Annie escrita por Jeniffer


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Olá, querido leitor! Esta história foi escrita com muito carinho e muito, muito cuidado.
Por favor, leiam com a seguinte trilha sonora: https://www.youtube.com/watch?v=mCEfqj9pDAI
(é instrumental, não vai atrapalhar a leitura).
Espero que você goste de ler esta história tanto quanto eu gostei de escrevê-la. ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/663863/chapter/1

10 de abril de 1986

A brisa soprava suavemente através da janela agitando a cortina. Minha cadeira de balanço rangia: sua estrutura velha e retorcida protestando a cada movimento. Depois de um tempo, parei de balançar. Conheço a sensação de dor em cada osso de seu corpo com o menor dos movimentos e resolvi poupá-la de tal sofrimento.

Observei minha neta brincando no balanço do jardim, impulsionando-se tão alto que parecia ser capaz de voar. Mas, as correntes mantinham o balanço muito bem preso à estrutura e minha neta se divertia, segura e feliz. Notei como elas não protestavam diante do esforço que a pequenina impunha à elas, a cada segundo testando seu limite de alcance. Não reclamavam como minha velha cadeira. Talvez por serem tão jovens quanto minha pequena neta.

Analisei os traços de seu rosto como normalmente faço sempre que a vejo. Reparei no formato de suas bochechas enquanto ria, já coradas pelo esforço físico e como seus olhos se fechavam quando o riso intensificava, como se a felicidade não precisasse ser vista. Seus pés balançavam de forma agitada e os cabelos dançavam ao vento, parecendo divertir-se ainda mais do que a própria menina com a sua liberdade de movimento.

Ela se parecia tanto comigo.

O sino da igreja soou ao longe, e eu me deixei levar pelas memórias que assaltavam minha mente. Minha neta completara seis anos há alguns dias e — fisicamente — era idêntica à mim quando tinha sua idade. A diferença, contudo, é que ela está brincando, ilesa e protegida, no jardim. Quando eu tinha seis anos, tudo foi muito diferente.

Lembro-me de estar na Igreja Batista Walworth Road ao lado de minha tia, enquanto meu pai — o reverendo John Harper — conhecido por toda a nossa comunidade, ministrava uma linda cerimônia. Hoje, nossa igreja estava lotada, e cada pessoa lá dentro ouvia com atenção as palavras de meu pai. Ele adorava compartilhar suas histórias com a comunidade, e esta particularmente era a preferida de todos, pois demonstrava a fé inabalável que tinha.

Com dois anos de idade ele caíra em um poço, mas foi salvo a tempo por sua mãe. Com vinte seis anos foi levado a alto mar por uma terrível correnteza e precisou nadar bravamente para sobreviver. E com trinta e dois anos estava a bordo de um navio com vazamento no Mediterrâneo, sendo salvo pela equipe.

— E o que há em comum entre todos estes eventos? — perguntava ele, com energia. — Deus estava comigo.

Sentei-me quieta, como ele me ensinara, enquanto falava sobre como Deus era nosso melhor amigo e estava sempre ao nosso lado para nos ajudar nos momentos mais difíceis. E que ele já havia sido salvo tantas vezes, pois sempre acreditou que Ele o salvaria, e o poder de sua fé era o que o mantivera vivo até hoje.

— Deus sempre está ao seu lado, sempre irá ouvir as suas preces. — dizia, com uma voz bondosa. — Você só precisa abrir o seu coração e pedir ajuda. E lembre-se de agradecer sempre que for ajudado.

Uni minhas mãos em oração e abaixei minha cabeça, acompanhando as pessoas ao redor, enquanto a igreja caía em um silêncio calmo e profundo. Neste momento, todos deveriam agradecer Deus por suas bênçãos e pedir o que precisássemos.

Vasculhei minha mente à procura de algum pedido, mas não encontrei nada. Assim sendo, segui a filosofia de meu pai e agradeci pelo simples fato de estar viva, ter uma casa e uma família. Como sempre, pedi que minha falecida mãe fosse protegida, onde quer que estivesse e então me mantive em silêncio até o final da cerimônia.

Quando acabou, permaneci ao lado de minha tia e esperei que meu pai se despedir de todos, trocando algumas palavras a mais com quem o procurasse para conversar. Então, ele nos encontrou e seguimos para casa. Àquela noite, minha tia Jessie preparou um jantar especial e uma deliciosa torta de maçã: minha favorita. Aproveitei a refeição enquanto eles conversavam sobre quem havia encontrado na igreja. Quando finalmente a sobremesa foi servida, meu pai levantou-se por uns instantes e foi até a sala, trazendo consigo alguns papéis.

— Nina, querida. — disse ele, sentando-se novamente. — Você se lembra da cerimônia que vai haver em Chicago?

Eu assenti, mesmo sem recordar plenamente a conversa de dias atrás, apenas ele comentando sobre passarmos alguns meses fora de casa.

— Eu recebi um convite especial para comparecer a Igreja Moody. Por isso, nós três vamos fazer uma pequena viagem. — ele deslizou os papéis pela mesa até minha direção. Reconheci o logotipo imediatamente. — E vamos em grande estilo.

— O Titanic! — disse minha tia, batendo palmas.

Celebrei com eles e então corri para arrumar minhas malas, pois sabia que tia Jessie poderia esquecer meus ursinhos. Na verdade, meu pai possuía passagens para o RMS Lusitania, mas como a viagem deste navio foi cancelada, ele optou pelo próximo que partia para os Estados Unidos. O Titanic era o assunto principal de todos os jornais e conversas por muito tempo. Sua beleza, velocidade e, claro, o fato de ser inafundável. A viagem inaugural era muito esperada por todos, e por mais que papai tenha prometido que um dia navegaríamos com o Titanic, não pensei que estaríamos lá em um dia tão especial.

