Segredo Virtual escrita por Alehandro Duarte


Capítulo 36
2º T: Capítulo 11 A Origem do Mal


Notas iniciais do capítulo

Já fazem 84 anos...



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"Existem erros e crimes. O mal que fez no passado se encontra em qual categoria?" - Homem Corvo.

 

Seu olhar ébano era discreto e misterioso. Não mirava para nenhum corpo vivo ali, parecia hipnotizada pela escuridão no fundo da sala. Enquanto seus olhos estavam quietos, outros não paravam de encará-la de cima a baixo, esperando que quando os fitasse começasse a dar respostas. Marina deu um passo adiante, chutando o vidro que separava Sara de todos ali.

— Temos tempo. Muito tempo.

O olhar perdido tomou outro rumo, dirigindo-se ao chão do lado oposto, que agora transformava-se em uma tela luminosa, marcando a contagem regressiva de duas horas que tomava aquela parte inteira do lugar. As oito pessoas abaixaram suas cabeças assustadas, jamais imaginando a tamanha tecnologia oculta debaixo de seus pés. Os mais novos jogadores ficaram impressionados, enquanto os que estavam naquele hall de sangue há mais de 10 anos apenas aceitaram.

— Creio que a história é interessante demais para perder sequer um minuto dela, não é?- Posicionou-se Marina, positivamente ansiosa para os segredos que sairiam daquela boca que beijou no hospital.
— Sara... - Lídia aproximou-se do vidro, colocando sua mão sobre ele, sentindo aquela energia íntima que sua antiga amiga trazia a ela.- O que você está fazendo?
— Estou dando respostas, era isso que queriam. Podemos falar um pouco sobre esses dez anos, depois.- A antiga Girl Blood assassina de bebês sabia todas as perguntas que aquela gente nem um pouco desconhecida queria fazer a ela, e se a mulher que daria a vida para salvá-la optava em indagar pela posição em que estavam, significava que por aquele momento a sentimental estava pensando de verdade. 
— Comece. - Marina agachou-se, e se acomodou em cima da placa de luz gigante, que por algum acaso não incomodava os olhos de ninguém caso não olhassem diretamente para ela. 
Miguel e Rose fizeram o mesmo alguns segundos depois, e aos poucos, metade deles já tinha se rendido à contação de histórias. Agora faltando uma hora, cinquenta e oito minutos e cinquenta e nove segundos para o cronômetro zerar. Sara olhou para a marca que Lídia havia deixado no vidro com sua mão, pensando nas suas próximas palavras.
— Vocês lembram o que faziam durante o verão de 1998?- Iniciou Sara, começando uma longa história.- Eu talvez estava brincando com bonecas...Mas em outro lugar, Dylan, começava a descobrir como brincar com corpos.

 


—Verão de 1998—

 


Ninguém aqui deve se lembrar, porém nessa época completaria um ano desde que Jason fugiu de casa. Depois de matar seu pai, Sofia não iria deixar seu filho matar outra pessoa, por isso o acorrentava no porão. Bem, ele conseguiu escapar. Ficou um ano e mais alguns meses desaparecido, até que...
— Achei você!- Gritou o pequeno monstrinho loiro. Era realmente uma graça com seus nove aninhos. Brincava de esconde-esconde com algumas crianças da rua. Ele dizia que amava brincadeiras de correr ou se esconder, tinha uma clara preferência por jogos aonde precisasse se ocultar em lugares escuros e estratégicos. Seus pequenos olhos percorreram todos os amigos ao redor, se sentindo feliz por ter toda aquela companhia seguindo o seu ritmo. Dylan adorava os momentos onde todos estavam juntos e felizes. Aquela energia divertida era um prato que alimentava sua imaginação, criando várias ideias loucas para pôr em prática com o seu grupinho algum dia. 
— Agora chega, eu tô morrendo de sede.- Arfou um dos meninos, indo acompanhado de outros até sua casa. Dylan se aproximou de um muro baixo e sentou-se, vendo suas companhias indo embora.

Uma gota de suor percorria sua testa cansada, caindo em sua bochecha como uma lágrima. Seus olhos brilhavam olhando para o bairro ao redor, amava aquele lugar, aquelas pessoas, o espírito de aventura que exalava. Seu carinho por Sanru se devia aos momentos felizes que sempre teve por lá, devido à ocultação de Sofia com os males que existiam pelas redondezas. Mesmo que a sua vida estivesse meio pra baixo, aquela criança sempre dava um jeito de se jogar pro alto. Não era difícil fazer o pequeno Dylan feliz, ele só queria se divertir, isso era tudo. Por um momento, o menino repousado em um muro pensou ter visto alguém percorrer a rua de um jeito acelerado. Bem, não era exatamente um pensamento, e ele percebeu assim que o vulto saiu das sombras de um beco para continuar a correr. Sua fisionomia era familiar, familiar do jeito mais literal possível.
— Jason? - Se questionou em voz baixa, cerrando os olhos para tentar ver melhor. O sujeito virou a rua, o que deu a deixa para Dylan se levantar e persegui-lo.

Caminhou com cautela cada rua na qual o suposto vulto de seu irmão entrava. Era uma adrenalina que nunca tinha sentido antes, perseguir alguém misterioso sem ser notado. Passava por várias casas conhecidas, imaginando se de repente alguns conhecidos fossem sair delas para se juntar a ele em sua investigação sobre a sombra do passado. Após tal devaneio, entrou em uma rua que tão poucas vezes tinha entrado. Naquele lugar havia uma casa que já tinha ouvido falar em algum momento, era grande e diziam que tinha pertencido à uma mulher muito bonita, agora tudo o que viam entrar e sair da casa eram pessoas que não moravam na cidade, chegando nos horários mais inoportunos. Não haviam muitos relatos para se ouvir, aquela casa estava numa rua aonde os vizinhos eram praticamente idosos anti-sociais ou adultos solteiros que trabalhavam o dia todo. 
Pelo destino, foi justamente naquela casa aonde o garoto perseguido entrou. Dylan esperou um pouco, escondido do outro lado da rua, com tempo suficiente para perceber uma sombra de vigia na janela.

Era uma casa realmente maior do que as outras da cidade, mas não a maior de todas. Tinha uma aparência americanizada com algumas pilastras de madeira pintadas de branco logo na entrada, servindo de apoio a um pedaço do telhado, o resto da residência era praticamente uma casa simples, porém ampliada, toda marrom-acinzentada, com um quintal escondido nos fundos. 
O bisbilhoteiro ficou atento à janela, correndo em disparada ao perceber que a sombra de vigia havia se ausentado de seu posto. O vento frio atingiu todo o seu corpo, lhe dando a mesma emoção de quando corria para bater seu nome no esconde-esconde. Antes mesmo de chegar à janela, precisou se jogar no chão embaixo dela. O vigia tinha voltado, mas não o tinha avistado. 
Aquele gramado era gostoso de deitar e parecia desperdício deixar aquele verde fofo nas pequenas passagens laterais e no fundo da casa. Seu corpo se arrastou para a parede abaixo da janela, espreitando à hora certa de entrar. O segurança da tal misteriosa casa ficou parado por alguns segundos, o que fez o pirralho com uma precária noção de tempo questionar-se sobre a presença de sua barreira momentânea. 
Os passos começaram a se afastar, uma porta se abriu tão longe quanto aonde os passos soaram parar e logo se abafar. Dylan se levantou, pondo sorrateiramente a cabeça para dentro da casa. Posicionou suas mãos sobre o apoio de madeira e levantou seu corpo para dentro, sentando de lado na janela. Deu seu primeiro passo para o seu primeiro maior erro e correu para a última porta do corredor. Seu olhar curioso se manteve no buraco da fechadura, onde podia espiar a sala principal. Era uma linda sala com um carpete vermelho pelo piso preto e debaixo do sofá branco. Uma escada de madeira, com altos vasos de flores negras no fim de seus corrimões, servia de passagem para um tapete preto que descia por todos os degraus. Um lustre enorme enfeitava o teto do começo da escada, e se tinha uma coisa que Dylan podia dizer dele é que era a coisa mais elegante e provavelmente cara que já tinha visto até então. É lógico que não demorou muito para a pergunta vir em sua mente: "Por que alguém com tanto dinheiro viria logo para Sanru?"

