À Espada Pelo Sangue escrita por LahChase


Capítulo 65
Capítulo 52 - Disarm You


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo, yaaay!
Preparem seus corações :3
Agradeço a Ary e Mocca que comentaram nos capítulos anteriores ♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡
Leiam a letra de Disarm You, Kaskade. É perfeita pra o capítulo.



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1 - Laura e Luther;

2 - Michael;

• O que o sonho quer dizer?

3 - Shayla;

4 - Jayden;

• O que fazer para ajudá-lo?

5 - Red Missions;

• Preciso acabar com elas. Como?

6 - Sonho com Ian;

• Tenho que ver seu passado... Abro o jogo com ele?

7 - Shinigami da geração anterior;

• Querem matá-lo. Por que?

• Ainda é uma ameaça a Jayden?

• Onde ele está?

8 - Daímonas;

• Tenho raiva;

• Preciso achar um jeito de vencê-lo;

10 - O que é A Teia?

• Perguntar a Ian depois;

• Devemos ir até o contato que papai deixou?

9 - To com fome;

• Será que ainda tem aquele amendoim que comprei hoje à tarde?

 

Listei num papel cada mínimo pensamento que me assombrava ou martelava e, no fim de uma hora, reli cada um deles. 

Mas que diabos? Eram coisas de mais. Sentindo a mente rodar, apoiei a testa nos joelhos dobrados e dei um suspiro exasperado. 

Eu estava tentando. Tentando mesmo colocar as coisas em ordem e desenvolver um bom plano sobre que caminho seguir. Eu tinha um alvo, mas faltavam-me as metas. 

Link se remexeu ao meu lado, como quem pergunta se está tudo bem, e soltou um pio preguiçoso. Ergui a cabeça e pousei o indicador nos lábios, pedindo ao pequeno que ficasse em silêncio.

— Não faça barulho, Link. - sussurrei, e lancei um olhar para o interior do quarto, onde Ian dormia numa cama - Se o ranzinza ali acorda, não teremos paz. 

A coruja se aninhou mais ao meu lado, e eu me ajeitei no chão frio. Estava sentada com as costas na porta de vidro da varanda, voltada pro lado de fora. Era o meu turno de vigia, e as coisas andavam calmas o suficiente para que eu dividisse a atenção entre meus problemas e o cenário bem iluminado por lâmpadas lá fora. 

Chegamos a Nova Orleans pela manhã, com uma surpresa logo de início. Na lanchonete onde paramos para comer, demos de cara com um jovem possuído, que parecia estar trocando informações com um cara do tráfico. Corremos atrás dele e conseguimos pegá-lo, mas o traficante desapareceu. Passamos algum tempo procurando, até o encontrarmos em um ponto de vendas de drogas, mas acabamos concluindo que ele era apenas um humano normal, e denunciamos à polícia. 

Na verdade, Izumi havia mencionado que Nova Orleans não tinha nada de muito grande acontecendo, e que havia nos mandado pra lá porque precisava de nós dois longe de NY e da Califórnia, mas perto o suficiente de Himeko. O suficiente para sermos rápidos quando a hora de ir atrás dela chegasse.

Voltei à lista mais uma vez, e decidi me focar no que podia ser resolvido no momento. Circulei o tópico sobre o sonho com Ian, bem como o da Teia. Em seguida decidi que o último era o mais relevante no momento, e levantei para buscar o lanche em minha mochila.

Em silêncio, remexi na bolsa que estava no chão ao lado da cama, reclamando mentalmente sobre como estava escuro, e ergui a mão para ligar o abajur. A luz curta iluminou o rosto de Ian, que estava virado para mim. Fiquei surpresa ao vê-lo coberto de suor, com uma expressão dolorosa, e só então me dei conta de sua respiração ofegante. Suas mãos agarravam os lençóis com força. 

"De novo" pensei. 

Eu não tinha muitas oportunidades de ver Ian enquanto ele dormia, mas, das poucas vezes que aconteceu, ele raramente tinha uma expressão tranquila no rosto. Vê-lo daquela forma fazia meu coração se apertar, por algum motivo que eu não sabia.

