Ainda Vou Domar Esse Animal escrita por Costa


Capítulo 35
Capítulo 35


Notas iniciais do capítulo

Fala gente!
Como prometido, mais um capítulo e, talvez, um dos mais importantes da história.
Espero que gostem.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/664666/chapter/35

Passamos alguns dias para nos acostumarmos com nossa rotina de conversas de novo e sem nunca mencionar o beijo.  Mas, por mais que eu tentei, eu não esquecia o beijo e terminei olhando para a boca do Ricardo mais que o necessário. Ele acabou notando e sempre ficou um pouco desconfortável com isso, Se ele também queria me beijar, por que não podemos simplesmente falar sobre isso? Hoje, mesmo que isso termine em uma outra briga ou em um afastamento dele, eu tentarei conversar com ele.

Fiquei um bom tempo sentada na varanda, esperando ele passar para conversar com ele e, quando ele passou, eu não perdi tempo em chama-lo.

—Ricardo? –O chamei e ele veio correndo.

—Que foi, Sofia? Quer cavalgar? Tem tempos que não saímos com os cavalos.

—Na verdade, queria conversar.

—Conversemos, então. –Ele falou, se sentando ao meu lado e empurrando um pouco a Titília.

—Eu sei que falei que não queria conversar sobre aquela noite, do quadro, você sabe...

—Sobre o beijo?

—Sim. Me desculpa, mas não consigo parar de pensar nisso. Se você também queria, qual o motivo para tanta confusão?

Ele coçou a cabeça e pareceu pensar um tempo antes de se levantar e esticar uma mão para que eu me levantasse também.

—Eu sou complicado e minha história é mais complicada ainda. Se vou te contar meus segredos, prefiro que seja em um lugar em que me sinta bem. –Ele falou.

—E onde seria?

—No meu estúdio de pintura.

Tá. Agora surtei, morri e não sei. Como que ele vai me levar para o estúdio dele se ele nem queria que eu visse uma pintura dele?

—Tem certeza? –Perguntei.

—Preciso ter, só não tenho certeza que vamos continuar amigos depois disso. E você, tem certeza?

—Acho que sim. Ricardo, se não estiver confortável, não precisa falar nada. Eu vou entender se quiser fingir que não aconteceu.

—Eu também tenho tentado fingir, mas é tão inútil quanto a sua tentativa. Vamos?

—Vamos.

Caminhamos em silêncio por uns quinze minutos em uma trilha na mata. Até que ele falou que deveríamos pegar um caminho pelo meio das árvores, fora da trilha. Mais dez minutos de caminhada e chegamos a uma cabana de madeira. Sério? Ele tem uma cabana na floresta?

—Esse é o seu estúdio?

—Agora é. Vamos entrar?

Ele tirou uma chave do bolso e me deixou entrar no local. Era um local simples. Dois cômodos e cheios de lindas pinturas espalhadas pelo chão, encostadas nas paredes. Sua maioria eram paisagens, animais e, penduradas nas paredes, algumas de uma mulher bastante bonita e um garoto.

—Acho que eu tenho café, se você quiser. -Ele ofereceu.

—Não é preciso.

Ele tirou algumas coisas empilhadas em uma velha poltrona e bateu no lugar para eu me sentar. A Titília aproveitou a deixa e se sentou aos meus pés.

—Obrigada. –Agradeci.

Ele pegou um banquinho e se sentou de frente para mim.

—O que quer conversar? –Ele perguntou.

—Sobre o que você estiver confortável.

—Eu acho que nunca vou estar, mas precisamos ter essa conversa, não é?

—Acredito que sim. Por que você fugiu de mim naquela noite?

—Porque você merece alguém melhor que eu. Eu tenho tantos traumas e cicatrizes, Sofia.

—Me conte então. Eu quero te entender. Eu não me importo com essa marca no seu rosto, se é isso que te incomoda. Acho até charmoso.

—Estou longe de ser charmoso. O que quero realmente dizer é que eu já fui casado.

Eu já sabia, mas fiz minha melhor cara de surpresa.

—E o que aconteceu com ela?

—A perdi. O Acidente que de carro que matou meus pais não foi o único em que sobrevivi.

—Ela morreu em um acidente de carro?

—Faz quase nove anos. Perdi elas e o meu garoto. Sou um amuleto de má sorte.

Agora senti um nó na garganta. Ele já foi pai? Sério isso. Eu não pude evitar meus olhos se encherem de lágrimas.

—O que aconteceu?

—Aconteceu que eu matei minha família. Duas vezes.

Ele tentou se afastas para que eu não visse que ele estava começando a chorar, mas o segurei no seu lugar. Segurei suas mãos com as minhas.