 

 

Sara direcionou seu olhar enigmático para Daniel que olhava para ela atentamente assim como todos da sala. Seus lábios pintados em vermelho que eram o único destaque de cor em sua aparência separaram-se, prontos para iniciar uma frase fora da história que estava contando.
— Isso foi muito tempo depois do que aconteceu com você, Daniel.- Disse calmamente, não tendo pressa para parar ou continuar o que estava relatando. A expressão do homem citado foi como um nó dado na mente, "Do que Sara estaria falando?", provavelmente questionava-se.- Você se lembra, no fundo sabe que se lembra de algo...
— Ok, diga-nos do que está falando.- Marina se intrometeu, tentando buscar respostas sobre um novo núcleo agora levantado. A mulher sozinha do outro lado do vidro não moveu um centímetro de qualquer parte do seu corpo. Aquilo iria ficar no ar.

— Enquanto Dylan olhava pelo buraco da fechadura, pessoas conhecidas e desconhecidas começaram a chegar.

 


A criança via vários pré-adolescentes entre onze e treze anos se enfileirando horizontalmente na grande sala, seguidos por homens altos e fortes que usavam algum objeto grande em suas cinturas, como armas que já tinha visto na televisão. Eram vinte ou vinte cinco ‘’quase-não-mais-crianças’’ que enquanto contava chegavam mais. 
Agora, ele podia reconhecer algumas delas. Eram duas de vista e uma que sabia o nome, Ellen, a filha de um homem bastante amigo de sua mãe. Ela e quase todo mundo ao redor tinha um olhar sério que encarava uma porta dupla de madeira da onde iria sair alguém muito importante, se é que tinha ouvido direito.
.- Todos na fileira.- Ordenou um dos homens fortes, passando na frente de cada um que estava extremamente reto. As meninas tiverem que amarrar seus cabelos em rabo de cavalo, porém todos usavam o mesmo uniforme cinza sem graça. Cochichos tomaram todo o espaço, nenhum dos superiores pediu para se calarem, pelo jeito ainda faltava gente. A tão vigiada porta se abriu, conseguindo a atenção do cômodo inteiro, inclusive alguns guardas que se assustaram. Um velho de cabelos e bigode negros apresentava sua roupa formal tão escura quanto seus pelos faciais, apoiado numa bengala ele se aproximou da fileira de crianças que ia de uma parede à quase outra. Aquele era quem chamavam de Homem Corvo, um senhor que ajudava no treinamento de crianças para os Cold Bloods de várias regiões. Às vezes ele vinha para a cidade, ficava em torno de dez dias e depois voltava para seja lá aonde. Seu apelido vinha da sua grande semelhança com um corvo, inclusive uma lenda macabra rondava os integrantes de seu treinamento. Dizem que ele matou o próprio filho com a justificativa de que anjos negros o estavam aterrorizando para que fizesse isso, e apenas assim seu primogênito seria livre, mais tarde naquele mesmo dia um corvo teria saído da boca do morto e pousado no ombro do Homem Corvo. Às vezes Sons estranhos saíam da sua sala, mas se alguém realmente viu alguma ave pela casa, nunca contou à ninguém. 
— Como estão?- Perguntou o anfitrião com um quase sorriso no rosto. Todos cumprimentaram com a cabeça, mostrando um sinal de serventia à essa figura tão mais alta. Ele voltou a caminhar em frente a fileira, batendo sua bengala à cada passo, com os olhos fixados no chão.- Está faltando dois meninos, não?
— Sim, eles tiveram um atraso. -Respondeu um dos homens fortes.
— Então vamos esperar. - O Homem Corvo bateu sua bengala no piso exatamente dez vezes antes de sentar-se numa cadeira de madeira perto do piano. As ‘’quase-não-mais-crianças’’ olharam entre si, ansiosas para enfim se tornarem membros de grupos de assassinatos por encomenda montados por todo o país especificamente para arrecadar fundos à uma organização secreta. Como elas tinham entrado nessa? Não era uma simples manipulação mental, havia tecnologia envolvida, uma tecnologia que só Sara e Dylan tinham conhecimento nos anos atuais, e se dependesse deles, nunca seria revelada.
Os dois garotos que faltavam chegaram na grande sala, com o rosto um pouco intimidado. O pequeno garoto atrás da porta também os viu chegar, um deles morava na mesma rua que a sua, não sabia seu nome, mas sabia que ele morava com sua avó. E o outro era... Jason? Dylan abriu a porta ferozmente, como se a sua vida dependesse da virada da maçaneta. A porta não só rangeu alto como bateu contra a parede, fazendo um estrondo seguido por um garoto correndo em direção ao recém chegado no local. O Homem Corvo olhou surpreso o menino que passou em sua frente como o vento, então virou a cabeça para ver o abraço que Jason receberia de seu irmão do meio.
— Jason! - Gritou Dylan, se tacando contra o corpo do irmão para um forte abraço. Jason ficou imóvel, apenas observando o guarda agarrar seu familiar e o afastar. - Me solta! Jason!- O pequeno olhou para o lado e viu aquele homem bigodudo caminhando em sua direção, até parar do lado do guarda que segurava a criança no ar.
— Solte-o.- O pirralho foi deixado em pé no chão, correndo de volta para o mais velho.- Ele é seu irmão?- O Homem Corvo conhecia os membros familiares de cada integrante de seu treinamento, fazia parte do seu trabalho gravar cada nome. Jason assentiu a pergunta, assim como todos tinham feito antes.- Qual é o seu nome, pequeno?- Ele se virou para o homem alto, não entendendo por que seu irmão estava ali.
— Dylan.- Respondeu-lhe.- Jason, por que você tá aqui?- O futuro Guy Blood ficou calado, esperando as ordens de seu superior. Qualquer coisa podia botar a vida de seu irmão em risco, se é que já não estava. O Homem Corvo pareceu pensante por alguns segundos, até que de sua boca saiu ordens.
— Deixaremos isso... - Gesticulou com a cabeça apontando para os ‘’quase-não-mais-crianças.’’- para depois. Podem ir passear pela casa, ir dormir, comer ou brincar um pouco. Daqui á algumas horas chamarei todos de novo, não se preocupem. Ainda hoje serão oficialmente membros do Cold Blood.- O Homem Corvo caminhou até a porta de sua sala, parando ao abrir uma brecha.- Dylan?- O pequeno olhou para o velho.- Vem?- Jason cochichou para que fosse, e então, ele foi, agarrando a mão livre do homem, o que o deixou um pouco surpreso.