Tia Jessie havia se adiantado, então como minha mala já estava pronta, e meus ursinhos lá, papai me colocou para dormir. Rezamos juntos e recitando uma pequena prece.

— Durma agora, minha pequenina. — ele disse, deixando um beijo em minha testa. — Teremos um grande dia amanhã. Diga boa noite para a mamãe.

— Boa noite, mamãe. — eu falei, tocando levemente a foto ao lado da minha cama.

— Ela cuidará de nós, não é, minha querida?

— Mamãe é nosso anjo agora. — repeti o que meu papai dissera durante toda a minha vida.

— E que os anjos nos protejam. Durma bem, minha filha.

Quando chegamos ao porto de Southampton, imediatamente pedi ao meu pai que me carregasse em seu colo. Uma multidão havia se formado ali, tão barulhenta e absoluta que eu temi acabar me perdendo dele ou da minha tia. Descansei a cabeça em seu ombro e fechei os olhos, ouvindo as conversas animadas ao meu redor e sentindo o toque ocasional de tia Jessie em meus cabelos.

— Chegamos. — disse meu pai e eu reconheci o tom de completa adoração em sua voz, como se ele estivesse comtemplando algo divino. — Olhe, querida.

Olhei em direção ao Titanic e senti como se todo o ar fosse sugado de meus pulmões. Era imenso, nunca havia visto nada igual. Fez eu me sentir tão pequena e indefesa, enviando arrepios de medo pela espinha. Lembro-me de me sentir assim na igreja — o maior lugar que eu já havia visto até então — e tentei imaginar quantas igrejas caberiam dentro daquilo.

— O que acha, Nina? — disse tia Jessie.

— É muito grande. — falei, com uma voz tão pequena e fraca que ela precisou se esforçar para ouvir no meio daquela confusão toda.

— É mesmo. — riu.

— Vamos entrar em alguns minutos, ok? — me garantiu, consultando seu relógio. — A terceira classe ainda está embarcando.

Observei o número da multidão diminuir enquanto mais e mais pessoas entravam no Titanic. Quando todos os níveis inferiores foram ocupados, chegou a vez da segunda classe embarcar, e nós nos encaminhamos para a entrada.

Caminhei insegura pela ponte, observando aquele navio gigantesco flutuando na água e sentindo como se ele pudesse me engolir a qualquer momento.

— Papai, como ele não afunda? — minha mente infantil não conseguia compreender como algo tão colossal conseguia não ser dragado para o fundo do mar.

— Não se preocupe, querida. O Titanic não afunda.

— Como?

— É um milagre da engenharia. — ele disse, enquanto entrávamos no navio. Era a primeira que eu o vira atribuindo um milagre a outro fator que não Deus.

A primeira coisa que notei foi o silêncio. A diferença entre o porto e o interior do Titanic era grotesca. Foi como entrar em um mundo diferente. Calmamente procuramos por nossa cabine, seguindo por um labirinto de corredores, pedindo informações aqui e ali para não nos perdermos.

Quando finalmente a encontramos, papai deixou que eu entrasse primeiro. Hoje, lembrando-me dos detalhes, percebo que não havia nada de muito impressionante na cabine. Contudo, na época, tudo me pareceu maravilhoso.

A cabine possuía uma cama beliche e um sofá que se transformava em uma cama, a escolha típica para três pessoas. Havia também um lavatório afixado na parede como parte de um armário de mogno. Nós não tínhamos um banheiro privativo e nem água quente sempre que quiséssemos: privilégios comuns na primeira classe, mas minha mente infantil achou incrível o simples fato de nossas camas terem cortinas. Mais tarde descobriria que as cortinas podiam ajudar muito com a privacidade, mas não funcionavam muito bem contra o barulho do navio cortando as águas.

Tia Jessie fez questão de desfazer minha mala e acomodar os pertences onde pudesse, mas foi interrompida por meu pai.

— Podemos fazer isso mais tarde. — ele disse, empolgado. — Vamos assistir à partida!

Pedi que meu pai me levasse no colo novamente, uma vez que não me sentia segura para encontrar o caminho correto através daquele labirinto. Parecia natural e fácil demais para ele e tia Jessie apenas seguir os números das cabines e corredores, mas para mim era como tentar dar ordem ao caos.

Quando finalmente chegamos ao convés, o espaço já estava lotado. De algum modo, depois de muitos pedidos de licença e desculpas, alcançamos a grade e meu pai me colocou de pé, apoiada em uma das barras, suas mãos firmes mantendo-me segura.

— Acene para eles, minha pequena Nina. — ele dizia, acenando para a multidão lá embaixo, tão pequenina e animada, tão diferente da multidão opressora que me recebera no porto.

Todos ao meu redor comemoravam, gritavam e acenavam freneticamente. Eu não reconhecia ninguém lá embaixo, e mesmo não achando que alguém estivesse lá para se despedir de mim, acenei também, timidamente, enquanto o apito quase ensurdecedor do navio anunciava nossa partida.

Lentamente, o Titanic se afastou de Southampton e ganhou velocidade rumo à América, enquanto eu continuava acenando para ninguém em particular. Talvez, se àquela altura eu soubesse o futuro me reservava, teria me demorado um pouco mais em cada rosto que deixei para trás.

Boa parte da tarde fora dedicada a desfazer as malas e explorar um pouco do navio. Confessei para minha tia, enquanto íamos em direção ao convés, que sentia como se pudéssemos passar uma vida inteira explorando o Titanic e ainda assim não conhecê-lo completamente. Pareceu-me que, pela primeira, ela realmente refletira sobre a grandiosidade da obra.

Acabamos no convés de botes, onde várias espreguiçadeiras estavam à disposição dos passageiros. Meu pai dispôs três ao longo de uma fileira de pessoas animadas, indicando que eu me sentasse entre ele e tia Jessie. A cadeira era grande demais para mim e fazia com que eu me sentisse ainda menor do que já era.