"Pare de mentir para si mesma, May" pensei comigo.

Chega um momento que em que a gente precisa encarar nossos sentimentos e pensamentos sobre alguém. Minha relação com Ian já não mais a mesma daquele primeiro encontro. E eu já tinha consciência disso, mas nutria dúvidas sobre qual era exatamente o nosso estado no momento. Ian me irritava mais do que qualquer pessoa, e de formas tão variadas que eu não saberia dizer qual de suas manias, características ou ações me tiravam do sério. O que me irritava ainda mais.

Em oposição, eu provavelmente confiava mais nele que em qualquer outro membro da equipe, mesmo que inconscientemente. Ian conhecia segredos meus, fraquezas e medos. Ainda assim, ele se mantinha quieto quanto a eles, compensava minhas falhas com sua própria força, e se oferecia como refúgio para mim. Um refúgio estranho e irritante, mas seguro. Algo dentro de mim sabia que podia depender dele em meio às crises de desespero que me assombravam nas ocasionais visitas de Daímonas, ou confiar em sua espada para guardar minha retaguarda. Sondando meu próprio coração, eu podia reconhecer tudo isso. Mas eu não tinha ideia de seus motivos para me proteger assim.

Talvez essa fosse justamente a razão pela qual eu me irritava tanto com ele. Por que? Por que ele cuidava de mim? Por que me empurrava para longe? Por que sempre sabia o que dizer para desfazer minhas confusões? Por que escondia seu passado? Por que não conseguia dormir direito? Por que eu nunca o via sorrir? Por que sempre parecia como se estivesse carregando o peso do céu nas costas? 

Eis o motivo para o aperto em meu coração. 

Estendi a mão em um momento involuntário, e passei os dedos pelos fios pretos e lisos de seus cabelos, vendo sua expressão suavizar por alguns instantes. 

"Ah, seu idiota..." lamentei enquanto suspirava e fechava os olhos ao encostar a testa na beira da cama "Por que não me deixa te desvendar? Por que insiste em andar sozinho...?"

— Lotty... - ele sussurrou em uma respiração entrecortada.

Ergui o rosto e prendi a respiração, fitando-o. Uma lágrima lentamente cortou caminho por sua face, molhando sua pele bronzeada.

— Me perdoa... 

Engoli em seco, e recolhi a mão, temendo que ele acordasse. E de repente eu já sabia exatamente qual era o meu próximo passo.

Ian acordou alguns minutos depois, mas nesse momento eu já estava de volta ao meu canto junto à porta da varanda, imersa em meus pensamentos sobre um certo filho das águas. Ele havia voltado a murmurar coisas desconexas em seu sono agitado, até finalmente se erguer sobressaltado e ofegante. 

Esperei que ele recuperasse a calma, ounvindo-o ir ao banheiro e lavar o rosto. Virei o pescoço e acompanhei seus movimentos com olhar. Ele estava fazendo de conta que nada havia acontecido, enquanto vestia a jaqueta e analisava o fio de sua espada com um ar crítico.

Não consegui mais me segurar. Preparada para iniciar uma discussão, perguntei em um tom sério:

— Ian, com o que sonhou?

Ele me fuizilou com o olhar.

— Não é da sua conta.

— Mas...

— Não se meta, novata. - ele colocou a bainha da espada no ombro - Agora vá dormir que vou assumir o turno.

Fechei a cara, insatisfeita com sua frieza, mas já tendo esperado por isso.

— Meu horário ainda não acabou. - falei - Volte a dormir, eu te chamo em uma hora.

— Iie. Não vou mais dormir. Pare de desperdiçar tempo e vá logo pra cama.

Emburrei.

— Se é assim, ficamos nós dois acordados.

Ele deve ter se dado conta de que eu não recuaria, pois soltou um suspiro e assentiu, sentando ao meu lado no chão da varanda. Link piou e saltou para mais perto dele, em seguida pedindo por carinho. Eu observei o pequeno receber um cafuné de bom grado, e me perguntei como Ian conseguia ser mais gentil com meus animais que comigo. Acabei dando de ombros. Eu mesma chegava a preferir a companhia deles a de algumas pessoas. 