Os dois entraram na sala, e a fecharam. O Homem Corvo foi logo à pequena mesa de vidro no centro da sala, onde ficava uma garrafa e um copo, ele colocou um pouco do líquido no copo e bebeu. A sala que era cheia de animais empalhados, cheirava à lareira, mesmo lá não tendo uma, bem diferente do resto da casa que era sempre gélida, ali era aconchegante. Dylan ficou bastante entretido com o alce na parede, o carpete de urso, as aves empalhadas, uma escrivaninha perto de uma prateleira cheia de livros. Porém, quando aqueles olhos saíram dos animais, pousaram encantados numa mesa enorme afastada no final do cômodo. Era uma cidade inteira, cheia de prédios e montanhas ao fundo, tinha placas, carros, bonequinhos representando os cidadãos. Aquela era a maior e mais belíssima casa de bonecas que já tinha visto, se é que podia chamar assim. 
— Pode ir até lá se quiser.- Disse, percebendo o olhar da criança.
— Você tem filhos? - Perguntou, enquanto se aproximava, sem desviar nem por um segundo o olhar daquela cidade que mesmo pequena parecia ser bem maior que sua.
— Não. - Ele levantou o copo até a boca, mas não bebeu, apenas encostou os lábios nele. - É bonito, não?
— É perfeito. - Certa admiração vinha de sua voz. - Onde fica esse lugar?- O Homem Corvo levantou-se, indo na direção dele.
— Bem longe daqui. - Suas mãos se entrelaçavam atrás de suas costas, como alguém sábio que tinha muito para dizer. - Está vendo as pessoas marcadas com um "X" vermelho?
—Aham. -respondeu o menino.
—Estou num jogo com eles. - Dylan não se atreveu a perguntar, sabia que depois de um breve silêncio, iria receber informações. - Eu os achei, estavam perdidos numa vida pacata, sem grandes emoções. Mas quem dera entendessem a história que construí pra eles. - sua mão enrugada se direcionou a um boneco no topo do prédio, e com um pequeno peteleco o derrubou.- Uma mulher que conhecia queria esse jogo pra ela, ela sim sabia a adrenalina de governar algo, ser um Deus.
— Ser um Deus tem muitas responsabilidades. - Os olhos azuis enfim se direcionaram a outra coisa, agora nas pupilas escuras do ancião. 
— Para ser um Deus só precisasse de duas coisas: ter poder sobre alguém, e colocar medo em outro alguém.
— Mas se for assim, qualquer coisa que consiga controlar outra é um Deus. - retrucou, aquele homem o estava fazendo pensar.
— É complexo, mas muito, muito mais fácil de entender do que fórmulas matemáticas. - O garotinho fez um som peculiar com a boca, mas não disse nada, entrando novamente em um breve silêncio.
— Como funciona esse jogo, afinal? - Indagou, segurando um dos pequeninos homens.
— Ele não é para ser jogado com bonecos, mas com pessoas. É como um pique-esconde, só que mais perigoso.
— E o jogo tem nome?
— Eu gosto de chamá-lo apenas de "Tabuleiro da Vida". Não é um bom nome, eu sei.
— E você tem nome? - Perguntou um pouco curioso e confuso com a própria pergunta. 
— Tudo tem um nome, não? Me chamam de Homem Corvo. - Levantando uma das sobrancelhas grossas e pretas, botou ênfase em seu próprio nome.
— Esse não é um bom nome. - Dylan tinha uma fala meio risonha.
— Bem, meu "bom nome’’ é Bran, creio que significa corvo em gaulês.
— Os corvos te perseguem, talvez devesse fugir deles. - Os dois trocaram um olhar estranho, como se algo os conectasse de algum modo. 
Aquela pessoa mudaria a vida de Dylan para sempre.

 


— Naquele mesmo dia, o Homem Corvo ordenou que Jason voltasse para casa, e ele voltou. Porém, Dylan continuou a visitar o seu novo amigo, quase mais de 50 anos mais velho do que ele. - Sara descia as mãos sobre seu cabelo, detalhando o máximo que podia sobre aquele momento. De repente seus olhos pararam em Miguel, que a fixava assim como todos. - Eu sei, é estranho um homem velho ter uma amizade com uma criança, mas ele não tinha maldade alguma. O garotinho estava se tornando como um filho para ele. Tanto que dava pelúcias de coruja para seu aprendiz. O Homem Corvo estava compartilhando seus pensamentos com um aluno que mal sabia que aquele era seu professor.

 


O pequeno Dylan entrou correndo quando os seguranças na porta do escritório de seu mentor o permitiram passar. Ele era a única pessoa, fora o dono da casa, que podia entrar e sair á hora que quisesse daquela sala. Com um tropeço caiu no chão, mas não se desanimou e voltou a correr, agora na direção de quem queria atenção.
— Cuidado.- O Homem Corvo fechou o livro que estava lendo e o colocou numa pilha com vários outros em cima da escrivaninha.
— Eu preciso te ensinar um jogo novo que eu aprendi!- Seu entusiasmo fez brotar um sorriso no rosto do senhor Bran.- Você precisa de papel e caneta! E pelo menos...
— Cinco pessoas para jogar, o nome é " Quem matou Mary? ", você era o assassino, mas seu amigo de camisa listrada roubou, ele contou ao detetive que era você. - Dylan ficou boquiaberto, tudo o que ia contar foi completamente descrito.
— Como você sabe de tudo isso? - Perguntou, encarando severamente o homem com um sorriso bobo. O Homem Corvo apontou com a cabeça para o fundo da sala, havia uma televisão no fundo, estava ligada e passando exatamente o que ele descreveu, o som foi aumentado e uma música que Dylan gostava muito começou a tocar. - Sou eu!- Se aproximava, encontrando si mesmo no aparelho.
— Não é incrível poder gravar todos os momentos da sua vida e poder assisti-los sempre que quiser? Às vezes é até melhor que em nossas memórias. 
— Como... - Fascinado com o que presenciava, o menino se virou.- como você fez isso?
— Só foi gravado, como filmes, novelas e séries. Só que agora é na vida real. É maravilhosa, não é? A tecnologia? - O que pensou aconteceu, o garotinho ficou impressionado, assistiu aquela filmagem com a música que gostava por três horas seguidas, sem tirar o olho dali nenhuma vez. Um clima tinha sido estabelecido naquela cena de sua vida. Aquilo era incrível e entretenimento puro para o pequeno. Era uma cena de edição simples, mas tinha uma boa composição, ao menos para uma criança.

 


— Tempos mais tarde, o Homem Corvo morreu. Um dos seus seguranças ficou responsável por informar Dylan. "Ele morreu em confronto, no jogo que amava mais que sua própria vida", disse o segurança. O menino nunca digeriu aquilo bem, o seu mentor havia contado-lhe seus próximos passos, e como uma porta de sete chaves, nunca se abriu a ninguém.

— E depois que o velho morreu, ele começou a ficar louco?- Os pensamentos de Miguel estavam uma bagunça, assim como o seu quarto quando sua mãe não o mandava limpar.
— Dylan nunca foi louco. Mudou suas concepções sobre o mundo, a humanidade e a religião, tudo isso enquanto e depois do Homem Corvo estar vivo. Era uma opinião, não uma insanidade.
— Se você pensa que matar pessoas não é insano, você é insana. - Rose atreveu-se a falar, sendo logo depois segurada pelo braço por sua mãe, que sussurrava para ela ficar calada.
— Dylan queria mesmo fazer uma cena te mandando aqui, não é?- Marina provocou mais uma vez, fazendo com que Sara balançasse sua cabeça com um sorriso bobo entre os lábios.
— Não precisam fingir que não estavam interessados nessa história. Um antagonista precisa de motivos para ser anti o herói.
— Como sempre, exibido. - Resmungou Marina, novamente.
— Sabe, Marina, você me lembra a mim no início disso tudo; Ingênua, caçadora de encrencas, boca grande, sem limites e... - Uma breve pausa para dar ênfase na comparação final. - muito burra. - A receptora dos insultos fechou a cara, suas gracinhas haviam acabado. - Mas tem algo que nos diferencia: Eu não sou a próxima a morrer. - Todos olharam entre si pela milésima vez. - Sem mais delongas, vamos para 2011, ou seja, quando Dylan quase morreu. Isso depois da Rose nascer e o Rafael ser preso, praticamente cinco anos depois. - Agora todos tinham apenas uma direção para quem olhar. - A Marina e meu pai sabem exatamente como foi.