— Nunca vi o pôr do sol em alto mar. — disse meu pai, mais para si mesmo do que para nós duas. — Como acham que é?

— Magnífico.

— Molhado. — eu e minha tia falamos ao mesmo tempo.

Apesar de provocar risos em ambos, o fato realmente me deixou curiosa. Enquanto o sol se punha e seu reflexo se estendia pela água, eu parecia ser capaz de ouvi-lo esfriando.

— Sente-se aqui, Eva. — disse uma voz feminina, chamando nossa atenção.

Outra família se juntara à plateia, e com eles uma menina com longos cabelos castanhos cacheados e um vestido rosa que eu gostaria de vestir, olhava para mim com curiosidade.

— Que tal dizer “olá”, Nina? — disse tia Jessie.

— Olá, meu nome é Annie. — falei, com educação.

— Mas pode chamá-la de Nina. — disse meu pai, estendendo a mão para o homem à sua frente, conduzindo as apresentações.

— Meu nome é Eva. — disse a menina, ignorando os cumprimentos dos adultos. — Você quer ser minha amiga?

E foi assim que conheci Eva Hart: uma típica amizade infantil que nasce de maneira inesperada e parece eterna, fruto de uma época em que não havia preocupações ou receios, apenas alegria e brincadeiras.

Brincamos no convés enquanto os adultos comentavam sobre a grandiosidade do navio e minha tia Jessie e a mãe de Eva sussurravam esporadicamente comentários sobre as vestes dos outros passageiros que por ali transitavam.

— Vamos, Nina! — gritou Eva.

Deveria estar perseguindo-a, cortando caminho pelas pessoas tão encantadas pelo horizonte como se ouvissem o canto de mil sereias. Deveria impedi-la de chegar até a última espreguiçadeira e ganhar a brincadeira, mas só consegui ficar parada, observando as quatro chaminés do navio. Elas tinham dezenove metros de altura e sete metros e trinta centímetros de largura. Dimensões que ouvi de um comandante, mas que não fui capaz de processar na época. A vista que tínhamos delas quando estávamos no convés era absolutamente opressora. Elas eram mantidas com grandes cabos de aço, como se fossem monstros que precisassem ser contidos. A fumaça que expeliam muito me lembrava de um dragão.

— Nina, querida. — tia Jessie me chamou. — É hora do jantar.

Grata pela desculpa para me afastar daqueles dragões, corri em sua direção, esquecendo-me completamente de Eva, que sorria como se tivesse vencido uma maratona importante.

Enquanto todos nós seguíamos em direção ao restaurante, me aninhei nos braços de meu pai para que pudesse observar os dragões presos ao convés e reparei que o último não soltava fumaça como os outros. Como um dragão bondoso preso injustamente em alto mar.

Tão preso quanto nós estávamos.

Os dias que se seguiram foram de muita empolgação e descobertas, uma vez que a vida no Titanic era completamente diferente da minha vida em Londres.

Aproveitávamos o tempo na biblioteca, na sala de leitura ou no lounge. Um dia até mesmo acompanhei tia Jessie em uma visita clandestina à área da primeira classe, apenas para observar de perto o luxo daquela parte do navio.

Às vezes, brincava com Eva no convés. O navio era tão grande e cheio de possibilidades de lazer que não era comum encontrá-la. Contudo, nossas famílias pareceram desenvolver um apego especial com o pôr do sol e isso acabava nos reunindo ao final do dia. Havia uma familiaridade estranha em brincar com Eva no convés, enquanto o sol enfraquecia e a escuridão tomava conta do navio por alguns segundos, até que as luzes se acendessem.

No dia quatorze, meu pai pediu que tia Jessie lesse as orações matinais, e eu permaneci em silêncio enquanto sua voz baixa preenchia o quarto. Passamos o dia todo de modo calmo e agradável. Contudo, àquela noite, os dragões estavam agitados, soltando muito mais fumaça: um apitado esporádico soava como o rugido dos animais presos, um grito irritado demandando liberdade. Inclinei-me levemente por entre as barras do convés para observar a água batendo contra o casco enquanto avançávamos, e tive a sensação de estarmos nos movendo em uma velocidade absurda.

— Não se incline deste modo, criança. Você pode cair. — disse uma voz masculina. Virei e vi um homem trajando um uniforme impecável.

— Nina! — gritou tia Jessie, apavorada. — O que eu lhe disse sobre as grades de apoio?

— Oh! A curiosidade infantil. — disse ele, enquanto minha tia me pegava no colo. Meu pai a seguiu de perto, não parecendo nem um pouco irritado, mas preocupado, afastando-se de um homem com quem conversava. — Eles adoram explorar.

“Na verdade”, pensei comigo mesma, “eu só queria ver porque os dragões estavam tão irritados”. Mantive meus pensamentos para mim mesma, sabendo que os adultos não entenderiam minha compreensão das chaminés.

— Sou William Murdoch. — disse o homem com uma continência, então estendendo a mão para meu pai.

— Eu sou o reverendo John Harper, esta é minha irmã Jessie Leitch e minha filha Annie.

— Você parece muito corajosa, Annie. Não tem medo de um navio tão grande como este? — ele abriu os braços em um gesto de completa admiração. Eu acenei negativamente. — E não precisa ter medo. Nós estamos aqui para cuidar de tudo.

Meu pai aproveitou a oportunidade para elogiar o trabalho do senhor Murdoch e de toda a tripulação; contando sobre sua experiência de viagem e das maravilhas do Titanic. Ambos pareciam compartilhar o tom de adoração sobre a grandiosidade do navio.

— Bem, foi um prazer conhecê-los, mas preciso retornar ao meu posto. — novamente ele fez uma breve continência e eu me perguntei se ele sequer percebia que fazia isso. — Aproveitem a viagem.