Devemos ter passado quase dez menutos em um silêncio confortável, ele satisfazendo os pedidos manhosos de Link, eu encarando o papel rabiscado em meu colo enquanto girava a caneta nos dedos. 

Até que soltei um suspiro exasperado, que o fez me encarar com uma expressão questionadora.

Coloquei-me de pé e estendi a mão para ele.

— O que? 

— Cala a boa e vem comigo. - mandei.

Ian cruzou os braços, exigindo uma resposta. Revirei os olhos.

— Vamos treinar. - falei - Quero te avaliar.

Ele ergueu uma sobrancelha.

— Me avaliar? 

— Sim, te avaliar. - respondi em tom de desafio - Vou analisar seus movimentos, descobrir suas manias, até prever suas ações. - fiz uma pausa - E sem usar o Chess Game. 

Sua expressão mostrou claramente que ele não gostava do que eu dissera. Àquela altura eu já sabia que o garoto parecia ser um tanto averso aos padrões e avaliações lógicas nas quais eu tendia a encaixar as pessoas e as situações, e foi por isso que eu o aticei justamente com aquela fala. Ele era como o oceano, em seu anseio pela liberdade da imensidão, e em sua imprevisibilidade. E parecia gostar bastante de ser assim.

— Você parece um pouco convencida de mais sobre uma vitória. - ele franziu a testa, e aceitou minha mão estendida - Vamos acabar logo com isso. 

Portanto, em minutos, estávamos ambos no jardim do hotel, encarando um ao outro, espadas empunhadas e posição de luta.

Se eu quisesse apenas vencer uma luta contra Ian, eu podia facilmente usar minha habilidade secundária, e poderia enxergar tudo. Mas não era mais o meu propósito. Na verdade, nem eu mesma tinha a certeza do motivo pelo qual eu o havia chamado pra lutar, já que meu objetivo final era lhe pedir permissão para olhar seu passado. No entanto, eu sabia que esses momentos costumavam funcionar para mim como um remédio contra a confusão.

E funcionou. 

Claro, acabei como sempre: exausta e derrotada, arfando deitada na grama. Ian me olhou de cima, suspirou, e então sentou ao meu lado.

— "Você não irá me entender. Você pode apenas me sentir. Sempre estive fora das regras. Sou o meu mistério favorito. Não permito que ninguém me entenda; que alguém tente criar uma lógica; sobre a maneira livre de viver..." - recitou, fitando o céu - Zack Magiezi.

Ergui meu corpo, apoiada nos cotovelos, e ele olhou para mim, seus olhos brilhando por trás de seus fios pretos molhados de suor.

— O mar é agitação, é tempestuoso, é imprevisível. Mas também é equilíbrio, é vida, é calmaria. O oceano aprendeu a se comportar em cada lugar, luar e ambiente. Eu também.

Senti meus braços começarem a tremer de cansaço, mas meu olhar estava preso ao dele e não pude me desvencilhar.

— Você não vai conseguir prever meus movimentos. - continuou - Porque eu sei o que fazer quando não sei o que vem depois. Essa é a minha habilidade. Posso ser os dois: humano e oceano, previsível e imprevisível.

Consegui dar um sorriso. Então me joguei na grama.

— Então é isso. - falei, e fechei os olhos - Entendo.

— Finalmente? 

Soltei um risinho.

— Não é o que está pensando, bobo. - continuei, e o fitei - Eu tenho certeza do motivo de eu me sentir assim sobre você.

Ele cravou os olhos em mim, sua face assumindo um tom mais avermelhado, embora sua expressão não tenha mudado. 

— É como você disse: fiz de você meu mistério pessoal. No entanto, sou incapaz de desvendá-lo. - cobri meus olhos com o braço - Ah, droga, isso é frustrante.

Fiz uma pausa, hesitando por um momento, e então continuei:

— Mas é pior ainda o fato de você não entender. 

Ele pareceu surpreso:

— Entender o que?