 


—2011, à noite em que Dylan quase morreu—

 


Lá estava o homem de 22 anos, drogado em um beco escuro, em um horário em que a cidade inteira já estava dormindo. Naquela época, tinha uma amizade virtual com uma menina que havia chegado a algum tempo de férias na cidade. Ele marcou de se encontrar com ela, mas o que a atual megera não sabia era que seria a primeira pessoa a deixar a cena do crime. Marina tentava gritar enquanto era agarrada e posta contra a parede pelos braços fortes de quem achava ser acima de tudo humano. 
Sua boca foi tampada com a palma da mão dele, e com a outra mão começou a tentar despi-la. Seus olhos se encheram de lágrimas, sentia pela primeira vez o medo absoluto. Mesmo sem esperança de sair daquela situação, continuava gritando abafadamente, tentando não olhar para as pupilas dilatadas de seu agressor:
— Pare com isso, Dylan!- Ela pôde ouvir, sem mesmo olhar para a voz grossa que proferira exatamente o que queria que ele fizesse, já o admirava. Dylan não parou, apenas continuou a tentar deixá-la nua com mais brutalidade.
— Você não tem nada haver com isso, vai embora. - Praticamente gritou. O pai de Sara olhou para o rosto chorão e aflito da menina, lembrando-se da filha que tinha em casa.
— Eu mandei parar. - Ao olhar para o lado, Dylan viu o velho que prestava serviços para o Cold Blood, apontando-lhe uma arma. Aproveitando a distração, Marina chutou o monstro por entre as pernas, e conseguiu enfim se livrar do verme que conhecera enquanto ele se afasta pela dor. Ela começou a correr e logo Dylan foi atrás também, mas antes que pudesse sequer encostar nela, foi baleado na cabeça, caindo de vez no chão. Marina virou-se assustada, Dylan estava morto na sua frente?
— Vai embora, garota! Eu me resolvo. - Ela respirou fundo, voltando a correr, sem olhar nenhuma vez para trás. Porém, antes que virasse para a próxima rua, Marina esbarrou em um homem negro e alto, aquele mesmo homem que no futuro estaria no hospital com Sara. Sentiu a adrenalina invadindo seu corpo, para então acelerar de vez os seus passos por ruas fantasmas.
— Que porra você fez?! - Gritou. Ainda tinha a mesma aparência que em 2025. O rapaz alto se ajoelhou ao lado do corpo, colocando seus braços, agora manchados de sangue, sob Dylan, voltando-se a se levantar levando ele no colo.
— Deixa eu ajudar...
— Dá o fora daqui agora, ou vai ser eu quem vai matar você!- Ameaçou, caminhando rapidamente até um carro preto e deixando o corpo no banco de trás. Não levou nem meio minuto para o pai de Sara ver o carro cruzar a esquina numa velocidade assustadora. Ele tinha certeza que aquele segurança sabia cada passo que seu patrão dava.

 


— Você modificou algumas partes.
— Marina vai tomar no cu. - Carla se indignou, impedindo mais frases interruptas de sua cunhada. Sara olhou admirada para sua prima, pela primeira vez a via tomar atitude após 10 anos.
— Muito bem, Carla. - Ela respirou fundo, pensando nas próximas frases que estava por revelar. 
— Pra onde ele foi levado?- Perguntou Lícia, a ex-empregada de Jessica, de braços cruzados e de costas para a parede de um jeito totalmente desleixado. 
— Ele era útil, diferente de você. - Uma patada que fez brotar um sorriso no rosto de algumas pessoas.- Tinha herdado muito dinheiro do Homem Corvo, mas só viu ele em espécie depois da maior idade. O que vocês nem imaginam é que antes mesmo desse incidente, Dylan já planejava "morrer”. - Sara usou seus dedos para representar as aspas de sua frase. - Ele queria ser tão grandioso quanto seu mentor, e se dependesse de dinheiro, não demoraria em conseguir isso. O velhote tinha contatos na organização, um médico cientista bastante experiente que havia escolhido o nosso vilão para colocar um teste em prática. Esse cara já estava na cidade a duas semanas, organizando seu laboratório subterrâneo. Inclusive, estamos pisando numa das passagens para ele agora. Quando Dylan foi baleado, o segurança que ele contratou pensou que era o fim de tudo. Essa era a hora e a chance perfeita para o cientista testar o que podia levá-lo de vez para a morte ou para a vida.
— Fala logo que teste é esse. - Apressou-se Miguel. 
— Calma, filho. Eu já chego lá. - Lídia se aproximou mais de Miguel, agora estava satisfeita, mandou os dois filhos se calarem. Felizmente, Miguel pensou que a palavra "filho" era apenas um jeito de se referir, sem parentesco algum. - O que Dylan descobriu ser tecnicamente possível, era o transplante de cérebro. Mas não era um cérebro normal, inclusive já era possível fazer isso a cinco anos atrás, bem antes do meu pai morrer, mas é lógico que a organização não deixaria isso vazar. Se as pessoas parassem de comprar remédios, a indústria farmacêutica iria à falência. 
— Não vejo como remédios têm conexão com transplante de cérebro. - Pronunciou Rafael. 
— Há milhares de doenças mentais que precisam do auxílio de drogas. E bem, não foi Dylan quem me disse isso, mas não precisa ser um gênio para perceber o quanto estamos sendo manipulados. A organização evoluiu muito em questão de tecnologia das máquinas, mas no corpo humano... Mudar uma parte do corpo de alguém é bem diferente de criá-la, e era isso que o cientista queria. Criar um cérebro artificial que funcionasse, sem precisar compartilhar isso com a organização.
— Então ele conseguiu fazer o transplante?- Perguntou Daniel. 
— Sim, Dylan foi cobaia de um experimento revolucionário, mas não sem sequelas.
— Não vejo como isso pode ser possível. - Comentou Rafael.
— Se naquela época o impossível era transplantar cérebros, agora deve ser transplantar almas. - Respondeu Sara.

 


Após seu segurança chegar no meio de uma madrugada, totalmente em desespero, a tentativa foi realizada em oito horas de puro medo e excitação, e deu certo. Dylan havia perdido todas as suas memórias, lembranças de que um dia tinha sido uma pessoa horrível, assim como quase todos os seus movimentos nas pernas, braços, no rosto. Desaprendeu a andar, e teve que recomeçar a pensar. 
Não era como um cérebro já pronto, com ele é mais fácil reaprender a se mover, já é experiente, apenas troca de usuário, bem diferente de um artificial que só foi testado na teoria, mesmo tendo quase certeza que pelo menos parte de raciocínios básicos já viria com o novo cérebro. Nesse meio tempo em que o rato de laboratório ficou sem avanço algum, o cientista e principalmente seu ajudante bem mais novo foram quem cuidaram dele. Hernando era o nome do segundo homem que estava na sala de cirurgia naquela noite, e a partir daquelas oito horas, durante longos meses não deixava de vê-lo nem por um dia. O ajudava na alimentação, dava banho, ajudava a praticar seus movimentos e a estimular sua mente. O aspirante a cientista criou um laço por seu paciente que tinha poucos, mas significativos gestos de reciprocidade. Quando seu raciocínio já estava melhor, Dylan foi apresentado ao seu antigo notebook, que continha vídeos explicando exatamente toda a sua história, motivações, e detalhes sórdidos dos planos do Homem Corvo que nunca foram postos em prática. Seu segurança havia roubado o aparelho logo após o incidente, Bianca inclusive o procurou durante uma semana, mas não tinha como achar algo que não estava mais em sua casa, como se algo fantasmagórico o tivesse furtado.

Aquele diário que Dylan gravou para si mesmo, continha informações sobre centenas de pessoas, foram quase mil horas gravadas e assistidas:
— Sabe o que eu descobri?- Começou um diálogo sobre suas descobertas com os vídeos. Estava em repouso numa cama que mais parecia uma maca, grudada no chão do quarto quase que totalmente branco e vazio. Hernando abria bem os olhos de seu paciente com os dedos, colocando a luz de sua pequena lanterna lá dentro.- Tem alguém na cidade gravando tudo pra mim, percebendo cada mínimo detalhe e anotando para eu saber um dia.- O médico arfou, não gostava da personalidade que conhecera juntamente com Dylan em antigos registros gravados.

 

 

 

— Você tem a chance de recomeçar suas ambições, seus desejos, seu estilo. - Ele desligou a lanterna. - Por que está tão fissurado em voltar a ser aquele homem?
— Porque esse homem sou eu. - Se sentando na maca, olhou no fundo dos olhos de quem o criticava, buscando compreensão. - Eu consigo sentir a essência dele dentro de mim.
— Já falamos sobre isso. É praticamente impossível, você só tem partes de lógicas, mas não de memórias, personalidades ou seja lá o que te faça ter esse delírio de ter sua essência antiga.
— E se eu buscasse tudo isso no meu cérebro antigo? Eu poderia achar de novo quem eu sou...
— Sua consciência morreu Dylan! Não existem mais aqueles pensamentos em você, e não quero que você faça existirem!- Os dois se calaram, olhando um para outro. - Faz oito meses, provavelmente os oito meses mais rápidos que alguém conseguiria melhorar. Você já consegue andar, falar, e tem uma determinação enorme, além de um raciocínio lógico melhor que o meu. Não desperdice a chance de ter enfim uma vida da qual possa se orgulhar.
— Eu tinha orgulho de quem era.
— Você não sabe, nunca vai saber. Aquele Dylan era uma pessoa ruim, mas esse... - Hernando colocou sua mão sobre a dele. – esse é o Dylan que merece um final feliz.