Enquanto ele se afastava, eu deixei que minha tia e meu pai voltassem para o seu ponto de observação e corri em direção ao senhor Murdoch.

— Senhor Murdoch! — chamei, fazendo-o parar e dar meia volta.

— Não devia se afastar de sua família, Annie. — ele disse, sem nenhuma irritação, apenas um aviso de praxe para crianças.

— Eu apenas gostaria de perguntar por que as chaminés estão soltando tanta fumaça. — tomei cuidado para não chama-las de dragões.

— Bem, nós aumentamos a velocidade. Vamos chegar à América antes do previsto. — ele respondeu, parecendo surpreso e satisfeito com a minha observação.

— E por que a última não solta fumaça como as outras?

— A última chaminé não tem a mesma função das demais. Você vê, as primeiras três chaminés estão conectadas à sala das fornalhas de carvão, enquanto a última serve para a eliminação dos gases da sala de máquinas, fumaça das cozinhas e da lareira da sala de fumantes. — ele indicava cada uma delas, explanando as funcionalidades de cada uma. — Não sabia que se interessava por estas coisas, Annie.

Eu o agradeci pela explicação e voltei para minha família, observando cada uma das chaminés. Descobri, muito tempo depois, que a última chaminé também servia para estética. Se a concorrência ostentava quatro chaminés, a White Star Line não poderia se dar ao luxo de exibir nada menos do que isso.

Exatamente como um dragão preso injustamente.

— Está cansada, minha pequena Nina? — perguntou meu pai, aninhando-me em seus braços. Eu neguei.

— Ela está agitada hoje. — disse minha tia. — Não vai dormir tão cedo.

— Você precisa descansar, Nina, para poder brincar bastante amanhã. — ele apontou para o horizonte, onde uma réstia de um brilho avermelhado ainda permanecia. — Será lindo pela manhã.

Resolvemos descer até a nossa cabine e dormir. Depois de trocar de roupa, rezamos e meu pai me colocou na cama, ajeitando meu travesseiro. Ele cerrou a cortina e eu virei meu rosto para a parede, tentando adormecer.

No silêncio da cabine, quase adormecida, tinha a impressão de ainda conseguir ouvir o rugido frustrado dos dragões no convés.

— Nina, querida, acorde. — disse meu pai, tentando encobrir o seu tom de urgência. — Jessie, você também, por favor.

— O que houve? — respondeu minha tia, enquanto eu lutava para manter minhas pálpebras abertas. — John, é quase meia noite. Por que está acordado?

— Jessie, alguma coisa está acontecendo. Se vista o mais rápido possível e prepare Nina. — ele se aproximou de minha tia, tentando pronunciar as palavras a baixo tom. Nunca contei a ninguém que ouvi cada uma delas.

— Agora, Nina, preste atenção. — disse ele, enrolando-me em um cobertor. — Você vai ficar aqui com a tia Jessie e se aprontar, tudo bem? Eu já volto.

Ele deixou um beijo em minha testa, com um pouco de força demais, desespero demais. Podia não entender o que estava acontecendo, mas meu pai encontrar-se perturbado o suficiente para me acordar e deixar cada terminação nervosa do meu corpo em alerta.

Ele abraçou tia Jessie e saiu da cabine. Então, prontamente, ela começou a se vestir esquecendo-se completamente de dobrar e guardar seus trajes: um ato de desorganização incomum. Vestiu-me com meu vestido azul, um presente de meu pai no meu último aniversário. Eu adorava os pequenos laços na saia e o modo como ela se movia quando eu caminhava.

Eu assisti tia Jessie atrapalhar-se com a roupa, demorando mais do que o habitual para fechar meu casaco, devido aos seus dedos trêmulos. Meu pai voltou subitamente, trazendo consigo coletes salva-vidas.

— Nós precisamos vestir isso. — ele disse, rapidamente. — Tire o casaco dela.

Tia Jessie pareceu aflita por ter que lutar com os botões novamente, mas o fez mesmo assim.

— Papai!

— Está tudo bem, minha pequena Nina. Está tudo bem. — ele me deu um sorriso encorajador, mas não conseguia disfarçar o medo quando acreditava que eu não estivesse olhando. Tia Jessie enrolou um cobertor em mim, devido ao frio que fazia lá fora.

Quando estávamos todos prontos, ele me pegou no colo, segurando-me firmemente com seu braço esquerdo, sua mão direita entrelaçada com a mão de tia Jessie. Ele nos guiou pelo corredor.

Várias pessoas estavam saindo calmamente de suas cabines e seguindo conosco em direção ao convés. Achei um tanto estranho todos estarem acordados tão tarde, mas não fiz nenhum comentário. Estava perturbada demais pelo silêncio.

Mesmo que todas estas pessoas estivessem acordadas e caminhando pelo navio, não havia nenhum barulho além das conversas sussurradas. Tudo estava calmo.

Quando chegamos ao convés, quatro músicos ao canto tocavam músicas apaixonadamente, seus olhos fechados e seu corpo movendo-se levemente com o ritmo da canção. Reconheci uma música que costumava tocar em nossa igreja e isso surtiu um efeito imediato em meu sistema nervoso, cada nota como uma onda de calmaria. Ao longe, alguns meninos brincavam com um pequeno bloco de gelo e eu me perguntei de onde aquilo poderia ter saído.

— Senhor, para onde devemos ir? — perguntou meu pai, aproximando-se de um homem que trajava um uniforme impecável, o que caracterizava os funcionários do navio, mas com um colete salva-vidas por cima.

— Mulheres e crianças devem seguir para o convés superior, senhor. Naquela direção. — ele disse, muito prestativo, e apontou para uma escada de ferro, pequena e com aparência improvisada.

— Eles vão lançar os botes? — meu pai perguntou em voz baixa, quase um sussurro.

