecia pouco fazer diferença. Seus seios eram achatados e ela era quase duas cabeças menor que ele (caso estivesse em pé, já que na cadeira de rodas ambos ficavam em uma altura relativamente parecida).

— Me perdoe, Judy, eu não deixei qualquer explicação sobre meu isolamento em todos estes seis anos... – começou o discurso que ensaiara mil vezes durante os últimos três meses. Mas ela abriu um sorriso enorme e seus lábios se tornaram mais finos e rosados – O que foi?

— Sempre achei sua expressão de culpa algo engraçado. – ela disse, sincera. Isaac ficou sem palavras. – Aceito suas desculpas, Isaac. Desde que amanhã venha me visitar.

— Claro. – concordou. E então lhe ocorreu algo que provavelmente não o teria incomodado se ela não fosse uma debutante. – Mas visitá-la durante o período de visitas? Como um pretendente?

Judith pensou um pouco.

— Você com certeza não é um pretendente, e meu pai sabe disso. Mas a sociedade não sabe. Talvez seja melhor que todos os Stewart venham jantar na Casa Fairchild, no Domingo após a reunião religiosa.

— Não pode nos convidar sem a permissão de seu pai.

— Ah, não se preocupe. Ele fará o que eu disser. – ela piscou. – Theodore Fairchild faz tudo o que a princesa quer, e a princesa sou eu. – ela apontou para si mesma e então gargalhou como uma vilã dos livros de aventura. Aquilo soou perfeito para Isaac, mas o barulho chamou a atenção de pessoas que circulavam próximas e começaram a cochichar sobre como a debutante Judith Fairchild não tinha modos para conversar normalmente.

De repente algo branco e cheio de pelos miou nos braços de Judith. Isaac não conseguiu desviar os olhos da bola abrigada ali, como não o havia notado antes? O mascote da menina encarou-o, retribuindo o interesse, mas logo se virou para o vestido da jovem e se enroscou confortavelmente, miando e fechando os olhos.

— O que há com você para trazer um animal a um sarau? Principalmente o sarau dos Gunninstones. Não sabe que elas são horríveis?

Judith achou graça da preocupação do amigo.

— Levo o Sr. Ruff a todo lugar que vou. Não sabe que gatos são a última moda no Reino Unido? Toda dama que busca um marido tem um felino. – explicou, com uma piscadela na última frase. – Papai me deu quando nos mudamos para a casa de campo. Acho que me apeguei ao gato nos últimos oito meses em que passei sozinha apenas com ele e os criados.

— A guerra tem ocupado muito nossos oficiais. Somos totalmente gratos ao seu pai. – Isaac disse solenemente, embora a expressão de Judith fosse a de uma filha que não queria que o pai fosse major-comandante.

— Não o culpo. Sei que está fazendo algo bom para todo o país, mas não consigo deixar de desejar que ele fosse simplesmente um conde ou duque qualquer. Sempre que retorna está cansado e ávido por retomar nossos laços de pai e filha, mas após algum tempo... É como se precisasse de novo comandar esquadrões e ataques. Acho que sua vida não teria sentido se ele não pudesse comandar um exército. Talvez eu tenha um pouco de sangue espartano e nem mesmo o saiba. – piscou, deixando todo o assunto melancólico com um pouco de humor.

— Eu não questionaria. – concordou com o mesmo sorriso brincalhão.

No palco as jovens subiram, cada uma parando em frente a seu instrumento, começando a afiná-los. Isaac não deixou de notar que o violino estava com um mi completamente fora do eixo e o piano parecia precisar urgentemente de um afinador. Judith engasgou quando alguém soprou a flauta. Ela era uma amante de flauta e se sentia insultada com algo terrível como aquilo.

— Melhor tomarmos nossos lugares nas últimas fileiras. – ele sugeriu.

— O mais longe melhor. – ela concordou – Veja, quase todas estão ocupadas!

— As pessoas conhecem o sarau Gunninstones há anos para que consigam se prevenir a isso. Estou dizendo, você vai torturar o Sr. Ruff.

E desta vez a gargalhada de Judith foi ocultada pelo Ré do violoncelo de Srta. Gunninstones.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado do lado negro de Mary Howard e do melancólico Isaac Stewart. Aliás, a Judith não é um amorzinho? Para quem quer saber, a Judy (da gif) é a Ali Michael e o photoplayer do Isaac é Dane Dehaan (https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/236x/45/0e/02/450e02050c79031206257cbb698981ad.jpg).
E não, eles não são um casal u.u Ambos se vêm simplesmente como irmãos. Comentem, deixem suas opiniões, suas dicas e seus pedidos para a fanfic.
Beijos da Meell.