— Que eu não quero simplesmente prever você, ou te colocar em uma caixinha onde possa determinar qual será seu próximo movimento. - continuei com os braços cobrindo os olhos enquanto falava aquilo que nem havia planejado - Baka. Eu não estou mais tentando criar uma lógica sobre a sua "maneira livre de viver". O que quero é te desarmar... Conhecer você. O que há por trás dessa armadura que você usa ao redor do seu coração? Eu... Estou curiosa, Ian. - fitei seu olhar espantado - Como você ficaria... O que seria sem esse peso que carrega? 

Ian permaneceu em silêncio, pasmo e imóvel. Eu sabia de sua surpresa, embora sua expressão pouco externasse isso. Finalmente eu começava a verbalizar minha intenção:

— Ian, eu lutei contra Charlotte.

Seu maxilar trincou, em um sinal claro de irritação.

Mantive minha decisão, apesar de sentir o nervosismo correr por minhas veias, e não alterei a expressão séria com que o encarava de volta. Eu não ia desistir. Não desistiria de conhecê-lo, de descobrir a verdade sobre ele. E isso não era só porque eu o havia transformado em um desafio para mim mesma, uma espécie de mistério pessoal. A verdade é que eu precisava dele. Se eu queria cumprir com o meu destino e limpar a Família, eu necessitava de sua ajuda, mas não podia contar com ele sem antes conhecê-lo. 

Eu precisava conhecer seus medos, seus pesadelos, seus traumas, suas alegrias, seu passado. O que o fazia perder o sono? Quais feridas ele carregava dentro de si? Por que ele vivia nesse "push and pull" comigo? Protegia-me, salvava-me, cuidava de mim. E então me empurrava para longe. 

Mas acima disso tudo, meu coração implorava por se encontrar com o dele, por ver suas cicatrizes, e por tentar curar suas feridas. Eu tinha certeza de que os cortes profundos de sua alma sangravam tão intensamente... apenas porque ele se negava a deixar qualquer um ajudá-lo a estancar o sangue. 

— Você não pode...

— Por que não? - interrompi - O que pode ter de tão ruim no seu passado que você não me deixa ver de jeito nenhum?

Ele ficou de pé, chateado. Levantei também, apesar dos músculos clamando por descanso. 

— Você vai se machucar. Tem que ficar o mais longe possível de mim, da minha história.

— Idiota! Não saber me machuca mais ainda! Eu fico sendo jogada de um lado a outros por todo tipo de especulação, sem ter a mínima ideia do que se passa com você, sem ter acesso a você! - eu o segurei pelos ombros - Você é meu parceiro, e eu não sei nada sobre você! Você quer que eu "te sinta" mas não me deixa te conhecer, Ian! Como espera que eu possa contar com você se nem sei quem você é?

Ele de desvencilhou de mim, e me lançou um olhar ferido.

— Eu não sou o meu passado.

— Mentiroso. 

Ele me encarou, mas eu desviei o olhar para o chão antes de olhar em seus olhos novamente. Quando o fiz, os meus estavam tomados por lágrimas.

— Está estampado em você. - sussurrei - Está claro como você sofre. Eu vejo isso, Ian. Eu vejo que não dorme, que carrega um peso grande de mais, que guarda alguma coisa muito triste aqui dentro. Eu quero te absolver desse passado que te assombra. Do que dói aqui. - pousei a mão em seu peito esquerdo - Só me deixa te ver, por favor...

Ele sustentou meu olhar por tanto tempo que pareceu que tudo ao nosso redor havia desaparecido. E eu notei seu rosto de uma forma que nunca havia notado antes. Aquelas íris verde-mar pareciam carregar consigo essência do oceano, mas suas ondas tinham um oscilar triste. Percebi que água se acumulava nos cantos de seus olhos. Sob meus dedos, o pulsar dele era forte. Sua mão segurou a minha com delicadeza, e então a tirou de seu coração ao mesmo tempo em que ele me dava as costas e começava a caminhar de volta para o quarto.

— Faça como quiser.

 

Foi tudo mais doloroso do que eu havia imaginado. 

Primeiro havia um ambiente feliz, um adulto e duas crianças brincando numa praia paradisíaca. Era uma imagem cinemática, com tanta luz e sorrisos que me levou a querer guardá-la para sempre.