—Não foi sua culpa. Acidentes acontecem.

—Você não sabe o que aconteceu. Foi minha culpa. Eu não deveria nem mesmo estar vivo.

—Me conte então.

—Quando eu era garoto, meu pai e eu sempre brincávamos de adivinhação. Íamos falando características e o outro tinha que adivinhar o personagem que era. Sempre brincávamos disso em casa. Mamãe nunca gostou que brincássemos disso no carro, mas não escutei. Um dia, meu pai foi olhar para mim para comemorar que ele tinha acertado. Eu estava no banco de trás e minha mãe estava dormindo no da frente. Se não fosse por mim ele teria visto o a Kombi vindo em nossa direção...

Ele não terminou a frase e começou a chorar. Levantei da poltrona e o abracei. Ele enterrou o rosto sobre minha barriga e me abraçou pela cintura.

—Não foi sua culpa. –Sussurrei.

—Foi. Se não fosse por mim ele estaria de olho na estrada e teria conseguido desviar. Os dois morreram quase na hora. Eu ganhei essa cicatriz no rosto naquele dia. Um pedaço de vidro quase me deixou cego desse olho.

—Calma. Não foi sua culpa. Acidentes acontecem.

—Mas poderia ter sido evitado se meu pai não tivesse olhado para mim. Ele poderia ter desviado da Kombi.

Eu o segurei e sussurrei que não era sua culpa. Deixei ele chorar agarrado em mim o tempo que ele quis. Até que ele se afastou e me olhou com medo.

—Isso não foi o pior que me aconteceu. Eu já fui casado por quase 12 anos. Um bom casamento. Achei que tivesse encontrado a felicidade, mas fodi com tudo, de novo.

—Calma, não se culpe.

Ele me abraçou mais apertado e desviou o olhar no meu rosto antes de continuar falando.

—Eu e minha esposa tivemos um garoto, meu Vitor. Ela estava grávida de novo, ia ter uma filha. Estava feliz. Eu comprei essa fazenda para eles, mas nem chegaram a desfrutar. Essa cabana era para o meu garoto, mas ele se foi antes que eu conseguisse deixar ela pronta.

Ele irrompeu em mais uma onda de choro. Não falei nada. Apenas o abracei e esfreguei suas costas. Depois de um tempo ele continuou:

—O Kuzco era o xodó do meu garoto. Aquele bode seguia ele por onde ele ia. Só não entrava em casa porque a minha esposa não permitia.

—Por isso você gosta tanto dele?

—Ele me lembra meu menino.  Também tínhamos um cachorro.  O matei, assim como minha família. Ele estava junto no carro.

—Você não os matou.

—Eu matei. Eu sempre gostei do jogo da adivinhação do meu pai, mas não aprendi a lição de anos atrás e ensinei para o meu filho. A única diferença era que, dessa vez, era eu no volante e um caminhão que nos atingiu.

Eu não pude evitar minhas próprias lágrimas e o abracei mais apertado enquanto ele continuava chorando.

—Eu os matei, Sofia. Assim como matei meus pais. Eu, mais uma vez, me distraí com o jogo e desviei minha atenção da estrada. Eu devia ter aprendido na primeira vez... Um caminhão veio na contra mão e, se eu não tivesse olhando para o meu garoto, eu teria conseguido desviar. Até desviei, mas não fui rápido o suficiente. Eu não pude salvar eles.

—Não foi sua culpa.

—Foi. Eu devia estar prestando atenção. Eu teria visto o caminhão perder o controle, eu teria salvado minha mulher, meus filhos e meu cachorro. Devia ter morrido naquele acidente. Sou um amuleto de má sorte.

O abracei apertado e falei.

—Não diga isso, Ricardo. Você não é nenhum amuleto de má sorte.

—Tudo o que eu toco eu destruo, Sofia.

—Você não me destruiu e nem destruiu o Moacir. Ainda estamos aqui.

—Eu já te fiz sofrer, fui rude e mal educado contigo e o Moacir, eu sei o que ele já passou por minha causa.

—O que ele passou? Não o vejo reclamando de nada.

—Ele é um bom homem e nunca reclamaria, mas eu sei que arruinei a vida dele ao arruinar a minha. Ele foi a única pessoa que ficou ao meu lado. Ele evitou que eu me matasse.

Eu engasguei com isso. Ele já tentou se matar?

—Você tentou se matar?

—Tentei e infelizmente falhei. Depois do acidente eu fiquei quase dois meses em coma. Eu não pude nem ver minha família uma última vez, não pude enterra-los e nunca pude conhecer a minha menina que nunca nasceu. Como eu poderia viver depois disso? Eu me entreguei. Comecei a definhar. O Moacir e a Mariana, que era uma criança na época, foram os únicos a me estenderem a mão.