­— Não se preocupe, senhor. Eles vão sim lançar os botes, mas vocês todos estarão de volta a bordo para o café da manhã.

Tia Jessie apressou-se em direção à escada e meu olhar desviou-se para as chaminés: os quatro dragões que costumavam acompanhar minhas brincadeiras com Eva ao pôr do sol e finalmente percebi o que tanto me incomodava naquele silêncio, eles também estavam quietos. Não havia fumaça, não havia rugido, só havia silêncio. Nós estávamos parados.

Quando tia Jessie subia a escada, meu pai me segurava com força, abraçando-me com desespero. Então, à nossa esquerda, um homem gritou:

— Como assim “não há mais botes”?

E assim, como uma pequena fagulha em um mar de pólvora, o caos tomou conta do navio. Já não havia mais silêncio, apenas barulho. As conversas sussurradas se transformaram em gritos desesperados.

— Nina, preste atenção. — meu pai fez com que eu olhasse para ele. — Você precisa ir com a tia Jessie agora, eu vou encontrá-las depois, ok? Comporte-se e faça tudo o que ela disser, está bem? Eu amo você, minha pequena.

Ele me abraçou e então me ergueu em direção à tia Jessie. Queria ter abraçado meu pai e não ter soltado nunca mais. Ele se afastou em direção à multidão que surgia do corredor, tentando desesperadamente chegar até os botes, gritando:

— Deixem as mulheres, crianças e descrentes subirem nos botes primeiro!

Neste momento, enquanto eu olhava para ele com olhos assustados, mãos fortes agarraram os meus braços e me içaram rapidamente.

— Oh, Annie! — disse o senhor Murdoch, com ansiedade, quando me reconhecera. — Você deve ir para os botes imediatamente.

Ele me entregou para tia Jessie e apontou para os botes, parecendo extremamente perturbado e tendo que elevar a voz para se fazer ouvir.

— Senhor Murdoch! — eu segurei sua mão antes que ele me soltasse completamente nos braços de minha tia. — Elas pararam. As chaminés pararam.

Ele entendeu minha pergunta e entendeu principalmente que eu sabia que estávamos parados. E o caos e desespero ao meu redor me diziam que aquilo não era bom.

— Você é corajosa, pequena Annie. — ele enrolou ainda mais o cobertor que eu trazia ao meu redor. – Precisamos que seja ainda mais corajosa agora, está bem? Todos nós devemos ser corajosos agora.

Ele despediu-se de nós e saiu correndo, abrindo caminho em meio à multidão. Tia Jessie correu para o bote e um funcionário a ajudou a subir, logo me tirando do navio e me entregando a ela. Sentada em seu colo, sentindo seus braços cada vez mais apertados ao meu redor, o bote começar a baixar com alguns solavancos.

Eu observava o desespero que havia tomado conta do Titanic e esticando-me um pouco, percebi que um dos lados do navio estava muito mais baixo do que o outro, escondendo-se na água.

Um homem jogou-se contra o nosso bote e funcionário do navio que nos acompanhava o forçou para fora, fazendo com que ele caísse no mar.

— Apenas mulheres e crianças! – ele gritou, assustando-me.

Quando o bote atingiu a água, ele nos instruiu a pegar os remos. Tia Jessie se prontificou para a tarefa, talvez não por ser uma exímia remadora, mas apenas por ser incapaz de ficar sentada sem fazer nada, enquanto poderia ajudar. Então, sentei-me encolhida no chão do bote, enrolada no cobertor e apoiada em suas pernas, e a deixei remar.

— Está uma noite tão linda. — uma mulher ao nosso lado disse, sua voz embargada pelo choro. — O céu parece salpicado por diamantes.

O bote se afastou devagar no começo, até que todas entendessem o básico sobre remar e como fazer isso em sincronia. Eu apenas observei o Titanic, baixando de um modo que não deveria. As pessoas gritavam em desespero, algumas caíam do navio, e com uma pontada de desespero, finalmente entendi que o meu medo ao entrar no navio estava se concretizando.

O grande Titanic, o milagre da engenharia, estava afundando.

Ao longe, as luzes de outro navio podiam ser avistadas. Alguém no Titanic também o viu e lançou fogos de sinalização no ar, não tão bonitos quanto os de final de ano, mas igualmente brilhantes. Então as luzes do navio piscaram e apagaram-se completamente, uma a uma, lançando todos na escuridão. Depois de alguns minutos outro sinalizador foi disparado e iluminou brevemente o terrível cenário.

Boa parte do Titanic já estava submersa e ele estava erguendo-se como um cavalo assustado. O barulho de sua estrutura sendo engolida pela água combinado ao som dos gritos dos passageiros lançaram arrepios pelo meu corpo.

Foi quando um dos dragões finalmente se soltou. Seus pesados cabos de aço se partiram como elásticos e ele caiu na água com um urro agonizante, como se estivesse morrendo. A onda que provocou atingiu o nosso bote suavemente, pois já estávamos longe.

Quando achei que nenhum som poderia ser tão terrível quanto aquele, assisti ao Titanic se partir ao meio. Tapei os ouvidos e encolhi-me no cobertor enquanto a sua estrutura se despedaçava com um som metálico agonizante, como se fosse um grande monstro abrindo sua boca para engolir os passageiros. Então, em minutos a última parte do navio desapareceu na água. Eu desejei, com todo o meu coração, que meu pai já estivesse em algum bote naquele momento.

Quando o último centímetro do Titanic afundou, o único som que ouvíamos era o das pessoas afogando-se no mar, clamando por ajuda em total desespero.

— Nós precisamos voltar. — disse uma das mulheres no bote.

— Sente-se aí e continue remando. — respondeu o funcionário do navio com uma lanterna na mão.

— Aquelas pessoas estão morrendo!