No décimo segundo mês, Dylan foi liberado e levado para a França, onde ficava um dos prédios comerciais da organização. Mal sabiam os franceses que ali eram decididas compras e vendas de trilhões de dólares. Empresas internacionais faziam esquemas para lucrar mais e se desenvolveram mais. Ele não entendia bem o que marcas famosas tinham haver com uma organização que controlava coisas até que meio aleatórias, mas nunca questionou, afinal, mexer com teorias da conspiração não era o seu objetivo. O Cientista morreu logo depois, e com isso, o menino de cérebro novo pôde compartilhar o experimento com a organização sem pedir permissão alguma, o fazendo assim ganhar mais soberania, junto ao novo grande médico descoberto, Hernando.

 


— No início de 2013, como acho que todo mundo já sabe, eu cheguei na cidade, e foi aí que Dylan começou a moldar seu jogo, verdadeiramente nos monitorando, como se fossemos o entretenimento mais puro pra ele.
— Era realmente interessante.- Concordou Lídia com os pensamentos de seu primo.- Estávamos o tempo inteiro fugindo. Quer dizer, ainda não deixamos de fugir.
— Talvez porque uma puta gostava de botar todos para sofrer nesse jogo estúpido. - Marina novamente abriu a boca, dessa vez em pé, batendo com seu punho no vidro. - Estaríamos bem se você não tivesse corrido atrás de merda pra fazer.
— Junte-se a Lícia e espere a sua vez de ser importante quando morrer. Afinal, alguém que mata crianças não tem muitas saídas sem ser o inferno. - Estava ficando macabro, todo mundo ficava calado para ouvir aquelas histórias, mesmo que indiretamente comentadas. - Digo por experiência própria.
— Todo mundo aqui concorda que todas as tragédias que aconteceram foram sua culpa!- Com um tom mais elevado, Marina queria dar sua opinião, ou descontá-la em alguém, mesmo sem ter conhecimento elevado do que aconteceu 10 anos atrás. Ela estava ocupada demais no próprio jogo de amnésia e podres de família. - Tinham milhares de caminhos pra você seguir, e pra onde você foi? Se meter com um bando de assassinos. A vida de todo mundo seria melhor se você não tivesse botado seu pezinho nessa cidade. - Sara deu uma risada sarcástica.
— Eu sou um tesão pra você, não é?- A atacante se distanciou do vidro, ficando vermelha. - Uma pessoa inválida faz tanto o seu tipo quanto uma que passou por muita adrenalina, sou um bom combo, não? - Sara podia lembrar-se dos toques que sua enfermeira, diante dela agora, a dava. - Mas, respondendo a sua provocação: eu sobrevivi a um grupo de assassinos, quase morri queimada, vi minha mãe ser morta na minha frente, descobri que meu pai era uma pessoa horrível, fui sequestrada e obrigada a me tornar uma assassina. Eu praticamente fiz todos a minha volta se tornarem monstros piores do que já eram. Então não tente me ensinar a fazer a escolha certa, porque ela nunca existiu. E se existisse, não é como se Dylan não desse um jeito de colocar uma muralha nela. -
De repente a luz que vinha do temporizador apagou-se, deixando todos em um breu. Alguém gritou logo que aconteceu. - Uma hora. - Disse Sara junto com o piso-cronômetro que reacendeu.
— Estão todos aqui?- Perguntou Lídia, olhando de um lado para o outro, já havia se passado metade do tempo?
— Vamos ter que acelerar. Para que ano eu vou agora?- O olhar da contadora de passados mirou-se em Rose, que se assustou com as indiscretas pupilas fixas em si. - Rose... Você não estava louca em nenhuma das vezes que viu Dylan, nem quando o viu no penhasco. - A garota ruiva engolia a seco, como Sara sabia daquele evento, aquele em que tinha empurrado seu pai biológico numa queda para rochas? E afinal, como ele sobreviveu?- Não era sua imaginação, ao menos não quando era ele ou se parecia com ele. - Rose percebeu que Sara queria dizer aquilo para ela, talvez fosse para orientá-la de que estivesse doente, mas não totalmente louca.
— Queremos saber como sabe de tudo isto?- Rafael interrompeu.
— Isso fica pro final. - Disse num sorriso sincero, achando divertido o interesse dele em saber. - Ok, vamos voltar à Paris.

 

 

O coração dele palpitava, andando à sua frente agitado e feliz. Paris não podia ser mais encantador! Até as folhas em que pisava eram encantadoras. Chegando à beira da descida de uma das escadas do parque, ele virou-se rodando, direcionando seu olhar apaixonado para o seu ‘’muso’’, que dava sinais de riso em seu sorriso tão esbranquiçado.
— O que foi?- Perguntou com um ar envergonhado, mas não deixando de ter a expressão daquele sentimento aconchegante em sua voz.
— Nada. Apenas nunca tinha visto a sua criança interior, é lindo. - Dylan se sentiu lisonjeado. Ao dar uma fungada, o homem inspirado, sentiu o cheiro delicioso de pão saindo do forno, junto com os odores de vários perfumes misturados.
— Paris faz jus aos estereótipos. - Disse numa gargalhada, enquanto se abaixava em um dos degraus. Seu namorado se juntou a ele, observando seus olhos alegres rodarem por todo o parque, acolhido pelo clima ao redor.
O menininho reacendido sentiu seu ombro sendo puxado, então ao se virar para olhar recebeu um doce beijo, retribuído por mãos nas bochechas do atrevido beijoqueiro. Aqueles dias felizes não duraram tanto tempo quanto Hernando gostaria. Os momentos belos foram trocados por um vício, vício que Dylan tinha cravado no fundo da sua alma. As paredes de um cômodo do grande apartamento deles foram preenchidas de anotações, fotos, linhas vermelhas ligando imagens com informações.
Era um mural dos acontecimentos que estavam acontecendo na cidade. Ele estava estudando as tramas, os jogos, os jogadores, suas origens, enquanto Sara ainda caminhava pelas ruas daquela interessante cidade. Até o plano de fundo de seu notebook, que ficava ao lado de uma pelúcia de coruja, remetia aquela obsessão, uma foto tirada de Sara coberta de sangue, com suas mãos levantadas e ensanguentadas também. A fotografia foi tirada quando a garota estava no treinamento de Girl Blood. Dylan teve acesso a alguns vídeos com partes do processo, mas não dele por inteiro.
O pouco que já tinha visto foi cruel, mas nada que não pudesse suportar assistindo com um bom vinho. Não é como se Hernando não tivesse inúmeras vezes tentado interferir naqueles pensamentos genocidas, mas também não era como se o homem de cérebro novo fosse dar-lhe ouvido.

 


— 2015, O Casamento _

 

A praia sempre deixou saudades. Sua maré gélida em areia quente. O sol queimando seu corpo lentamente. Solitário, pacífico como uma brisa de ar frio, essas eram suas sensações favoritas, o ameno, a paz. Deitado sobre uma toalha de praia que ficava sob todo o seu corpo, Dylan observava o céu, usando óculos de sol pretos. A alguns metros acontecia uma celebração de união entre Lídia e Daniel, o casamento do casal. Era lógico que o vilão nem mal descoberto não podia ficar de fora, ainda mais pelo o que viria a seguir. Naquele instante, Sara e Jason subiam o penhasco, tentando dar um fim no sofrimento de uma vez por todas. Dylan não sentia medo, calculou aquele momento assim que soube por meio de uma conversa entre os dois suicidas. Trocaria Jason por um sósia assim que pudesse, tinha uma equipe de infiltrados no casamento para fazer isto.
Até as pedras foram reorganizadas para matar apenas o homem, em teoria, Sara sairia livre de qualquer grande machucado novamente. Esperou por alguns minutos, iria brincar de mágico no futuro, fazendo que seu irmão tivesse uma volta triunfal, seja lá em qual momento decisivo do tabuleiro. Ele levantou seus óculos ao ver que os pombinhos já pularam do topo do penhasco, que no futuro concreto não existe mais. Seus lábios abriram, incorporando, falando com o sotaque francês de uma amiga chamada Mary:
— Adeus. - Um sorriso se abriu. Mais uma grande cena para a coleção. Dylan voltou-se a se deitar e a olhar para o azul predominante. Após alguns segundos, uma sombra cobriu sua pacífica vista. - Eu já vou. - Respondeu ao segurança que não tinha dito nenhuma palavra até então.
— Dylan...Não conseguimos raptar o Jason.- O homem loiro se sentou no tapete, olhando para a cara do seu segurança. Jason estava morto, logo também descobriria que Sara não sairia tão ilesa quanto imaginou. Ele se levantou, fixando-se de vez para o oceano, indo nadar junto com seu vazio interior.