— Ian, você é o mais velho. - o homem disse - Precisa proteger sua irmãzinha. Ela é a nossa jóia, certo?

O menino assentiu com um ar responsável.

— Lotty, você precisa cuidar do seu irmão, ou ele ficará solitário. E sempre faça o que ele te disser, certo?  

A garotinha exibiu os dentes de forma doce, concordando.

Era feliz. Mas durou pouco.

Chovia. Charlotte ainda era uma criança, escondendo-se atrás do corpo de Ian, que encarava cinco pessoas com um olhar feroz. Ambos estavam feridos e exaustos, pareciam esgotados, como se corressem há dias. Os inimigos se afastaram um pouco, e deram passagem a um homem adulto. Ele era a imagem exata de Ian, mas seus olhos denunciavam um fato terrível: estava possuído. 

— Papai! - Charlotte gritou, e tentou correr até ele, mas Ian a parou, empurrando-a para trás de si mais uma vez e erguendo a espada para o homem.

"Kai" lembrei, pasma. 

Kai mandou que os demais demônios saíssem:

— Vão atrás dos outros. Eu cuido dos dois. 

Eles obedeceram e, assim que sumiram de vista, o corpo de Kai tremeu com um sussurro:

— Ian... Mate-me...

Arregalei os olhos. Ele não ia...?

O garoto chorava.

— Pai...

O corpo se endireitou, o rosto esboçou um sorriso e o punho apertou a espada com mais força. 

— Morram. 

E avançou contra os dois. 

Ian interceptou o golpe firme da espada, mas perdeu o equilíbrio com a diferença enorme de força. Ele usou a perna e chutou a barriga do pai, mas parecia hesitante em o machucar. Kai girou o corpo para desviar da estocada desajeitada que ele agora desferia, e com isso ficou de frente para a pequena Charlotte. Com um sorriso, ergueu a lâmina para a cabeça dela.

— Lotty! 

Ian se colocou entre os dois, a chuva paralizou no ar e rapidamente formou um escudo de gelo tão grosso que deteve o golpe. Charlotte gritou e o chão se partiu, raízes grossas emergindo e se enrolando ao redor as pernas de Kai, derrubando-o e prendendo-o ao chão. Ian moveu as mãos e cristais afiados de gelo se formaram, como lâminas flutuantes, prestes a cair sobre o corpo quase imobilizado de seu pai. Mas Kai conseguiu soltar uma das mãos e sacou uma adaga de seu bolso. Ele a girou na mão e fez um movimento veloz, atirando-a na direção... de Charlotte.

— Não! 

Os cristais de gelo caíram, a adaga raspou a pele do ombro da menina, depois de ser desviada pela mão de Ian, agora ensanguentada, as raízes pararam de lutar ao mesmo tempo que o corpo que envolviam se tornou imóvel. Um trovão soou ao longe, e Ian e Charlotte encararam desesperados o corpo transpassado de seu pai. 

Kai estava morto, atravessado por cristais de gelo.

Tudo ficou escuro. Com um pouco de esforço, pude ver a garota encolhida no chão, abraçada a Ian. O recinto era apertado, e ela parecia ter dificuldades para respirar. Uma luz iluminou os dois, e eu soube que a cela devia ter sido aberta. Ian olhou para a irmã, deu um beijo em sua testa e, pegando as mãos da menina, levou-as até os ouvidos dela.

— Não escute, certo?

Ela assentiu, com lágrimas nos olhos. Ele ficou de pé e mancou até a entrada, passando por ela. A porta se fechou, e a escuridão voltou. Charlotte ficou mais ofegante e começou a chorar, mas o que ouvi em seguida me deixou paralizada: gritos de dor e agonia, implorando por misericórdia. 

Era a voz de Ian.

Senti meu coração doer, um desespero tomar conta de mim. Queria com todas as forças correr para ele e salvá-lo, mas aquilo era apenas uma reprodução do passado, não havia escapatória. Por isso chorei à medida que seus gritos continuavam, enquanto Charlotte agarrava a cabeça e soluçava.