— E você também vai morrer se voltar lá! — ele direcionou o foco de luz no rosto dela. — Sabe quantas pessoas estão lá? Acha mesmo que um único bote vai salvá-las? Elas vão nos afundar e todos nós vamos morrer!

A mulher, ultrajada pela resposta, voltou a se sentar. Ninguém podia culpar o homem por sua falta de profissionalismo. Seu treinamento o ensinou a lidar com passageiros que não sabiam como se guiar pelo navio ou que precisavam de ajuda para encontrar o casaco que haviam esquecido no restaurante, não com passageiros implorando por suas vidas em meio às águas geladas do Atlântico.

— O Olympic chegará aqui a qualquer momento. — ele falou, para ninguém em particular. Talvez estivesse apenas tentando se manter calmo. — Não precisam se preocupar.

Eu olhei para ele com curiosidade. Estava olhando para onde todos olhavam. Por mais que fosse uma cena terrível, não conseguíamos deixar de olhar. Mas, eu só conseguia pensar no número. Pelo modo como ele questionara aquela mulher sobre seu conhecimento a respeito do número de passageiros a bordo do Titanic, eu tive certeza de que ele conhecia esta informação. Ele sabia o número exato de vidas naquele navio e isso o assombraria pelo resto de sua vida.

— Que som terrível. — a mulher ao nosso lado continuava chorando.

— O mais terrível de todos. — concordou tia Jessie.

Contudo, elas estavam erradas. Existe um som muito pior do que o das pessoas se afogando: o silêncio que se segue quando todas já estão mortas.

Era como se o mundo todo tivesse ficado em silêncio àquela noite. Depois de alguns minutos, até mesmo os remos pareciam completamente silenciosos mergulhando na água e levando o bote para longe.

E ali, encolhida no chão, deslizei minha mão discretamente até a água. Em pouquíssimo tempo senti meus dedos congelando. Estava realmente fria, e eu tentei lembrar se meu pai havia se lembrado de pegar seu casaco. Então, em voz baixa, eu rezei. Olhei para as estrelas brilhantes no céu negro e desejei que uma delas fosse minha mãe e que ela estivesse nos protegendo. Pedi a Deus que salvasse meu pai das águas, como já fizera outras vezes. Pedi que ele tivesse piedade das pessoas que ali estavam. E tive a certeza de que, naquele silêncio, até mesmo meu mais baixo sussurro alcançaria os céus.

— Amém, querida. — sussurrou a mulher em prantos ao nosso lado, colocando sua mão em meu ombro. — Amém.

Passamos à noite inteira dentro dos botes. Outros botes se juntaram ao nosso e, com muito cuidado, recebemos mais algumas pessoas, uma vez que sobrava espaço em nosso bote e outros estavam superlotados. Vi Eva brevemente, caindo em prantos quando a separaram de sua mãe nesta troca de passageiros, e eu acenei para ela. Talvez um rosto conhecido fosse tudo o que ela precisava.

Ainda assim, à noite se estendeu e nós continuávamos ali. O navio que vimos ao longe não respondeu ao pedido de socorro e continuou em sua rota. O Olympic, o navio gêmeo do Titanic, também não apareceu. Algumas mulheres perguntaram ao funcionário do navio quanto tempo levaria para que nosso salvador chegasse, mas o uniforme da White Star Line não fornecia nenhuma informação àquele homem tão perdido quanto todos nós.

Então, quando a escuridão começou a regredir, o Carpathia surgiu no horizonte, como se trouxesse o sol a bordo. E foi, com muita tristeza, que eu percebi que meu pai estava certo. Era uma linda manhã.

Todos no bote pareceram acordar subitamente de uma intensa letargia e começaram a acenar freneticamente. Quando o Carpathia se aproximou do nosso bote, conseguimos ver a escotilha que estava aberta para receber os passageiros do Titanic. Havia uma escada de corda por onde todos deveriam subir, mas era demasiadamente perigosa para crianças. Assim sendo, a equipe do Carpathia utilizou redes de bagagens para içar as crianças a bordo. Eu fiquei petrificada quando vi as primeiras crianças sendo içadas, como se fossem peixes na mão de pescadores.

— Vai ficar tudo bem, Nina. É perfeitamente seguro. — disse minha tia Jessie quando chegou minha vez, ajudando-me a subir na rede. — Eu vou subir logo depois de você.

Ele beijou meu rosto e se afastou, subindo pela escada. A rede subiu tranquilamente, nada parecido com a descida do bote no Titanic, e quando eu fui tirada de lá, tia Jessie logo chegou a bordo, abraçando-me como se não tivesse intenção nenhuma de me soltar.

Como não havia quartos disponíveis no Carpathia, fomos distribuídos pelo navio. Tia Jessie e eu acabamos dormindo em um canto da biblioteca, com um cobertor fornecido pela equipe.

— Durma agora, Nina. Tudo vai ficar bem. — ela acomodou minha cabeça em seu braço, tentando amenizar ao máximo o desconforto do chão. – Vamos chegar à Nova Iorque logo.

— E o papai? — perguntei, sonolenta. Ela hesitou por alguns segundos.

— Vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem. — ela repetia, como um mantra.

Durante o dia, boa parte dos passageiros do Titanic permanecia no convés. Talvez pelo hábito ou simplesmente pelo medo. Havia uma apatia geral, interrompida apenas pela histeria de alguns. Eles demandavam informações, queriam saber o que acontecera com as pessoas que não estavam a bordo. Mas não havia ninguém para enviar qualquer mensagem do Titanic. Eu mesma percorri o convés em busca de meu pai, mas não o encontrei em lugar nenhum.

Quando finalmente chegamos à Nova Iorque, já temia pelo pior. Fomos encontradas no porto por dois homens, o senhor Wooley e o senhor McGlashan, ambos membros da igreja Moody, em Chicago, o destino de meu pai. Quando souberam do que acontecera, eles se prontificaram a nos ajudar, oferecendo abrigo e roupas, uma vez que todos nossos pertences afundaram com o Titanic, até que decidíssemos o que faríamos a seguir.