—Fico feliz que eles fizeram. Você é um bom homem e merece todo o apoio do mundo.

—Eu não sou bom e eu não mereço nada. Eu merecia ter morrido junto. Ao menos não seria tão sozinho agora.

—Você não é sozinho. Eu estou aqui.

—E você iria querer ficar comigo depois de saber a miséria que eu sou? Sofia, eu sou, no máximo, um projeto que se assemelha a um homem. Eu não sou uma pessoa normal. Não mais.

—E quem te disse que gosto de normalidade?

—Você não sabe no que está se enfiando.

—Me conte então.

—Eu tenho traumas psicológicos. Eu mal durmo à noite, meus pesadelos não deixam e eu tenho um corpo marcado por cicatrizes das várias cirurgias que precisei fazer.

—Você pode se consultar com um psicólogo e quem sou eu para falar de suas cicatrizes quando meu corpo também é cheio de estrias?

—Eu já tentei um psicólogo e não adiantou. E seu corpo e suas estrias são lindos perto das minhas cicatrizes. Eu não sou completo.

Minha autoestima sumiu consideravelmente ao saber que ele acha meu corpo lindo, mas foco, Sofia. Não deixe cair agora que ele está se abrindo.

—Mostre-me então.

Ele se afastou de mim e, incerto, levantou um pouco a camisa. Não é repugnante e horroroso como ele diz. São várias pequenas marcas brancas pelo seu abdômen e uma maior, em sua cintura, que parece ser uma cirurgia.

—Eu perdi um rim, mas essa marca maior é um pedaço do carro que me perfurou. Eles apenas aproveitaram o corte para removê-lo. –Ele falou, traçando o dedo por sua cicatriz maior.

—Isso não me apavora e ainda não vejo motivos para me afastar de você por causa disso.

—As mulheres gritam pela outra parte que falta de mim. Lembra aquela vez que me atropelou e passou com o carro por cima do meu pé?

—Tem como esquecer? Eu sei que você estava com dor, eu te vi mancando.

—Eu não estava com dor, não poderia. Eu estava mancando porque isto saiu do lugar. –Ele levantou a perna direita da calça e mostrou uma prótese que se ligava um pouco abaixo do joelho. –Eu perdi minha perna no acidente.

Eu não podia parar de olhar. Sei que é feio encarar por tanto tempo, mas isso explica muito do seu comportamento. Isso explica porque ele é reservado com mostrar o seu corpo. Meu Deus, nem imagino pelo que esse homem já passou!

—Te falei que não era bonito. O que eu mais queria, aquele dia que fui com você até o lago, era mergulhar junto. Sempre gostei de nadar, mas não poderia assustar você ou a sua amiga. Era tentador te ver e não poder participar. Me desculpe por isso. Sei que minha história pode ser um pou...

Não permiti ele terminar de falar e me lancei em seus braços, o beijando desastradamente. Ele congelou por um momento, mas retribuiu o beijo.

—Homem teimoso, isso não diminui o seu valor. Você não é menos só porque teve infelicidades na vida. –Falei.

—Mas eu não estou inteiro.

—E quem está? Eu também tenho meus traumas, não muito físicos, mas psicológicos.

—Você tem?

—Não é pior do que o seu, mas se te faz sentir melhor, já fui largada a poucos dias de me casar. O Idiota me trocou pela minha suposta amiga.

—Homem burro por trocar uma mulher como você. Você é maravilhosa, Sofia. Se eu tivesse no lugar dele, não teria olhos para mais nenhuma.

—Será que podemos, agora, aceitar aquele beijo e o que mais pode vir dele? –Perguntei, o beijando pelo seu elogio para mim.

—Acho que posso conviver com isso, desde que você possa conviver com alguém problemático e com o corpo meio danificado.

—Não vou gostar menos de você só porque é perneta. E você tinha razão, não posso mais ser sua amiga. Acho que estamos caminhando para algo mais.

—Você é um desastre, mulher, mas gosto do seu jeito, mesmo achando que você ainda vai me matar ou se matar.

Eu o calei com outro beijo. Pode não ser perfeito, mas, de longe, é o melhor homem que eu já conheci. Definitivamente, acho que posso conviver com um Animal perneta e rabugento.

Continua.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

É isso. Um passado triste que o marcou psicologicamente e fisicamente. Agora a sua personalidade faz um pouco mais de sentido.
Se desejarem, deixem vossa opinião.
Obrigada por lerem. :)
Forte abraço e até mais!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Ainda Vou Domar Esse Animal" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.