 


Em seus pensamentos, Sara se sentia leve, como se deitasse numa pilha de folhas. Estava livre, contava uma história que tinha o prazer de conhecer, reencontrara rostos velhos. Esse tempo estava sendo melhor do que aquele que passou com seu suposto melhor amigo virtual há algumas poucas semanas. Infelizmente, ninguém tinha todo esse prazer em reencontrá-la, mesmo Lídia que insistiu em ir atrás dela:
— Quando Dylan voltou do Brasil de volta para a França, ele trouxe duas mulheres com ele. Uma delas era uma senhora gentil, já bem idosa, bastante interessante. A outra era a Sofia. - Sara olhou ao redor juntou de outras pessoas que notaram a falta dela. - Acho que ela morreu. - Disse com um leve sorriso. - Bem, Dylan enviava cartas a ela, também ao seu pai, Lídia. Sebastian estava falido, por isso o marginal fez um acordo com ele, se ajudasse dando informações conseguiria novos investimentos, lucro. Isso como Lícia fez para ver sua família de volta. - Ninguém mais tinha coragem de olhar um no olho do outro, só desejavam que Sara não revelasse seus podres.
— Eu quero café.- Resmungou Daniel em voz baixa, porém muito bem ouvido. Virar dono de uma cafeteria traz muitos vícios, quando menos se espera você está lá, apreciando uma boa fumaça de café coado.
— Alguns bons anos se passaram, Dylan usou Sebastian e Lícia para moldar novos jogadores. Inclusive eu adorei a frieza da Carla quando abandonou a filhinha em um parque de diversões, mas o ápice mesmo foi quando a jogou da... – Após uma pausa, ela completa- sem tempo para mais núcleos. - Tarde de mais, os olhares tímidos tomaram forma de reprovação, mas não sem se sentirem redimidos, não tinham certeza se fariam pior. - Ele usou seus soldados porque não podia vir até aqui resolver. O rei não aguentava mais ter suas asas negras cortadas por seu amante. Sentia-se impotente, domesticado. Mas não era assim.

 


— Voltar pro Brasil é uma passagem pra gatilhos. Você pode até trazer sua mãe e uma mulher desconhecida pra morar com a gente, isso nunca me abalou, mas continuar com essa loucura de joguinhos que claramente afetam sua sanidade e a minha também?- Os dois discutiam em pé no quarto rústico. Hernando extravasava tudo o que reprimiu. - Isso é muita carga, e se eu aguentei uns 8 ou 9 anos com você nessa de bancar um deus foi porque eu te amava e ainda te amo.
— Foram 10 anos.- Corrigiu Dylan, apoiado na penteadeira de um jeito desleixado e olhar para baixo.
— Eu...- Ele arfou, abaixando sua cabeça para o piso.-...Não é mais tão doce conviver com você. Eu, eu adorava passar tempo com você, era divertido como uma aventura, mas agora sua mente está sempre em outro lugar, parecendo que seu corpo vive no piloto automático. - O reprimido se segurava para não chorar, queria ser forte numa discussão, assim como seu companheiro era em todas as brigas.- Tá sendo difícil te vê se entregando cada vez mais em vidas que não tem nada a agregar com a gente. Eu sinto que não sou mais interessante pra você já faz um ano, e 10 se contar o tanto de importância que eu fui perdendo pra você.
— Hernando, você é a pessoa mais importante pra mim.- Dylan olhou para a face triste de seu namorado, praticamente um marido depois de tantos anos.
— Não me sinto assim.- Ele enfim cedeu às lágrimas, também cedeu um abraço envolvendo seu corpo todo com braços. Os dois se amavam de verdade, porém apenas um deles estava disposto a abrir mão de uma obsessão para isso dar certo. - Je ne veux pas te perdre à un jeu d'idiot.- A resposta demoraria um pouco para vir, mas veio com um beijo na testa.
— Je t'aime. - Disse, enquanto encostava seus lábios na pele de seu mais que tudo, melhor amigo.

 


— Dylan podia teimar em dizer que aquele jogo não era idiota, mas sim uma grande conquista, porém ele decidiu deixar o clima esfriar. Agora, sinto pena do namorado dele, o amor por alguém às vezes te faz tomar medidas desesperadas, como prendê-lo numa prisão de segurança máxima.
— Desculpa atrapalhar, mas me lembrei de algo. - Lídia amarrou seu cabelo enquanto falava. - No halloween, era você?- Sara negou com a cabeça.
— Era uma sósia. Foi pega na janela de baixo. Eu ainda estava em coma. - Apenas as duas sabiam daquele evento, porém apenas uma esteve nele. - É estranho falar isso em voz alta. Aproveitando essa deixa, vai enfim saber como sei de tudo isto, Rafael. - A curiosidade de todos foi atiçada, faltava meia hora para zerar o relógio, e ninguém queria saber o porquê dele estar ali. - O segurança que tem a confiança de Dylan, vinha com algumas injeções no hospital para me preparar pra acordar. Acho que eram alguns medicamentos avançados, e não era muito difícil entrar lá, algum túnel daqui com certeza vai dar lá.- A natureza de Sara não a permitia ir direto ao ponto, sempre precisava criar um ar de curiosidade, porém haviam muitos poucos minutos para continuar com frases bonitas.- Então Dylan mandou me sequestrarem. Até hoje não sei em que lugar de Sanru, e se ficava em Sanru onde eu estava morando. - Disse levantando as sobrancelhas. - Mas eu tive bastante tempo pra pensar. Até demais.

 

 

Sentia-se deitada sobre uma cama muito confortável. Sentia um ar morno ao redor. Abriu seus olhos lentamente, como se despertasse de um sono profundo, ou aproximadamente, de 10 anos. Sara levantou-se da cintura pra cima, dando uma boa olhada em tudo ao redor. O cômodo era pequeno, as paredes tinham cor de vinho, o chão um piso branco, a cama era pequena, porém bastante confortável e com dois travesseiros.

No fundo do quarto havia um carrinho de serviço, no qual tinha sobre caixas de medicamentos e equipamentos cirúrgicos. Bem em frente a sua cama, havia um telão desligado refletindo sua imagem. A garota começou a se própria examinar, talvez alguém tivesse tirado algum órgão seu, se sentia diferente, sabia quem era, mas não sua história, precisava de tempo. Usava uma camisola branca e roupas íntimas, mas sem nenhum acessório. A única porta que tinha por ali se abriu, ela ficava do lado esquerdo, um pouco afastada dos outros móveis.