— Eu acredito que o melhor agora seja voltar para Londres. — disse minha tia, na entrada do hotel Manhattan. — O que acha, Nina?

Apenas concordei. Permanecemos no hotel até que conseguimos voltar para Londres, uma cortesia da igreja Moody, a quem serei eternamente grata. Mas, antes de partir, tia Jessie me levou para caminhar pela cidade, até encontrarmos uma igreja.

E finalmente, depois de muito tempo, eu reconheci alguma coisa. A igreja era como minha casa longe de casa, e me recebia de braços apertados. Sentamo-nos em silêncio, e tia Jessie baixou a cabeça em oração, lágrimas escorrendo por seu rosto.

Eu mantive a cabeça erguida, olhando para a imagem de Jesus no altar, me perguntando o porquê Deus não havia escutado minhas preces e não salvara meu pai. Eu tinha feito tudo certo, tenho certeza. Rezei com todo o meu coração, como meu pai sempre me dissera para fazer. Todavia, não fora o suficiente.

Acho que, àquela noite, Deus estava muito ocupado.

Não fui capaz de falar sobre o Titanic por muito tempo depois de voltar para Londres. Passei a morar com meus tios e eles me mantinham longe de qualquer repórter ou notícia sobre o naufrágio. Um dia, sem querer, eu vi um jornal que listava a perda financeira da White Star Line, desde o navio em si até os pertences dos passageiros. Eu me afastei com nojo. Uma única vida valia muito mais do que aquele navio, um tributo à arrogância do homem.

Minha tia também não parecia muito inclinada a discutir os acontecimentos daquela trágica noite. Pelo menos, não até aquele dia.

Era domingo, assim sendo, acordamos cedo para ir à missa. Tudo corria normalmente, até que o reverendo Harland, que assumiu a igreja no lugar de meu pai, perguntou se alguém gostaria de dar um testemunho sobre alguma graça que tenha alcançado. Ouvi dois de nossos vizinhos falarem sobre a doença curada e o novo emprego conquistado, até que alguém que eu não conhecia, no fundo da igreja, ergueu a mão.

— Meu nome é Aguilla Webb e eu fui salvo por um anjo. – ele disse, com emoção. — Um anjo chamado John Harper.

Senti meu coração parar e tia Jessie pegou minha mão no mesmo instante, percebendo meu choque.

— Sou um sobrevivente do Titanic. Fui uma das seis pessoas entre as 1.517 que foi salva das águas geladas. Como estava na Terceira classe, não havia coletes para todos e isso gerou brigas. Eu não consegui nenhum. Quando estava à deriva, sozinho naquela terrível noite, a maré trouxe o senhor John Harper, também se segurando em pedaço dos destroços, para perto de mim. “Você está salvo?”, ele perguntou. “Não,”, eu falei, “não estou”. Então ele disse “Crê no Senhor Jesus Cristo e você será salvo”. Ele então me deu o seu colete salva-vidas e a maré o afastou. E ali, sozinho na escuridão da noite, eu acreditei. Até que um bote me salvou. Eu sou o último convertido por John Harper.

Eu fiquei em silêncio enquanto ele falava, incapaz de me mover. O seu relato comoveu a todos na igreja, pois todos se sentiam muito próximos de meu pai. Alguns até mesmo olharam para mim, esperando uma reação. Mas, eu não consegui. Apenas esperei que o reverendo Harland encerasse a cerimônia e dispensasse a todos.

Enquanto as pessoas saíam da igreja, soltei a mão de tia Jessie e corri atrás daquele homem. Ele estava se afastando, indo em direção à rua.

— Senhor Webb, espere! — ele parou e olhou para mim, confuso.

— Sim?

— Meu nome é Annie Harper, senhor. John Harper era meu pai. — eu me aproximei dele. — Eu também estava no Titanic.

As lágrimas rolam pelo seu rosto e ele caiu de joelhos, abraçando-me.

— Seu pai é um anjo do Senhor, menina. Ele salvou minha vida. — ele soluçava. — Eu vim até aqui na esperança de conhecê-la.

— Nina! — Tia Jessie correu em minha direção, finalmente me localizando.

Ela cumprimentou o homem, apresentando-se, e então se aproximou trocou algumas palavras sussurradas com ele, mas principalmente dizendo que tudo era muito recente, e ela não gostaria de me perturbar com as lembranças do naufrágio. Ele disse que entendia perfeitamente e foi em direção ao carro.

­— Foi muito bom conhecê-la, Annie Harper.

— Tenha uma boa vida, senhor Webb. — falei, sem pensar.

Pois ali, naquele instante, eu me repreendi por ter duvidado de Deus, e senti-me orgulhosa de meu pai. O Senhor o salvara mais uma vez, e ele decidira estender esta graça à outra pessoa, exatamente como um anjo faria.

Agora, em minha cabeceira, havia duas fotos: uma de meu pai e outra de minha mãe, e eu rezava com os dois antes de dormir. Meus dois anjos da guarda que zelavam por mim do paraíso.

— Vovó! — minha neta gritou, arrancando-me de meus devaneios. Uma chuva fraca a obrigara a voltar para dentro de casa, e ela havia ligado a televisão. — Não é aquele navio que você viajou?

Uma repórter na televisão anunciava o aniversário da data de hoje. Há exatos setenta e quatros atrás eu estava embarcando no Titanic. Ela relembrava o acontecimento exibindo fotos do dia.

— E até hoje este navio causa fascínio nas pessoas. — dizia ela, com a mesma admiração que eu ouvia nas pessoas há tantos anos atrás. — Deixando muitas pessoas curiosas para vê-lo novamente e levantando questões sobre a possibilidade de tirá-lo do fundo do mar.