Quando os clamores pararam, ele foi jogado para dentro novamente, e em seguida uma garrafa com alguns goles de água. Seu corpo extava ensanguentado e ferido, e ele caiu ofegante no chão. Charlotte correu para ele, em meio a lágrimas e em um desespero evidente, e o ajudou a sentar.

— Lotty... - ele falou fracamente - Você não ouviu, certo?

Ela fez que não, e ele fechou os olhos.

— Eu sei que ouviu. - murmurou - Me perdoa, Lotty... Me perdoa...

— Bobo... - ela sussurrou - Pare de dizer isso...

Ian foi perdendo a consciência.

— A água... beba... - mandou.

A garota pegou a garrafa e a levou à própria boca por alguns segundos, fingindo beber. Ela então a colocou nos lábios do irmão, e ele tomou inconscientemente, ávido. Suas feridas começaram a sarar, mas em um ritmo bem mais lento que o que eu estava acostumada a ver. Ele caiu no sono.

— Bobo... - Charlotte murmurou, abraçando-o - Como eu poderia beber com você assim por minha causa?

O momento mudou novamente. Ian se levantava mais uma vez para caminhar para fora da cela, mais uma vez mandando Charlotte tapar os ouvidos, mais uma vez encarando firme e dolorosamente a tortura que viria a seguir. 

— Você não. - uma voz gélida o parou - Hoje nós queremos a garota. 

Ele arregalou os olhos, e eu vi o terror expresso ali por dois breves segundos, mas logo ele substituiu tal expressão por uma determinação feroz, colocando-se em postura defensiva.

— Eu já disse. - falou - Vocês só encostam na minha irmã passando por cima do meu cadáver.

Avançou mais uma vez, e agora Ian agarrava a mão de Charlotte e a arrastava em uma corrida desajeitada por um abiente caótico. Vi celas espalhadas ao redor, corpos possuídos correndo de um lado a outro e semideuses lutando ou fugindo. 

Os dois pararam de vez ao darem de cara com alguém. Reconheci imediatamente o rosto delicado e firme de Izumi. Ela os encarou por alguns segundos, e então se moveu a uma velocidade impressionante, cortando dois eidolons que os perseguiam. Quando ergueu o olhar para eles novamente, perguntou:

— Ian e Charlotte? 

O garoto assentiu.

— Ótimo. JJ-sama me mandou. Estou aqui pra buscar vocês.

Outra cena se desenrolava agora. Percebi que alguns anos já haviam se passado, e agora Ian estava poiado em um dos joelhos, jurando lealdade a Izumi, tornando-se seu familiar. Em seguida, Hiro e Charlotte lutavam juntos em algum tipo de treinamento, depois vi a garota se esgueirando para a cama do irmão durante a noite, vi meu pai lhe entregando as foices, vi seu choro noturno ao observar Ian sofrer durante o sono...

 

E quando dei por mim, abria os olhos para o teto branco do quarto. E as lágrimas que corriam por meu rosto não eram causadas pela dor de cabeça. 

Encolhi-me na cama, puxando os lençóis até os olhos e soluçando mais um pouco. Nenhum dos outros sonhos que tive ao usar o Past Dream havia doído tanto quanto aquele. Doído no coração. 

— Eu falei que ia se machucar. - a voz de Ian me alcançou.

Tirei o lençol dos olhos, fitando seu rosto. Ele estava sentado no chão ao meu lado, a cabeça encostada na parede, o olhar evitando o meu.

Tentei negar.

— É apenas a dor de cabeça... - comecei, mas me detive por alguns segundos, e recomecei, chorosa: - Desculpe. É só que agora eu entendo.

Ele olhou para mim.

— Entende?

Voltei meu rosto para o teto, incapaz de parar as lágrimas, calada por minutos afins. E então perguntei:

— Ian, você ainda me odeia?

 

 


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Notas finais do capítulo

Heeey 0/
O que acharam? No que será que vai dar essa conversa aí? Por que será que a May fez essa pergunta?
Críticas, expectativas, pedidos, teorias? Viram algum erro? Deixa um comment aí me contando tudo tudo tudo ♡
Obrigada pela leitura e até a próximaaaaaa ♡♡



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