O que Sara viu primeiro foi uma cadeira entrando em meio à luz atrás, estava sendo trazida por um homem forte, loiro, de barba por fazer e olhos penetrantes, ele usava uma calça jeans escura e uma jaquete bem estilosa. Ele sorriu para ela, enquanto colocava a cadeira perto da cama, sentando-se:
— Deve estar sendo estranho pra você. - Ela não respondeu. - Se lembra de quem é? Do que aconteceu?- Novamente ficou em silêncio. - Os nomes Dylan, Lídia, Jason, Ellen, são familiares pra você?- Sara precisou olhar de novo o lugar em que estava. Durante uma boa olhada, pôde reconhecer alguns nomes mencionados.
— São... - O desconhecido sorriu, era questão de tempo até ela se recuperar, especificamente 24 horas. Ele pegou um vinho que Sara não tinha visto no carrinho e o derramou numa taça, dando para a mulher de memória enfraquecida. Ela não estava entendendo nada, não sentia medo, porém não estava nem um pouco feliz em estar ali. O homem estiloso pegou um controle, assim ligando o telão que cobria quase toda a parede do quarto.
— Não precisa ter medo, só quero que preste atenção no que vai presenciar. - Aquilo a deixou relutante, mas fixou seus pensamentos na tela. O que Sara não imaginaria era que aquelas horas seriam as que mais veria em si mesma o mal que tinha se tornado. O som de alguém recebendo mensagens pelo computador começou a tocar na imagem ainda escura. Logo a imagem começou a ganhar forma, era uma mulher dentro de um quarto que só tinha a luz do monitor para clareá-la. Dava para ver algumas embalagens e garrafas vazias no chão. Sua pele era bem branca, os cabelos ocultavam bastante do seu rosto por serem quase tão pretos quanto a escuridão ao redor. Os minutos foram passando, Sara e sua companhia misteriosa trocaram olhares durante alguns momentos, porém depois de quase uma hora daquele filme sobre uma jovem adulta indo atrás de seu amigo virtual, não tinha mais coragem de desviar sua atenção à nada.
Ela estava entendendo, aquela atriz era tão parecida com ela, mas claramente não podia ser ela. "Vemos Tudo, Inclusive a Sua Alma" dizia a frase na parede, nas primeiras uma hora e quinze minutos do filme.
Uma casa em chamas, uma mãe morta, segredos revelados, um grupo de assassinos que a perseguiam. Sentiu seu braço receber uma injeção, mas não ligou, só ficou mais atenta às imagens, que ás vezes, bem ás vezes, mostravam ela mesma de verdade. Sentia pena daquela menina, tinha passado por tantas coisas horríveis, porém não tem jeito algum de mudar o passado. "Prazer em revê-lo" disse sua intérprete, dando um tiro na perna do cara que havia namorado anteriormente. Sara esboçou um riso, como se aquilo fosse engraçado, algo de velhos tempos. Suas reações foram diversas, e já não tinha noção de quantas horas passara, talvez não muitas, as coisas aconteciam rápidas, menos em certos momentos, aqueles em que apareciam a filmagem real.

A iluminação do quarto ficava toda por conta daquela enorme televisão, a luz que ela emitia podia incomodar caso ficasse olhando por muito tempo, mas não a incomodava, não importasse a dor que viria, ficaria fascinada com aquilo até que acabasse. "Tiago o recuperou, ele agora é seu", um som desagradável ecoou, seguido por um grito de repreensão. Sara engoliu a seco, vendo como aquilo foi brutal, ainda mais pela câmera real instalada no cômodo, aquilo foi a única coisa que a fez desviar o olhar, só por um instante.
Claramente algumas cenas foram apagadas e editas para que aquilo fosse mais rápido e menos doloroso à ela. Um baile foi apresentado, vários momentos tensos e hilários aconteceram, porém foi seguido por uma decepção, uma descoberta que a mulher anêmica teve de sua mãe biológica. "Pode me explicar isso?" disse segurando um capuz vermelho. Logo após os eventos marcantes já estavam vindo outros, uma noite de vida ou morte. Lutas, tiros, correria, mortes, tensões além do que podia imaginar... era tão interessante.
Quando chegou no casamento de sua amiga, aquele moço que a injetara algo para não dormir não estava mais no cômodo, talvez não estivesse desde antes. 10 anos se passaram. Havia perdido uma década de sua vida dormindo, como um conto que seu pai lia para ela quando criança. Seus sentimentos estavam embaralhados, se sentia enjoada, deixando algumas lágrimas escorrerem no lençol da cama. Demorou algumas horas para aquela sensação ruim passar, aos poucos foi se recuperado.

Sua vida inteira estava passando diante de seus olhos e apenas agora, se aproximando do momento em que tinha sido tirada do hospital, é que sua ficha havia caído. Amargas, assim que definiria as últimas horas que passou assistindo tudo aquilo. Logo após ver o vilão da trama decapitando algumas pessoas, uma última cena lhe foi mostrada.
Aquele homem, que saíra no meio da sessão, estava novamente na casa de Paris, como viu nos flashbacks que passavam durante a enorme história. A câmera focava em seu rosto, podia senti-lo olhando em seus olhos, como se fosse a própria lente o fitando. O sorriso dele então se abriu, no fundo do cenário uma pessoa passara, mas não conseguiu identificar quem, apenas seu físico forte, parecido com o do homem no centro da tela. A imagem escureceu. Havia acabado. Ela então pôde se deitar novamente e pensar, navegando pelas profundezas daquela mente regenerada.

 

 

No dia seguinte, foi convidada para um banquete. Não via o homem do sorriso cínico desde o vídeo. Ela reconheceu o segurança quando foi servir-lhe de pombo correio para passar o convite, ele agora parecia mais um guarda. Certamente aceitou participar. Então uma caixa com um vestido amarelo lindo chegou à ela, parecendo-se com o da princesa do filme A Bela e a Fera, porém em uma versão mais simples, sem todo aquele glamour. Foi avisada uma hora antes para que se vestisse com aquele adequado vestido, assim o fez, deixando seu cabelo com alguns cachos nas pontas. Podia pedir alguns luxos, mesmo estando sendo mantida ali para sair apenas quando o homem quisesse.
Ao abrir a porta para sair, sendo guiada por um guarda, se impressionou com o quanto bonito era o corredor do seu quarto. As paredes eram amareladas, lustres à cada dois metros, bancos de madeira que pareciam ser caros, ao lado dos assentos haviam vasos de flores em cima de um suporte parecido com mini pilastras pintadas de ouro, no piso tapetes vermelhos com linhas douradas nas bordas ajudavam a trazer aquele clima tão luxuoso. Estava sendo como andar por um castelo.
Após virar um corredor, viu uma porta dupla de madeira, era linda, com um brasão de coruja brilhante na parede à cima. O guarda abriu as portas, deslumbrando mais ainda a mulher de salto preto. A primeira coisa que viu foi uma mesa de banquete enorme, cheia de comidas de vários tipos, como uma ceia de natal daquelas que só se vê em filmes americanos.