— O que você acha disso, vovó? Tirar o Titanic do fundo do mar? — ela continua focada na tela e nas fotos em preto e branco, em contraste com cenas do famoso filme, tão bem elaborado que me causou pesadelos por vários dias, mesmo que eu só tenha conseguido assistir os primeiros minutos.

— Eu não vejo muito sentido agora. — respondi, sabendo que era impossível, mas realmente não achando necessário.

Pensei em tudo o que estava se decompondo lá no fundo do mar, e como aquela era a morada de diversos fantasmas, assim como o túmulo de vários corpos nunca recuperados, como o de meu pai.

— Papai disse que me levaria ao parque hoje, quando voltasse para casa. — ela choramingou.

— Ele chegara em algumas horas, querida.

— Sim, mas está chovendo. Vou ter que ficar aqui.

Eu a chamei para perto, como se precisasse contar um segredo, inclinando-me um pouco e ouvindo a cadeira ranger em protesto.

— Observe as nuvens, minha querida. É só uma chuva passageira. Será lindo pela manhã.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Vamos conversar um pouco sobre esta one-shot...
Há alguns anos, visitei uma exposição sobre o Titanic. Na entrada, recebíamos uma réplica da passagem do Titanic, com os dados de um passageiro real. Eu recebi a passagem da Annie Harper, carinhosamente chamada de Nina (apelido informado na passagem).
Então, depois de tanto tempo, decidi escrever esta história. Devo dizer que ela é 80% verdade, 10% ficção e 10% verdades distorcidas.
Para começar, tenham em mente que eu escrevi em primeira pessoa, então precisei criar a personalidade da Annie, então algumas coisas são completamente inventadas, como o fato de a torta de maçã ser sua favorita (é minha favorita, não dela). E muitas coisas que vocês podem ter lido. Ela tinha seis anos na época. Optei por escrever através de lembranças, pois não quis me limitar pela visão infantil dela, mas tentei não perder isso completamente.
E aqui começam as verdades distorcidas...
Annie afirma não se lembrar de ter conhecido Eva no Titanic, apesar de elas terem se correspondido por algum tempo depois da tragédia. Eva Hart foi a última sobrevivente do Titanic a morrer. Há diversas entrevistas com ela, mas eu me foquei em uma e tirei muitas coisas dali, como por exemplo, a afirmação sobre o som terrível do silêncio após o naufrágio, a descrição sobre o resgate do Carpathia e a fala do funcionário dizendo que eles estariam de volta para o café da manhã. Isso foi dito para o pai da Eva, e não da Ana. Vocês podem assistir a entrevista que utilizei: https://www.youtube.com/watch?v=MD5J43Z9AWI
Também há fatos fictícios aqui. O primeiro-oficial William Murdoch realmente existiu, mas não há registros de ele ter conhecido Annie. Assim como não há registros sobre o tempo que ela passou no navio...E, claro, existem muitos fatos verídicos, desde grandes e imutáveis fatos, até pequenos detalhes...
As descrições dos ambientes são todas baseadas nas informações fornecidas pelo blog “titanicemfoco.blogspot.com” que eu indico fortemente para quem tem curiosidade sobre este navio. É um blog bem extenso e bem completo. Descobri, segundo este blog, as funções da quarta chaminé. Na exposição foi dito que ela era apenas uma questão de estética...
As falas de John “Será lindo pela manhã” e “Deixem as mulheres, crianças e descrentes subirem nos botes primeiro” são reais e fazem parte de um testemunho dado por sua irmã, Jessie. Também é verdade que ele quase morreu afogado três vezes antes da tragédia. (eu nunca conseguiria criar algo tão dramático); Assim como o fato de ele ter salvo um homem e até mesmo recitado versículos da bíblia para quem estava se afogando. Acredito que aquele padre rezando que vemos no filme foi inspirado nele. Há um livro sobre John Harper que você pode ler aqui: http://issuu.com/chamada/docs/o_ultimo_heroi_do_titanic
Contudo, apenas um site cita o nome deste homem salvo por John Harper, mas não há registro de ninguém com tal nome no Titanic. Por isso, o fato de ele ser da terceira classe é inventado. Suas palavras, todavia, são uma mescla das várias versões que encontrei de seu testemunho. Também não há registro que ele tenha mesmo se encontrado com Annie. Assim como eu acredito que existiam coletes para todos. Eu só quis ser um pouco dramática ali...
Assim como a fala sobre as estrelas parecerem diamantes. Lembro-me de ter lido isso uma projeção da exposição...
A ordem dos acontecimentos na hora da tragédia foi seguida a risca. Contudo, há divergências sobre as músicas tocadas pela banda. Na entrevista de Eva ela garante que eles tocaram “Near my God to thee”, que é a música que sugeri lá no começo. Algumas fontes dizem que eles tocaram músicas mais alegres, e que esta informação não procede. Como eles tocaram por muito tempo, acredito que todas as hipóteses são possíveis.
Os eventos depois que Annie foi resgatada também foram mantidos. Desde ela dormir na biblioteca até ser ajudada pelos membros da igreja Moody, em Chicago. E ela realmente disse que não via sentido em tirar o Titanic do fundo do mar, todavia, eu não sei em que circunstância ela disse isso, uma vez que ela não falou sobre o ocorrido por muito tempo e suas lembranças estavam comprometidas...
Aliás, 10 de abril de 1986 é o dia em que ela faleceu.
Enfim, estas notas ficaram maiores do que a história, mas acho que esclareci tudo o que precisava. A grande questão é: eu tentei reunir o máximo possível de informações, mas ainda assim, precisava contar uma história. Então, qualquer dúvida, fique à vontade para perguntar nos comentários ou por MP.
Espero, de verdade, que tenham gostado. ♥



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Annie" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.