Havia duas cadeiras que mais pareciam tronos, uma em cada ponta da mesa, no final da ponta mais longe, estava lá quem a convidara para jantar. Já dentro da sala de jantar pôde perceber os armários de prataria, chiques e também feito de madeira. Acima de suas cabeças, bem centralizado, pairava um lustre maior e mais extravagante do que todos os outros. Este cômodo tinha duas saídas e por um breve momento, ela pensou em correr. Orientada a se sentar, reverenciou antes de repousar na cadeira.
— Boa noite, Dylan.- Mexeram-se os lábios sem batom algum. Pela primeira vez a mulher estava se referindo à ele pelo nome, como um estalar de dedos na mente de Dylan.
— Você está deslumbrante.- Cortejou, com os olhos brilhando e um sorriso branco bem aberto, estava usando um smoking preto, como alguém que estava indo para uma festa formal. O guarda se manteve presente ali, perto da parede próxima de Sara, onde ficava uma armadura medieval. O olhar dela voltou-se para baixo, vendo o prato com os talhares tão limpos que podia se ver neles. Tudo ali remetia a um belo palácio, até o jeito em que estavam se portando. - Por favor, sirva-se. - Sara pegou uma jarra de água próxima e colocou o líquido em sua taça, sem mais vinho. - É estranho...Eu queria tanto te conhecer, assim como você quis um dia me conhecer.- Não era assim que a menina de mais de dez anos atrás imaginava o encontro entre eles, era exatamente uma obra de ficção que nunca conseguiria criar.
— Bem, não era realmente você.- Lembrou-se de Bianca, pobre Bianca. Não haviam palavras a serem ditas, nem perguntas, a mulher de cabelos ébanos sabia tudo o que precisava saber. Seus olhos estavam vazios, abaixados para o garfo e faca, refletindo em nada, apenas... vazia. O silêncio era como uma música, quieta e esperando o momento para ser interrompida.
— Gosta das folhas do outono? Acho a estação mais linda do ano.- Suas mãos seguravam uma taça cheia de líquido vermelho indo direto para entre seus lábios. Sara fechou os olhos e imaginou que tudo ao redor era um lindo bosque no outono, sendo agraciada por uma brisa fria, caminhando só, livre.
— Gosto.- Respondeu ainda de olhos fechados, assistindo à folhas laranjas e marrons caindo lentamente.
— Às vezes gosto de sonha acordado, pensando nas estações, como se tomasse poções para me tornar elas.- Ela entendia, a natureza tinha um mistério que nunca conseguiríamos entender. Isto era delirante.
— É reconfortante saber que morrendo ajudamos a natureza a se reconstituir. - Lentamente voltou a realidade, decepcionada com o mundo em que voltou.
— Você precisa ver Paris, é tudo tão apaixonante lá. Em parte vejo que é a sua cara, quando está disposta a deixar que se apaixonem por você.- Ele não a conhecia de verdade, mas o sentimento de que eram velhos amigos crescia a cada segundo juntos, conheciam a alma um do outro sem mal terem se tocado.
— Nunca pensei em ir à Paris.
— Lá tudo fica mais fascinante.
— Deve ficar...- Fascinação era uma palavra que tinha vários sentidos para os dois, Sara queria entender qual sentido tinha para Dylan.- Quando criança você brincava com bonecas?
— Nunca gostei de bonecas. As achava sem vida. Precisam de almas.- Aquela era uma descarada citação à Mary. Ao fechar os olhos, o homem do outro lado da mesa também fantasiou, porém não mencionou uma palavra que remetesse aos poucos segundos que passou fora.
— Eu queria te perguntar uma coisa...- Ele assentiu com a cabeça.- Por que consigo andar tranquilamente?
— Fizemos exercícios na sua perna, injetamos substâncias e voilà, novinha em folha. - Ele colocou seus braços sobre a mesa, mexendo com os dedos na taça, enquanto parecia pensar.
— Quando sairei daqui?- Aquela pergunta o despertou, fazendo uma troca de olhares tensa nascer. Dylan arfou, levando novamente o líquido vermelho à boca. Alguns segundos se passaram numa degustação inapropriada, demorada.
— Mais rápido do que possa imaginar. - Disse com convicção, repousando o vidro na mesa. Ela se manteve quieta, até agir.
— Eu só posso imaginar o agora. - Com essa frase, o olhar de Sara fixava na lâmina, que em três, dois, um, pegava-a pelo cabo, pronta para ser enfiada em seu pescoço por um breve movimento, porém detido pela mão forte em seu pulso, o guarda não baixara a guarda. Seu corpo foi puxado para fora da cadeira, obrigando-a a se levantar e deixar a faca caída para trás. A conversa havia sido boa, sentiram uma conexão, mas nunca que duas personalidades fortes se entenderiam. Dylan caminhou até ela. Enquanto estava longe ele sorria, mas quando chegou perto, se desfez.
— Eu a levo. - Falou para o guarda, a pegando à força pelo outro pulso e a arrastando para fora da sala de jantar.

Ele andava rápido como se estivesse bravo, pronto para socar uma parede. Os passos de Sara acabavam sendo desengonçados, tropeçando nos tapetes vermelhos. Eles viraram o corredor juntos, já se aproximavam do quarto sem graça aonde ela teria que ficar por sabe se lá quanto tempo.

Mesmo querendo entrar naquela sintonia, não aguentaria mais ficar ali, não se pudesse tentar. Jogando-se para trás, Sara conseguiu se soltar, batendo com as costas numa parede próxima ao suporte do vaso de flores. Sem nem pensar duas vezes, pegou o vaso com as duas mãos e a atirou contra Dylan que se abaixou rapidamente, deixando as flores e os cacos de vidro se espalharem por baterem contra a parede. Ela correu para a frente dele sem ser pega, havia uma porta antes do cômodo em que ficara, diferente de todas as outras portas dali, era de metal, a melhor chance de ser uma saída. Novamente pegou um jarro e tacou contra ele que vinha atrás de si, e mesmo que desviasse dos objetos que tacava, o fazia perder tempo. Faltavam poucos metros para chegar ao destino, no entanto, caíra antes de encostar nele, por culpa do salto que havia se quebrado. Dylan chegou por trás, tirando-a do chão e a colocando pressionada contra a parede. Agora ele apertava os dois pulsos, colocando sua perna na frente das dela para que não pudesse chutá-lo. - Tsc Tsc Tsc Tsc, pobre Sara.
— Por que você não pode achar alguém pra pôr no meu lugar?! - As palavras saíram gritadas. - Por que precisa continuar torturando?! - Seus olhos se esvaziaram em lágrimas. Mechas de seu cabelo iam direto para cobrir partes de seu rosto pálido, sem vida. - Eu estou exausta! Eu não me importo mais com jogos, nem se estou viva, eu só... só quero morrer. - O que dizia saíra lamentado, repleto de mágoas, da lama do passado, que fazia questão de cobri-la da cabeça aos pés. - Tá doendo!- Gritou aos prantos sobre os pulsos doloridos. Dylan os soltou, vendo a vermelhidão que os deixou. Ela levou suas mãos ao rosto, enxugando o líquido salgado. Sem tentar mais lutar ou conversar, a mulher com rosto molhado entrou no quarto, deixando a porta ser fechada sem mais pestanejo algum.

 

 

— Depois daquela noite, ele sempre vinha ao meu quarto conversar comigo. Nunca falamos sobre o incidente, deixamos aquilo virar um segredo nosso, que não podemos citar. - Seu olhar pareceu distante, voltando no tempo, como se tivesse sido um bom momento. O público do outro lado do vidro abria a sua imaginação para aquela cena. A protagonista havia enfim virado amiga do vilão. A história entre os dois começou faziam mais de 10 anos, estavam destinados a se encontrar.
— Ele fez um filme da gente?- Rose enfim pudera demonstrar que estava perplexa. Os jogos de Dylan iam mais fundo do que eles imaginavam, e a próxima etapa estava bem perto.
— Um minuto. - Todos abaixaram suas cabeças para o temporizador, quem sabe aquele poderia se um minuto de silêncio.
— Um minuto para o que, Sara?- Marina recomeçou, interrompendo o que poderia ser o minuto de paz - Você com essa sua carinha de mosca morta, também tem cara de quem sabe exatamente o que vai acontecer quando o cronômetro zerar. - A mosca morta ficou calada, não daria mais ouvidos a ela, não quando seu trabalho já havia terminado. - Fala!- Gritou Marina, batendo fortemente no vidro. Todo mundo sentia medo, ninguém queria descobrir o que viria a acontecer, tinham certeza de que seria horrível. Lídia abraçou seus filhos de uma vez só, os jogadores trocavam olhares com rostos deprimidos, não tinha mais história pra contar, agora só restava a que eles iam escrever. Sem que percebessem, uma pessoa chegava pela escuridão do lado do vidro da mulher solitária. Quando já estava bem perto, todos ouviram os passos de salto, saindo do breu e vindo para mais perto da luz, fazendo com que até Sara se levantasse para ver quem era.
— Rebeca?!- Exclamou, antes de ser atingida por um soco. Chegara usando uma capa vermelha por cima da roupa, parecida com aquela que as Girls Bloods tiveram uma vez. Os integrantes do subterrâneo ficaram afobados. Com Sara desnorteada no chão, pôde tomar a palavra para si.
— Prestem atenção! Vocês precisam prestar muita atenção, ou vão morrer! - Ela respirou fundo para começar, sem se preocupar com a garota desmaiada no chão, tinha algo mais importante a dizer. A frase que diria mudaria absolutamente tudo. A chance de saírem vivos desse jogo, de continuarem felizes em meio ao caos, não existiria mais nenhuma esperança para se segurarem. Era como uma bomba relógio, prestes a explodir. - O Dylan...-
00:00:00.

 

 

Continua...


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Notas finais do capítulo

Hohoho



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